Teoria do Direito

Fichamento das obras de Carl Schmitt e Evgeny Pachukanis

O período entre guerras foi marcado por três excelsos juristas: Hans Kelsen, Carl Schmitt e Evgeni Pachukanis. Esses dois últimos tiveram como único ponto em comum o fato de refutarem sistematicamente o primeiro, já que julgavam ser o direito uma outra coisa que não somente a norma. A partir desse ponto inicial, Schmitt e Pachukanis tomam caminhos diametralmente opostos, o que faz com que haja três linhas de pensamento completamente diferentes. Primeiramente, de acordo com a ordem dos textos, será exposto o contexto histórico de Carl Schmitt, para melhor compreensão das suas ideias e de suas principais divergências com Kelsen, as quais serão tratadas logo em seguida. Após isso, trataremos de maneira semelhante a abordagem com Pachukanis.

Carl Schmitt foi um importante jurista, filósofo político alemão. Nascido em 1888, ele vivenciou acontecimentos importantes em solo germânico, como a Primeira Guerra Mundial, a conturbada Constituição de Weimar e a ascensão de Hitler ao poder (chegou a ser acusado de jurista do nazismo), com a consequente eclosão da Segunda Guerra. O término da Primeira Guerra deixou o Império Alemão em ruínas e em 1918, proclama-se a Constituição de Weimar.

De encontro a Kelsen, o alemão considerava essa constituição uma tentativa de conciliar direitos inconciliáveis. Para ele, não era possível unir princípios de viés social com individuais. Além disso, ele incisivamente discordava do modo como era decidido as leis, ou seja, o voto majoritário do Reichstag, o Parlamento Alemão da época. Em decorrência desse sistema, Direito, lei e legalidade, tornar-se-iam, segundo ele, modos de processo e votação “neutros”, indiferentes e acessíveis a qualquer conteúdo. Destarte, “em decorrência da adoção de ideias majoritárias aritméticas: 51% dos votos resultam em maioria no Parlamento; 51% dos votos parlamentares resultam em Direito e legalidade; e 51% da confiança do Parlamento em relação ao Governo resultam no governo parlamentar legal” (SCHMITT, 2007, p. 28)

Dando prosseguimento às críticas, Schmitt escreve: “Se um partido que domina 51% da corporação legislativa puder fazer as leis relevantes para a Justiça, então esse partido simplesmente ditará também à Justiça” (SCHMITT, 2007, p. 32). Com isso, “O partido dominante dispõe de toda preponderância decorrente da simples posse dos meios hegemônicos legais em um Estado dominado por esse tipo de legalidade. Agora a maioria subitamente não mais é um partido, é o próprio Estado” (SCHMITT, 2007, p. 33). Assim, consoante Schmitt, o aspecto de decisão deveria estar com quem, de fato, representa a unidade do Estado, encerrando essa “decisão pela metade” e passando para uma decisão unânime: ou algo é ou não é.

Com o intuito de fundamentar sua teoria, Schmitt, em sua obra Teologia Política, disserta sobre a definição de soberania. Logo de início, ele define que soberano é quem decide sobre o estado de exceção. Entende-se por esse estado, como um conceito geral da teoria do Estado, não qualquer ordem de necessidade ou estado de sítio. Conforme ele ressalta, “a decisão sobre a exceção é decisão, pois uma norma geral jamais pode compreender uma decisão absoluta e, por isso, também, não pode fundamentar, de forma completa, a decisão de que um caso real, excepcional” (SCHMITT, 2006, p.7).

Em seguida, Schmitt afirma que, por não ser claramente identificável um estado de necessidade extremo, não há limitação dos pressupostos como conteúdo de competência.O soberano “decide tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como sobre o que se deve fazer para saná-lo. Ele se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente, porém a ela pertence para a decisão sobre se a Constituição pode ser suspensa in toto” (SCHMITT, 2006, p.8). Isso significa que, no estado de exceção, o soberano não cria normas, mas sim medidas para que a normalidade volte.

O autor, trilhando os passos de Bodin (o qual assenta a decisão no conceito de soberania), refuta a tese de Kelsen, ao dizer que a ordem jurídica não repousa em uma norma, mas na decisão. Ele faz isso de olho na exceção e não na regra geral. Para Schmitt, o Estado seria maior que o direito, e para proteger o que realmente importa – o primeiro – é aceitável suspender o segundo.

Retornado à parte sobre a não limitação do soberano a nada, ou seja, ele pode fazer o que for necessário para que o Estado sobreviva, Schmitt explica que “a norma necessita de um meio homegêneo. Essa normalidade fática não é somente um ‘mero pressuposto’. Ao contrário, pertence à sua validade imanente. Não existe norma que seja aplicável ao caos” (SCHMITT, 2006, p. 13). Sendo assim, fica claro que a limitação seria impossível porque não é possível prever, por meio da lei, como sair de um estado exceção, cada estado de exceção é único, não existe uma “receita” e, se existisse, não seria exceção, mas sim uma regra. Isso acaba por desconstruir o conceito de soberania de Kelsen, se nos casos de exceção, a lei pode ser suspendida, como ela pode ser soberana? Ela, obviamente, está submetida a algo, que, para Schmitt, é a decisão.

