Excesso de reclamações trabalhistas e outros temas
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Como reduzir o volume de demandas trabalhistas?
Primeiramente, lembrando ao legislador, quando redige leis processuais, o alerta de Voltaire de que “a vantagem deve ser igual ao perigo”. Uma das reflexões mais agudas e de aplicação universal do grande filósofo francês.
Na utilização da justiça — como em tudo o mais na convivência humana — para todo “lucro”, ou “prazer”, deve haver um “perigo”, ou risco de “prejuízo”, ou “dor”, porque do contrário o abuso será inevitável. Até os cônjuges sabem disso, em sua maioria, na eterna guerra conjugal, declarada ou subterrânea. É por isso que foi “inventada” por Montesquieu a clássica teoria da tripartição dos poderes. Um poder vigiando e “brecando” o outro, nem sempre por motivos nobres, mas brecando. A virtude está apenas no breque. Hugo Chávez um dia, após sua queda, vai se lembrar disso, quando estiver no exílio e se considerando um injustiçado, “vítima da ingratidão”.
O abuso está sempre à espreita, aguardando uma oportunidade para investir. Abuso do forte, e até mesmo do fraco, quando se sente mais forte. Por sinal, o fraco, quando mais fortalecido, sentindo-se livre do perigo, torna-se até mais virulento que o habitualmente forte porque não esqueceu as humilhações anteriores. Desejo de revanche que não existe no forte, apenas mal acostumado a ser obedecido.
O referido conselho serve para tudo, até nas coisas mais elementares e biológicas. É prazeroso comer e beber à vontade? É, mas, mas abusos nessa área redundam em obesidade, alcoolismo, diabetes, feiúra, pressão alta e moléstias cardíacas. É prazeroso conquistar belas mulheres? É, mas podem contar que atrás de cada prazer há um perigo à espreita: para a saúde (moléstias); para os ossos (pancadas de noivos ou maridos indignados); para as finanças (pensões e indenizações); para a reputação (perguntem a opinião do boa praça Clinton); para a paz familiar (nem preciso detalhar…), etc.
Para não ficarmos em generalidades e levando o tema à área do Direito e sua aplicação pelos tribunais, é a violação do conselho de Voltaire, na área processual, que explica a grande crise da morosidade na justiça brasileira. Lentidão essa cuja culpa está, quase toda, no sistema, da legislação, e não na pessoa do juiz, na vasta maioria operosos e competentes. Críticos dos juízes — em razão da morosidade da justiça —, se nomeados para o cargo, sofreriam, hoje, as mesmas acusações dos jurisdicionados. É muito difícil conciliar o estudo criterioso (a qualidade) dos casos com a necessidade de dar vazão ao dilúvio de processos que inunda o judiciário brasileiro (a quantidade).
Por que o Brasil, um país de economia relativamente insignificante — em comparação com as grandes potências — apresenta um índice tão assustador de demandas trabalhistas? Ao que dizem, estamos em primeiro ou segundo lugar, em termos quantitativos mundiais. A explicação está em que o ajuizamento de uma reclamação trabalhista — com ou sem fundamento — sempre pode trazer algum lucro, jamais um prejuízo. Só há “vantagem” à vista. Nenhum “perigo”. Se improcedente a reclamação, não há possibilidade de desembolso do reclamante. Sendo pobre, no sentido legal da palavra, há isenção de custas processuais e a legislação não prevê a condenação em honorários. Assim, por que não arriscar? Algum dinheiro pode surgir no momento da conciliação. O ex-patrão — geralmente a ação é movida depois de rompido o vínculo trabalhista — talvez prefira pagar uma quantia, a título de acordo, mesmo considerando-a indevida, só para se livrar do problema e não constar seu nome no distribuidor quando precisar de alguma certidão negativa.
Ressalvados, evidentemente, os casos de abuso real dos ex-patrões — nem sempre atentos aos direitos de seus empregados — essa sistemática legal de só acenar com vantagens quando do ajuizamento de uma reclamação trabalhista produz uma distorção quantitativa que explica, em grande parte, o acúmulo monstruoso de questões na justiça especializada.
Qual a solução para isso? Na área processual, instituir a sucumbência em honorários para todos os casos de improcedência de demanda trabalhista. Essa sucumbência, atualmente, só existe quando a reclamação, improcedente, foi movida através do sindicato da categoria, o que ocorre em um número bem menor de casos. Dirá, alguém, que o trabalhador pobre, um hiposuficiente, não terá como pagar a condenação em honorários. Porém, mesmo que não tenha disponibilidade financeira no momento, o simples perigo de “ficar devendo”, serviria como inibidor de demandas visando apenas “receber algum” na audiência de conciliação. Se o trabalhador é mesmo pobre, como geralmente acontece, pouco efeito concreto terá a condenação em honorários, porque seus parcos bens pessoais não podem ser penhorados. Nem mesmo a sua residência, se uma só, por ser bem de família. Mas, psicologicamente, o fato de “ficar devendo” uma quantia (honorários) ao patrão, ou ex-patrão, já seria um elemento de dissuasão contra reclamações apenas visando “sacar” alguma coisa. Se ele comprar um carro, esse carro poderá um dia ser penhorado. E a lei poderia também, abrandando o princípio — em casos excepcionais —, estabelecer que se a justiça trabalhista se convencesse, naquele caso, que o reclamante estava de boa-fé quando ajuizou a demanda — mas a perdeu porque, v.g., sua principal testemunha faleceu —, poderia isentar o reclamante da condenação em honorários. Isso, apenas como exceção. O que importa é que exista um freio legal, um contra-estímulo ao abuso no ajuizamento de reclamações trabalhistas.
