Por Patricia Stefoni Fernandes[1]
Resumo
Para falarmos de Assistência Social é necessário entendermos a vinculação do tema com o metaprincípio da dignidade da pessoa humana e a sua forma de materialização dos direitos fundamentais/humanos.
Após este panorama, procuraremos evidenciar o caráter de direito social que se apresenta na Assistência Social e como este caráter se apresenta no contexto da Ordem Social, estampada no Título VII da CRFB.
Traçaremos breves linhas a respeito da origem da Assistência Social e de como ela foi tratada no Brasil antes de sua inauguração mais aparente na Constituição Federal de 1988.
No aspecto constitucional, veremos sua inserção na Ordem Social e maneira como essas colocações demonstram a necessidade de buscarmos a efetivação de uma sociedade que busque a ideia de um caminho percorrido em conjunto com o Estado, deixando de lado a ideia de que a Assistência Social tem caráter meramente assistencialista.
Abstract
In order to talk about Social Assistance, it is necessary to understand the link between the theme and the meta-principle of the dignity of the human person and its way of materializing fundamental / human rights.
After this panorama, we will try to show the character of social law that is presented in Social Assistance and how this character is presented in the context of the Social Order, stamped in Title VII of the CRFB.
We will briefly outline the origins of Social Assistance and how it was treated in Brazil before its most apparent inauguration in the Federal Constitution of 1988.
In the constitutional aspect, we will see its insertion in the Social Order and how these positions demonstrate the need to seek the effectiveness of a society that seeks the idea of ??a road traveled together with the State, leaving aside the idea that Social Assistance has purely welfare.
Palavras-Chave: Assistência-social. Dignidade da pessoa humana. Direitos Sociais. Mínimo Existencial. Ordem Social.
Keywords: Social assistance. Dignity of human person. Social rights. Minimum Existential. Social Order
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.
Quando pensamos a Assistência Social sob a ótica da Constituição Federal de 1988, instintivamente nos vem a ideia de dignidade da pessoa humana[2]. Este metaprincípio, que como um raio vetor se projeta sobre o homem independentemente de sua inserção em sociedade, deixa clara a necessidade de que os seres humanos sejam reconhecidos, todos eles, debaixo de um mesmo patamar. E este, como se verá é o fim da Assistência Social.
Não há qualquer situação que possa justificar a relativização da dignidade da pessoa humana na sua aplicação no seio das sociedades, e por se tratar de fundamento é instituto fortemente abstrato, cabendo aos direitos fundamentais/humanos[3] materializar a sua essência.
Sob um prisma mais doméstico, importante citar o rol do artigo 6° da CRFB. Nesse dispositivos foram inseridos os chamados direitos sociais e bem ali, dentro do Título II da Carta Mãe, que se denomina “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, já temos a primeira pincelada da CF/88 sobre a Assistência Social:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
É evidente, assim, que o tema voltado à Assistência Social está umbilicalmente ligado aos direitos fundamentais/humanos, e mais pontualmente aos direitos sociais, os quais se prestam, todos, a materializar o metaprincípio da dignidade da pessoa humana.
A ASSISTÊNCIA SOCIAL
Postas aquelas linhas iniciais, nos propomos a tratar um pouco sobre a Assistência Social antes do cenário constitucional de 1988.
Para tanto, é importante mencionar que a origem do termo “Assistência” se vincula à ideia do Cristianismo. O ensinamento bíblico de fazer o bem, de estender a mão ao próximo, amando-o como a nós mesmos está claramente aceso na essência do que se entendeu, por muito tempo, por Assistência Social. Em outras palavras, a noção de solidariedade no sentido mais puro da palavra, chegando mesmo a se igualar ao sentido de caridade, era o mote inicial da Assistência Social.
Não obstante sua origem, hoje a ideia que se une ao conceito de Assistência Social, no nosso sentir, deixou de ser aquela ideia de assistencialismo (no sentido pejorativo do termo). Não se pode mais ver, nos serviços de Assistência Social um simples “dar por dar”. Entendemos que a Assistência Social na sociedade moderna deve visar o alcance da plenitude do indivíduo.
