A ideia de atribuir à um órgão de Estado o controle da política monetária à revelia da fiscalização popular por meio de órgãos eleitorais possui diversos adeptos no debate econômico brasileiro. Muitos deles buscam respaldar essa defesa numa maior eficiência econômica de um corpo qualificado destinado exclusivamente para esse fim. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.696 de 2021, questionando a constitucionalidade da Lei Complementar nº 179/2021 oferece diversos aportes para o debate sobre a veracidade destes pressupostos.
O estabelecimento de um Estado administrativo constantemente leva a criação de instituições que não correspondem ao modelo clássico de supremacia parlamentar na tomada de decisões políticas de impacto nacional. Pegando como modelo a autonomia do banco central estadunidense, seu modelo visava atingir dois objetivos, resumidos na dicotomia menor inflação/pleno emprego.
A autonomia do banco central tal como foi realizada no Brasil deixa a desejar inclusive se comparada com sua inspiração inicial no continente norte-americano. Enquanto nos Estados Unidos a autonomia se justifica como uma forma mais eficiente de se atingir os objetivos da administração pública, no Brasil ela foi implementada como uma forma de escamotear desta mesma administração importante ferramenta de controle da política monetária, com impacto na política de preços de diversos insumos, bem como na dimensão do conjunto da dívida pública nacional e dos Estados.
Ao longo da decisão que consagrou a autonomia do Banco Central, o STF se pautou em dois pilares necessários à sua argumentação, mas contraditórios entre si. Em primeiro lugar se pautou na ideia de deferência ao poder legislativo em questões propriamente políticas, que de acordo com a corte suprema seria o caso da autonomia do Banco Central. Podemos de início afirmar que as acusações de ativismo judicial dirigidas ao STF (de ambos os lados do espectro político) colocam em dúvida o caráter genuíno desta deferência ao poder legislativo. A impressão que se passa é de que esta deferência se dá muito mais em pautas onde a agenda congressual e do tribunal coincidem do que de fato por um efetivo zelo pela atividade parlamentar.
Além disso, dentro da mesma decisão, encontramos afirmações de que a autonomia do Banco Central pode ser justificada pela maior eficiência que confere ao manejo da política monetária. Em resumo, seria uma decisão técnica, não propriamente política. Percebemos aqui então uma iminente contradição entre o primeiro argumento que ressalta a natureza política da decisão parlamentar e o segundo, que a confirma por ter suas proezas técnicas supostamente comprovadas na literatura e experiência internacional.
Não buscamos aqui neste artigo esgotar a análise sobre as consequências da autonomia do Banco Central, mas se mostra necessário explicitar que a declaração de sua constitucionalidade parte de uma prévia concordância com a pauta por parte do tribunal e uma posterior busca pelos argumentos que possam justificar esta concordância, mesmo que estes argumentos estejam em atrito entre si.
O próprio horizonte de um moderno Estado administrativo, dotado de instituições e prerrogativas capazes de garantir a estabilidade política e a prosperidade econômica, não se encontra respaldado na autonomia do Banco Central tal como foi implementada no Brasil, ainda que os argumentos em seu favor no acórdão supracitado convirjam todos nesse sentido.
Enquanto na experiência norte-americana o surgimento do Banco Central (FED) de forma independente visava forçar o rumo da economia na direção do pleno emprego em equilíbrio com a estabilidade monetária, a autonomia adotada no Brasil visa hegemonizar uma visão ortodoxa em relação à taxa de juros e remover da administração pública a capacidade de manobra-la em favor do combate ao desemprego. Os pressupostos pretensamente técnicos, compartilhados pelos membros de todos os poderes da União, justificam esta surpreendente concordância e deferência ao legislativo mesmo em meio a constante atrito institucional entre os poderes.
Queremos deixar claro que se trata aqui de uma ponderação quanto a real substância de uma decisão da suprema corte, para além de sua linguagem. Ainda que termos consagrados na doutrina como a deferência ao legislativo sejam utilizados, isso não implica necessariamente numa atenuação da natureza ativista de determinada corte, mas sim que em determinados casos suas concepções e visões de mundo podem se alinhar com aquelas dos demais poderes.
Somente a análise dos pressupostos inerentes à decisão pode deixar claro se de fato há um equilíbrio e preservação da separação de poderes ou se a declaração de constitucionalidade não é também em si mesma uma forma de ativismo. Levando em consideração a incongruência entre os argumentos apresentados e a disparidade entre a forma com que a autonomia do banco central se apresentou nos Estados Unidos e a forma com que se apresenta aqui é compreensível que se olhe com sérias dúvidas sobre as reais intenções da corte bem como dos interesses por trás da lei. Ativismo não se dá somente através da declaração de inconstitucionalidade e o tecnicismo não pode servir como uma justificativa para que deixemos de averiguar quais interesses estão contemplados em uma determinada decisão e de que maneira afetam a estabilidade da ordem constitucional e a eficiência dos mecanismos de controle de constitucionalidade.
Autor:
Luiz Felipe Domingos – Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Santa Catarina com ênfase na organização Federalista do Estado. Pesquisador do GConst/UFSC/CNPq.