A recomendável diminuição da enorme diferença na distribuição de rendas — uma notória chaga brasileira — não pode ser solucionada via ajuizamento adoidado de reclamações trabalhistas, porque essa forma esdrúxula, judicial, de compensação acaba agravando, ainda mais, a má-distribuição de rendas. Os patrões, sabendo do perigo na contratação de empregados, tudo fazem para “terceirizar” atividades, “robotizar” e informatizar ao máximo sua empresa, preferindo lidar com máquinas e computadores em lugar de mãos e cérebros humanos. Com isso, aumenta o desemprego. Esse “perigo demandista à vista” trabalhista pode, também, afastar investidores, diminuindo a oferta de emprego nas fábricas.
Uma outra aplicação do conselho voltaireano em exame está na questão dos recursos processuais na área cível.
Não é possível nem aconselhável restringir excessivamente os recursos porque nenhum ser humano está isento de falhas no julgamento de uma causa. Falhas intelectuais ou morais (p.ex., pressa, preconceito, preguiça ou, em casos raros, interesse econômico) podem ocorrer e o prejudicado, que se sente injustiçado, tem o direito de pedir um novo julgamento por uma corte que presume mais sábia e experiente. Além disso, se o juiz sabe que de sua decisão não cabe recurso, haverá também uma inconsciente propensão para o abuso. Uma nova aplicação do perigo, contido no conselho de Voltaire. “Se minha decisão não pode ser revista, por que devo perder tempo pensando maduramente antes de decidir”?
Reconhecida, assim, a necessidade, em geral, do direito de recorrer, cabe examinar se tem havido, ou não, na justiça brasileira, um abuso na utilização dos recursos como forma apenas de “ganhar tempo” e postergar o cumprimento de obrigações, principalmente de ordem financeira.
Mesmo sem examinar eventuais estatísticas sobre recursos protelatórios, impossíveis de elaborar por lidar com matéria subjetiva — como saber o que se passa na cabeça de quem redige um recurso? —, a impressão preponderante, e acertada, é a de que os tribunais brasileiros estão abarrotados de processos porque apelações, e recursos outros, oferecem muitas “vantagens” (demora) e praticamente nenhum “perigo”. “Como há sucumbência apenas na primeira instância, por que” — pergunta-se o devedor — “não usar e abusar dos recursos, jogando o pagamento de dívidas para um longínquo futuro?” Recorrendo, com mínimo ônus financeiro — as custas da apelação são baixíssimas, 1 ou 2% do valor da condenação —, a parte devedora livra-se do desembolso por vários anos. Uma mina!
Risco de condenação em honorários só é levado em conta antes de ajuizada uma ação. Muitos possíveis autores de ação desistem dela quando são informados pelo advogado de que vai perder a ação e ainda terão que pagar honorários à parte contrária. Proferida a sentença, porém, existirá apenas lucro à vista se o processo continuar. A não ser quando a sentença determina que o devedor continuará devendo — enquanto tramita o processo — os imensos juros convencionados no contrato bancário. Aí, o devedor em dificuldade, levado pelo desespero, sentindo que a dívida tornou-se impagável em poucos meses, fecha os olhos e confia em algum milagre, ou “Refis”, ou moratória, ou a própria morte, com olvido do problema. Toda essa “mecânica” protelatória, porém, é uma tática que joga uma espécie de areia no complicado e vasto mecanismo judiciário, já emperrado pelo volume de demandas e concebido apenas para decidir controvérsias. Não para aliviar devedores com problemas de caixa, sejam eles um particular ou um governo. E nossa justiça é muito utilizada para esse específico fim: retardar. E não se acuse os advogados por essa atitude. Ele faz o que pede ou interessa ao cliente, usando dos recursos previstos em lei. Se não fizer isso, o cliente muda de advogado.
Como resolver ou diminuir esse tipo de problema? Instituindo-se, por lei, a “sucumbência recursal”, isto é: em todo recurso não conhecido, ou improcedente, será imposta uma condenação autônoma em honorários. Fazendo o recorrentes sentir, no bolso, que se ele conseguiu, com o recurso, a “vantagem” da demora, terá que “indenizar” por isso a parte contrária, com o aumento da sua condenação em honorários. Medida justa, por sinal, porque, com seu recurso — sabendo não ter razão —, ele obrigou a parte credora a custear seu advogado por mais tempo, para contra-arrazoar os recursos e seguir atentamente sua tramitação. Quando o juiz, na primeira instância, fixa a condenação em honorários, ele não tem como saber se o perdedor vai se conformar com sua decisão ou se vai recorrer inúmeras vezes. E na maioria das vezes, o devedor recorre seguidamente, se a dívida é alta e a maquininha de calcular comprova que a demora será economicamente vantajosa.