Explicamos. No conceito de Estado formulado pelo Professor Dalmo Dallari[4] traça-se a ideia de que a finalidade do Estado é o bem comum de um povo e este bem comum, como nos ensina a Professora Maria Garcia, deve ser lido sob as óticas física e psíquica para que seja pleno. E aqui inserimos a Assistência Social como um “braço” do Estado para o atingimento daquela finalidade.
Ora, ao determinar o art. 193 da CRFB que a Ordem Social (em cujo conteúdo se insere a Assistência Social) tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais fica evidente que o alcance daquela finalidade do Estado traçada por Dalmo Dallari tem como caminho, também, a Assistência Social.
No entanto, é preciso que fique claro que no nosso sentir, embora o Estado tenha de visar o bem comum do povo, e a Assistência Social seja um instrumento para o alcance desta finalidade – na medida em que devolve ao núcleo da sociedade aquele que por razões diversas foi marginalizado – o auxílio que o Estado oferece a quem necessita da Assistência Social tem de ser temporário.
Ao Estado deve ser atribuída a tarefa de “dar as mãos” a quem necessitou da Assistência Social, retira-lo da marginalização e permitir que ele caminhe por si só. Ora, a dignidade da pessoa humana se efetiva mais plenamente no momento em que o cidadão, inserido no mercado de trabalho e no seio da sociedade (e este é o fim da Assitência Social) é posto em condições de igualdade material aos demais integrantes do grupo social para que por si só alcance os direitos sociais insertos no rol do art. 6° da CF/88.
Por óbvio, este entendimento pressupõe que o Estado cumpra a contento a sua função (tripartida em executiva, legislativa e judicial) permitindo e garantindo que a sociedade se desenvolva e alcance os objetivos plasmados na ordem constitucional como um todo. Se esta realidade não se mostra efetiva no Brasil, o que devemos buscar é o cumprimento deste papel do Estado, e não que ele seja o provedor absoluto de todas as necessidades dos cidadãos.
Aqui é importante que façamos um breve comentário sobre a teoria do mínimo existencial. Neste aspecto, achamos oportuno o ensinamento de Ana Paula Barcelos que mencionando sobre a impossibilidade de se invocar a teoria da “reserva do possível” quando o assunto for o mínimo existencial dos direitos sociais, deixa claro que cada direito social possui uma parcela de mínimo existencial a exemplo da educação fundamental no direito “educação”.
Concordamos com esse entendimento, salvo no tocante à “assistência aos desamparados”. Não vemos dentro da Assistência Social um patamar civilizatório mínimo, porque a nosso ver ela própria é um patamar mínimo para o alcance de outros direitos sociais. A Assistência Social, por si só, é um mínimo existencial e nas palavras de José Afonso da Silva[5]:
(…) A Assistência Social corresponde a um dever do Estado mediante o estabelecimento de políticas de seguridade social que proveja os mínimos sociais (…).
Desta forma, temos que a Assistência Social é mais um instrumento do Estado para proporcionar ao indivíduo o alcance de direitos fundamentais e, mais especificamente, de direitos sociais para a materialização da dignidade da pessoa humana.
A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Antes de falarmos especificamente da CF/88 é importante mencionarmos um panorama sucinto da Assistência Social nas Constituições e no ordenamento como um todos, anteriores a 1988.
Inicialmente, a Assistência Social no Brasil era fundamentalmente cuidada por grupos da sociedade civil. O Estado estava presente, mas de maneira coadjuvante.
No final da década de 30 foi criado o Conselho Nacional do Seguro Social – CNSS – que, vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, auxiliava as organizações que prestavam serviços de assistência social.
Já na década de 1940 foi criada a Legião Brasileira de Assistência – LBA – que era gerida, em regra, pelas primeiras damas de municípios – notamos aqui o Estado um tanto mais próximo desta iniciativa. A LBA foi criada com a finalidade de atender vítimas de calamidades com ações pontuais, urgentes e fragmentadas. Na década de 70, com a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social a LBA foi a ele vinculada.
No final da década de 70 foi criado o SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, que passou a cuidar de todos os assuntos relacionados ao tema Assistência Social.