Passando agora para o segundo jurista, Evgeny Pachukanis foi considerado o mais proeminente teórico marxista no campo do direito. A principal justificação para o seu ponto de vista tão diferenciado e, por conseguinte, o surgimento de sua teoria é o fato de ele ter vivenciado não só a Primeira Guerra Mundial (como Kelsen e Schmitt), como também a Revolução Russa de 1917 e todas as suas consequências. Portanto, não é surpreendente o fato de ele seguir uma diretriz mais marxista.

Para Pachukanis, “A teoria geral do direito pode ser definida como o desenvolvimento dos conceitos jurídicos fundamentais, isto é, os mais abstratos” (PASUKANIS, 1989, p. 11). “Os neokantianos podem sempre nos assegurar que, segundo sua concepção, ‘a ideia de direito’ não precede a experiência (…) cronologicamente, mas apenas lógica e gnoseologicamente” (PASUKANIS, 1989, p. 12). Esses conceitos, então, independem de conteúdo concreto de normas jurídicas, eles conservam sua significação mesmo que o conteúdo material concreto se modifique de uma maneira ou de outra. Simplificando todo parágrafo: por mais que os conceitos tenham surgido depois de tantos acontecimentos, ele é um ponto em comum de tudo que os antecederam. Eles são a base de todo o Direito.

Nesse contexto, o teórico afirma: “Podemos, portanto, ter por assente que o pensamento jurídico evoluído, independentemente da matéria à qual se refira, não pode passar sem uma certa quantidade de definições abstratas e gerais. Mesmo nosso direito soviético não pode prescindir delas, pelo menos enquanto permanecer como direito, cumprindo as suas tarefas práticas imediatas” (PASUKANIS, 1989, p. 13). Aqui, Pachukanis abarca em sua crítica tanto os neokantianos como os marxistas. Aos neokantianos, tendo como expoente máximo Hans Kelsen, ele diz que a teoria geral do direito é uma teoria “que não explica nada, que a priori dá as costas às realidades de fato, quer dizer, à vida social, e que se preocupa com as suas origens ou de suas relações com quaisquer interesses materiais, não pode pretender o título de teoria (…) Esta ‘teoria’ não pretende analisar o direito, a forma jurídica enquanto forma histórica, pois não visa a estudar a realidade” (PASUKANIS, 1989, p. 16). Quanto aos marxistas, o autor diz que eles se prendem muito à introdução do momento de luta de classes nas teorias jurídicas sociológicas e psicológicas, querendo obter uma teoria do direito verdadeiramente materialista e marxista, mas que em nenhum ínterim tornou uma teoria geral do direito, sendo, no máximo, uma história das formas econômicas com uma tintura jurídica ou uma história das instituições.

Para o jurista soviético, “a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo concreto dos ordenamentos jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas oferecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada” (PASUKANIS, 1989, p. 18).

No que concerne à presença do Direito na Ditadura do Proletariado, Pachukanis deixa claro que os fundamentos da teoria geral do direito são próprios do direito burguês. “O direito proletário, dizem-nos, deve buscar outras concepções gerais, e a pesquisa de tais conceitos deve ser a tarefa da teoria marxista do direito. Esta objeção, à primeira vista, parece ser muito séria. No entanto, repousa sobre um equívoco. Esta tendência, exigindo para o direito proletário novos conceitos gerais que lhe sejam próprios, parece ser revolucionária por excelência. Mas, em realidade, proclama a imortalidade da forma jurídica, pois se esforça em extrair da forma de condições históricas determinadas que lhe permitam se expandir completamente, e a apresentar como capaz de se renovar permanentemente. O desaparecimento do direito burguês não significa em hipótese alguma a sua substituição por categorias do direito proletário (…) O desaparecimento das categorias do direito burguês significará nestas condições o desaparecimento do direito do direito geral, isto é, o desaparecimento do momento jurídico das relações humanas” (PASUKANIS, 1989, p. 25 e 26). Sintetizando o que fora supracitado, o direito é uma ferramenta da burguesia, onde há Direito há relações capitalistas, independentemente da forma de governo.