Para diminuir a rigidez desta sugestão, seria admissível que na lei que instituísse a “sucumbência recursal” ficasse constando que o tribunal que julgasse o recurso teria a faculdade, mera permissão, de isentar o recorrente — perdedor — de nova carga de honorários, se o caso justificava um reexame, em razão da alta complexidade da matéria. Em suma, se o recurso fora interposto de boa-fé, mesmo não sendo provido. Disse atrás que isso seria “admissível”, em tese, mas considerando a proverbial “bondade”, ou “moleza de coração” do juiz brasileiro, melhor seria que sempre houvesse uma autônoma condenação em honorários em cada recurso improvido. Um percentual variável conforme a existência, ou não, da boa-fé do recorrente. Se claramente protelatório, 15 ou 20%; se de boa-fé, 5 ou 10%.
Se tais propostas parecem duras ao leitor, é preciso lembrar que um país não pode crescer, como devia, quando seu judiciário é pouco eficaz, seja qual for a explicação para essa ineficácia. Fragilidades na sistemática judicial retardam o crescimento econômico do país. Desaconselham vendas a prazo. Algumas empresas estrangeiras desistem de eleger o país como local de investimento porque sabem que, se precisarem litigar aqui para solução de um problema — financeiramente importante — terão que esperar por muitos anos o quase quimérico “trânsito em julgado”.
A “sucumbência recursal” é o remédio que ainda falta para um “saneamento” da justiça cível. É eficaz porque mexe “no bolso”. Por mais que o legislador tente contornar o problema do recurso protelatório, criando tais e quais dificuldades, o “protelador” — que atende o óbvio interesse do cliente — sempre inventará uma saída — recursal ou via mandado de segurança ou agravo regimental — para criar incidentes processuais que acarretem demora. Como as petições de recursos, ou agravos regimentais, ou mandados de segurança não podem ser simplesmente rasgados ou devolvidos à parte, a tática de protelação continuará, talvez agravada e gerando ainda mais incidentes processuais.
Finalmente, já que conversamos sobre medidas práticas para diminuir a lentidão judicial — lentidão propiciada pela legislação, algo inocente por não perceber o objetivo oculto de muitos recursos — seria oportuno que a lei processual estimulasse a concisão e clareza nas petições, com isso, diminuindo consideravelmente o volume de papéis juntados nos autos de processo.
Toneladas de papel seriam aliviadas dos autos, em todo o país, houvesse estímulo à concisão nas petições e maior critério na juntada de papéis. Esses papéis precisam ser lidos pelo juiz e muitas vezes são juntados apenas para tumultuar e retardar a decisão judicial. O “juntador” abusivo sabe que quanto mais volumoso o processo, maior a aversão, maior a força de vontade exigível do juiz para penetrar naquele emaranhado de palavras e documentos destinados apenas a cansar. Além do mais, atualmente, se o réu pode ganhar uma causa importante com argumentos contidos em uma única folha de petição — invocando a prescrição, por exemplo —, ele não fará isso porque sua concisão e clareza só lhe trarão prejuízo profissional. Como “escreveu pouco”, o juiz fixará um percentual de honorários muito baixo. Afinal, pensa o juiz, o advogado “não trabalhou muito, não escreveu muito”. Em vista disso, para que os honorários não sejam módicos demais, o advogado vê-se obrigado a, desnecessariamente, escreve laudas e laudas, “comprovando” que é merecedor de bons honorários. Até mesmo para impressionar o cliente o patrono vê-se como que obrigado a se alongar por páginas e páginas, fazendo citações inúteis, mostrando ao cliente o pequeno “romance” que escreveu, em forma de petição. Em suma, a concisão não é premiada, e sim punida.
Se, porém, a lei processual, no § 3º do art. 20 do Cód. Proc. Civil estabelecesse que na fixação dos honorários advocatícios da parte vencedora fossem levados em conta a “concisão e clareza das petições, bem como o bom critério na juntada de documentos”, o advogado não se veria forçado a fazer citações excessivas, inúteis, só para impressionar o cliente — que também, como leigo, valoriza o “volume”. Poderia explicar que a própria concisão aumentará a verba honorária, argumento de ordem econômica que convencerá o cliente de que contratou um bom advogado.
Está na hora do legislador brasileiro perceber que a aplicação da justiça já não se resume em fazer justiça minuciosa em cada caso. É essencial estudar o lado quantitativo, global, do funcionamento de uma máquina que, ou devora, ou será devorada por vários milhões de processos pendentes.
(21-2-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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