Atualmente, todos os assuntos vinculados à Assistência Social são basicamente tratados pelo Instituto Nacional da Seguridade Social – INSS.
Foram, assim, diversos marcos que ao longo da história vieram perpetuando a Assistência Social como um serviço público a ser prestado mais fortemente pelo Estado, porém, frise-se, não exclusivamente por ele.
Em termos constitucionais as Constituições de 1824 e 1891 foram omissas sobre o tema. A de 1934 dizia “é obrigatório, em todo o território nacional, o amparo à maternidade e à infância, para o que a União, os Estados e os Municípios destinarão 1% de suas rendas”.
A constituição de 1937 voltou à omissão. E a de 1946 trouxe a mesma previsão que a de 1934, acrescentando a necessidade de amparo aos adolescentes. A Carta de 1967 manteve a alteração e a Emenda de 1969 trouxe para o assunto Assistência Social a “educação dos excepcionais”.
Pois bem, foi a Constituição de 1988 que firmou de maneira mais evidente na ordem constitucional o tema Assistência Social, certamente muito pelo seu caráter democrático.
É de se notar que já no seu preâmbulo a Carta Cidadã menciona que ela própria veio para instituir um Estado Democrático com o fim de assegurar direitos sociais e individuais e especifica, entre outros, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.
Ora, dissemos anteriormente que o bem estar e a justiça sociais são objetivos da Ordem Social (art. 193 da CF/88), e ainda que assim não fosse, foi com os olhos na busca desses ideais que se firmou no Brasil, pela Constituição Federal de 1988, um Estado Democrático. E a Assistência Social, inserida no Título VIII da CR/88, intitulado “Da Ordem Social”, é instrumento para tanto.
É assim que no artigo 203 da CRFB se prevê que a Assistência Social deve ser prestada a todos os que necessitarem[6] dela, obedecendo aos objetivos listados nos incisos de I a V daquele dispositivo.
O primeiro inciso trata da proteção a alguns institutos como: família, maternidade, infância, adolescência e velhice. E, não é à toa que esta criteriosa seleção foi adotada pelo constituinte. Se analisarmos um a um os institutos insertos no inciso I do art. 203 veremos que, na forma como foram dispostos, constituem o ciclo da vida humana e, sendo o homem um sujeito de direito que assume o núcleo protetivo da Constituição de 1988, nada mais justo que a Assistência Social tenha este ciclo como objetivo de proteção.
O inciso II a nosso ver é desnecessário. Isso porque, quando o caput do art. 203 menciona a expressão “a quem dela necessitar”, já demonstra o qualitativo “carente”, repetido no inciso II. E, as crianças e os adolescentes inseridos na proteção do inciso segundo já estão abarcados pelo inciso I que trata da infância, da adolescência e da família. Mas, o que abunda não prejudica.
O inciso III trata da integração ao mercado de trabalho e é criticado por vozes marcantes, por entenderem que este assunto deveria ter sido unicamente tratado pelo art. 7º da CRFB que cuida dos direitos trabalhistas. Ousamos discordar, eis que o art. 193, como já dissemos, deixa evidente que a base da Ordem Social é o primado do trabalho. Absolutamente oportuno, portanto, que seja tratado, além de um direito fundamental, como um objetivo da Assistência Social, deixando cristalino o entendimento que defendemos da necessidade de reinserção do necessitado ao núcleo econômico da sociedade.
O inciso IV desperta a atenção para a necessidade de a Assistência Social voltar os olhos à pessoa com deficiência habilitando-a e/ou reabilitando-a para o mercado de trabalho. Novamente quis o constituinte rememorar primado do trabalho.
O inciso V trata da garantia de um salário mínimo mensal para a pessoa com deficiência e para o idoso (maior de 65 anos) que comprovem não possuírem condições para o próprio sustento, ou de serem sustentados por suas famílias. Este benefício de prestação continuada foi regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS e deve obedecer a vários critérios estabelecidos na legislação (Lei 8742/93).