Embora Pachukanis tenha essa opinião, ele ressalta que Marx “demonstrou, em sua Crítica do Programa de Gotha, que o período de transição é caracterizado pelo fato de que as relações humanas permanecem, durante um certo período, necessariamente no “horizonte limitado do direito burguês” (PASUKANIS, 1989, p. 26). Ou seja, por mais que se planifique a economia com o intuito de dar início ao comunismo, o direito não pode ser abolido imediatamente, mesmo que esse represente algo contrário ao regime comunista, porque a natureza humana exige que essa extinção seja gradual. Contudo, o que se viu, na realidade da União Soviética, foi uma vontade de não passar para o estágio superior, em outras palavras, não se queria derrubar o direito. Com isso, o teórico fez duras críticas e, por consequência, sofreu perseguição de Stálin até a sua execução, em 1937.

Encerrando o capítulo, o autor parece resumir a razão de sua obra através do trecho: “Toda ideologia parece com as relações sociais que a engendraram. Mas este desaparecimento definitivo é precedido por uma fase na qual a ideologia perde, sob os golpes desferidos pela crítica, a capacidade de encobrir e velar as relações sociais das quais nasceu. O pôr a nu as raízes de uma ideologia é o sinal preciso de que o seu fim se aproxima” (PASUKANIS, 1989, p. 29).

No capítulo seguinte, é tratado sobre a relação jurídica e as normas. “Assim como a riqueza da sociedade capitalista tem a forma de uma enorme acumulação de mercadorias, a sociedade, sem seu conjunto, apresenta-se como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas (…) a relação jurídica é a célula central do tecido jurídico e é somente nela que o direito realiza seu movimento real. Em contrapartida, o direito enquanto conjunto de normas é apenas uma abstração sem vida.” (PASUKANIS, 1989, p. 55).  Novamente, tem se aqui duras críticas a Kelsen, referentes à não abordagem da temática social, de um direito para o direito e não para sociedade. Ressalta-se que Pachukanis reconhece que Hans Kelsen considerava necessário, por mais minimamente (e quase nulo) que seja, conferir um elemento da vida real à ordem normativa ideal.

Pachukanis modifica a proposição de que a norma seja geradora das relações jurídicas, não seriam as nomas, porém as forças objetivas reguladoras e atuantes na sociedade. Ele comprova isso através do exemplo: “Não se pode afirmar, com efeito, que a relação entre credor e o devedor é criada pelo sistema coativo de cobrança de dívidas que existe no Estado em tela. Esta ordem objetivamente, garante a relação preserva-a, mas não a cria de forma alguma” (PASUKANIS, 1989, p. 59).

Em síntese, os três teóricos defendem teorias distintas e incompatíveis entre si. Kelsen, com sua teoria normativista, estava ligado ao estado liberal e à ideia de uma democracia representativa, tendo grande apreço pela forma política parlamentar, dá como fundamento do direito a norma e não faz distinção entre o Direito e o Estado, defendendo, assim, um governo de normas. Schmitt, contudo, está atrelado a um estado mais autoritário, em que o poder executivo seja preponderante, onde a decisão seria o fundamento do direito, e o direito seria mero coadjuvante em relação ao Estado, havendo uma dinâmica entre norma e exceção. Já Pachukanis, extremamente influenciado por Marx, iguala a forma jurídica à forma mercantil. Portanto, o fundamento do direito seria, para este, uma relação social objetiva específica, ou seja, manter a estrutura capitalista funcionando. Dessa maneira direito e estado comunista são inconciliáveis e, diante desse percalço, é preciso eliminá-lo.

Por fim, cabe-me tecer alguns comentários sobre o jurista soviético. Sua sistemática é digna de elogios, sua crítica sobre a falta de realidade social na teoria geral do direito é aceitável, bem como os fundamentos que compõe a base para rogar pela extinção do direito. Trata-se do maior jurista marxista, já que ele faz com muita similaridade o direito o que Karl Marx fez com a economia. Entretanto, ao criticar ferrenhamente Hans Kelsen sobre a falta de realidade de sua teoria, reduzindo sua inovadora teoria a quase nada – como ele se refere a esta “teoria” – Pachukanis comete uma grande leviandade. É certo que Kelsen mal dá atenção à realidade social (exceto quando diz que a lei para ser válida precisa ter um mínimo de eficácia), porém, dizer que a teoria não abarca a realidade é sair um pouco dos limites do aceitável. A teoria kelseniana possui sim uma realidade: a realidade normativa, a realidade das leis.

Referências:

SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Tradução de Tito Lívio Cruz Romão. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

SCHMITT, Carl. Teologia política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

PASUKANIS, Evgeny. A teoria geral do direito e o marxismo. Tradução de Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.

 

Luís Guilherme de Almeida Ribeiro – acadêmico de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar e referenciar este artigo:
RIBEIRO, Luís Guilherme de Almeida. Fichamento das obras de Carl Schmitt e Evgeny Pachukanis. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/teoria-do-direito/fichamento-das-obras-de-carl-schmitt-e-evgeny-pachukanis/ Acesso em: 21 nov. 2024
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