Ao ler Leonardo Boff que é teólogo, filósofo e escritor, além de professor somos capazes de ampliar a capacidade de aprender e refletir. Em seu texto intitulado: “Cada um é São Jorge, cada um é Dragão” trouxe esclarecimentos sobre a semântica profunda dessas duas figuras.
De um lado, um Santo Guerreiro[1] e, de outro, o temível dragão. Celebramos em 23 de abril o dia de São Jorge, eu sou devotíssima. Aliás, é feriado municipal na cidade do Rio de Janeiro.
Lembrou-nos que a figura do dragão é recorrente em diversas culturas e, até obtendo significados opostos. Enquanto no Ocidente prevalece o lado negativo, pois representa o mal e o mundo assaz ameaçador das sombras.
No Oriente, o mesmo dragão corresponde ao símbolo nacional da China, sendo reconhecido como o senhor das águas e da fertilidade. Também no Japão possui o significado de sabedoria, força poder e proteção, além de riqueza.
Na tradição japonesa, a lenda mais conhecida é a da Deusa e o Dragão da região do lago Biwa. A narrativa conta que o animal atacava crianças que brincavam perto do lago na primavera.
Certa vez, a Deusa Benten estava passando pelo local e ouviu os lamentos de pais desesperados.
Então, prometeu resolver a situação, mesmo sabendo das ações violentas do Dragão. No fundo, ela sentia pena, pois sabia que sua crueldade era fruto da solidão de uma vida se escondendo na escuridão.
Certo dia, Benten foi avistada em cima de uma nuvem tocando lindamente um instrumento de cordas característico na cultura japonesa, o biwa. Quando o Dragão se preparou para atacar, ela não se amedrontou, pelo contrário, abriu um largo sorriso e perguntou:
– Quer se casar comigo? Prometo te amar para sempre. O Dragão, emocionado, concordou com a proposta.
Dizem que, após aquele dia, as crianças passaram a brincar com tranquilidade no lago que recebeu o nome de Biwa em homenagem a Deusa Benten, por tocar o coração do Dragão com o instrumento.
As mais antigas representações mitológicas de criaturas consideradas como dragões são datadas de aproximadamente 40 000 a.C., em pinturas rupestres de aborígenes pré-históricos na Austrália.
O dragão alado é um dos símbolos de representação do princípio transcendente. No Antigo Testamento, o dragão assim como o Egito, eram chamados de Raab que era algo mau e pecaminoso, donde ele precisava ser sacrificado.
Existe aí, uma clara analogia entre a imagem do dragão enquanto símbolo da Mãe-Terrível que precisa ser sacrificada pelo herói para que esse possa se livrar de suas garras. Ele precisa ser derrotado enquanto imagem materna negativa que exprime a resistência contra o incesto e o medo dele.
O dragão também costuma aparecer nos mitos como uma representação de Tiamat ou de Leviatã, monstros aquáticos e que personificam o mar. Na saga grega Tifão aparece como um dragão, assassino de Hórus, e ainda, símbolo da Mãe-Terrível. Também na arte cristã, era considerado um símbolo do pecado e do paganismo[2].
A palavra “dragão” é de origem grega e corresponde a “grande serpente”. A hidra grega, por sua vez, era símbolo dos vícios e instintos que tanto precisam ser sublimados, conforme esclarece Ricardo Mário Gonçalves, professor de História da USP apud Boff. E, está presente igualmente na tradição judaico-cristã.
Entre os astecas era a serpente alada ou quezalcoatl, sendo uma autêntica expressão de sua identidade cultural.
Em verdade, muitos antropólogos e psicólogos que laboram com a temática dos arquétipos de Carlos Gustavo Jung[3], afirmam que o dragão representa uma das figuras transculturais mais ancestrais de toda história humana. O dragão representa o yang, é símbolo de sabedoria; é forte, astuto e sabe a hora de agir. É um espírito velho e sábio.