Fica evidente, por todo o exposto, que a CRFB tratou o tema Assistência Social com a devida importância demonstrado, por meio de uma interpretação sistemática sua vinculação com os direitos humanos/fundamentais e, ao cabo, seu caráter instrumental para o alcance da dignidade da pessoa humana.
CONCLUSÃO
A Seguridade Social como um todo (dentro da qual se insere a Assistência Social ao lado da Previdência Social e da Saúde) acode o indivíduo vítima de determinadas contingências sociais.
Hoje, como protagonista da prestação destes serviços, o Estado deve ter a companhia da sociedade civil nesta realização, afinal, como nos ensina Raymond Aron “o Estado não tem para dar a ninguém um tostão que não tenha sido tirado de alguém”.
E é em razão de tudo isso que entendemos a importância da previsão do art. 193,I da CRFB quando trata do primado do trabalho como base da Ordem Social, para o alcance dos objetivos desta mesma ordem: o bem estar e a justiça sociais.
Se o trabalho é a base da Ordem Social, a premissa é que o indivíduo tenha capacidade de se desenvolver por meio dele, atingindo sua plenitude como ser humano. Se esta premissa falha, aparece o Estado, também por meio da Assistência Social, para torná-la verdadeira. E aqui, ele – Estado – não pode faltar.
Afinal, como nos ensinou o mestre Miguel Reale, em texto publicado na década de 90, tratando do “social-liberalismo”: “Ao lado do particular amparando-o e completando-o em suas deficiências, é que se deve colocar o Estado. Não almejo, pois, o Estado abúlico, indiferente à vida social e econômica, o Estado frio e distante que alguns liberais modelam a exemplo da própria displicência. Entre o Estado absorvente dos socialistas e o Estado evanescente dos liberais, há uma ‘terceira posição’ … a da democracia social e econômica, empenhada na conciliação das iniciativas livres com a orientação e o estímulo do poder público, conscientes todos, particulares e homens de governo, de que sem o contínuo incremento racionalizado e técnico das riquezas só se ilude o povo com a falsa distribuição caritativa da miséria”.
Referências
Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. São Paulo, 2016
GARCIA, Maria. Limites da Ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade / Maria Garcia. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2014
Fernandes, Bernardo Gonçalves, pg. 304 Curso de Direito Constitucional / Bernardo Gonçalves Fernandes – 9. Ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Jus PODIVM, 2017.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6° Edição. Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2006.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Malheiros, 2012.
[1] Graduada pela PUC-SP em 2007. Advogada. Especialista em Processo do Trabalho pela COGEAE/PUC-SP. Mestranda em Direito Constitucional pela PUC-SP.
[2] Inserida no art. 1º, III da CF/88 é fundamento da República Federativa do Brasil.
[3] Aqui, julgamos importante distinguir direitos fundamentais de direitos humanos. Grande parte da doutrina trata ambas as expressões como sinônimas, no entanto, há altas vozes que fazem certa distinção, destacando serem os institutos complementares entre si. Os que tratam assim o tema – entre eles o Professor Vidal Serrano Jr e Ingo Sarlet – entendem, sobretudo, haver uma distinção de funções entre os direitos fundamentais. Concordamos com a segunda corrente, e no nosso sentir os direitos fundamentais possuem a função de traduzir a ideia que cada Estado essencialmente traz em sua estrutura sobre o que seria fundamental à existência digna de seus súditos. E os direitos humanos, como sendo os direitos que uma ordem supranacional – e consequentemente, supraconstitucional – absorveu para si, tamanha a sua importância. É por este motivo que entendemos que todos os direitos humanos são considerados fundamentais – não necessariamente em todas as ordens jurídicas. E todos os direitos fundamentais podem se tornar direitos humanos.
[4] Elementos da Teoria Geral do Estado. Dalmo de Abreu Dallari.
[5] Curso de Direito Constitucional Positivo.
[6] Neste ponto, embora não seja este o entendimento majoritário da doutrina, vemos uma perfeita harmonia entre os princípios da universalidade e da seletividade do art. 194 CF/88, na medida em que todos os cidadãos poderão ser atendidos pela Assistência Social – universalidade – desde que dela necessitem – seletividade.