Para Carl Jung que analisou o arquétipo do Dragão para simbolizar o universo das emoções profundas e o nosso inconsciente. Para Jung, a representação de algo que permite o encontro, a fusão do eu com o supremo tesouro da sabedoria do espírito.
Refere-se a percepção de nossa identidade profunda, aquele “eu” que não nos é dado simplesmente conhecer pelo mero fato de sermos humanos. Afinal, tem que ser conquistado numa luta diuturna, tão marcada por lutas e contínuas ameaças.
Dessa forma, afigura-se o dragão como sendo nosso inimigo principal, que deseja devorar ou impedir que se liberte e trilhe o caminho da autonomia e liberdade. Apenas dessa forma seríamos plenamente humanos.
Juntamente com o dragão, vem o cavaleiro São Jorge e com ele trava uma luta renhida. E, Leonardo Boff questiona: Qual é o significado do dragão e de São Jorge? Segundo os estudiosos, tanto um como outros são partes integrantes da realidade humana, pois cada um de nós, carrega um dragão e um São Jorge dentro de si.
Afinal, a vida é feita sempre de luz e sombras, do dia-bólico, isto é, aquilo que separa, e do sim-bólico, isto é, aquilo que une. Quem triunfará São Jorge ou o dragão? A luz ou a sombra? Quem vencerá será nossa melhor parte ou nossa pior parte?
Somente a maturidade nos faz perceber que ambas as partes coexistem e, sentimentos sua presença em cada momento, seja na forma da raiva ou de afeto, ou mesmo de violência[4] ou bondade. Seja num momento de indignação e fúria, ou de resignação e resiliência[5].
A relevância da identidade poderosa e forte de São Jorge que nos faz acreditar ser possível enfrentar as nossas sombras e, encarar o dragão e, ainda, triunfar nossa parte melhor. O caminho evolutivo leva a humanidade do inconsciente para o consciente, numa vinculação com o todo para emergência da autonomia do ego livre e forte.
A primeira etapa de desenvolvimento a integração da sombra, isto é, a tomada de consciência do inconsciente pessoal, os arquétipos persona e sombra, que sem a qual é impossível qualquer conhecimento da anima e do animus.
Tal passagem, sabemos, é sempre dramática porque o contexto e os mecanismos sempre desejam nos manter cativo e, sob o jugo da emergência de nossa identidade. É preciso coragem, esforço para se libertar todos os dias, e também conquistar arduamente a própria identidade e, também nossa liberdade pessoal que vai do corpo ao espírito.
São Jorge que nos ensina que na luta, podemos ser guerreiros e vencedores e, ao enfrentar o dragão mostra a força do ego e da própria identidade, sagrando-se vencedor. Mas, a vitória não é conquista de uma vez por todas. Ela precisa ser renovada a todo instante, na medida em que as amarras vão se erigindo. Então, São Jorge simboliza a fonte de energia e de força que nos renova para participar da luta até galgar a vitória.
Mas, por mais que lutemos e vençamos, é preciso sempre estar atento, pois o dragão está sempre a nos espreitar. Sempre está acompanhando, pois o lado obscuro é que nos impede a plena humanidade.
Há muitas lendas existentes sobre São Jorge e, nestas, não mata o dragão, mas o vence, mantendo-o domesticado, submetido aos imperativos do eu e da identidade pessoal. Enfim, o dragão não pode ser negado e extinto, apenas integra a realidade.
Precisamos ser humildes e evitar a embriaguez da demasiada autoconfiança. Eis, o porquê da eterna vigilância e a referência de São Jorge que não apenas nos compensa a nossa falta de energia, mas que nos pode valer poderosamente.
São Jorge em sua famosa representação é o patrono da Catalunha, e na figura, aparece o dragão envolvendo todo corpo do santo. Já noutra gravura, a de Rogério Fernandes, São Jorge segura o dragão pelo braço, colocando o rosto do dragão, nada ameaçador diante de seu rosto. Enfim, eis um dragão humanizado, integrando a unidade com São Jorge.
Noutras imagens, o dragão aparece como animal manso sobre o qual o santo de pé o conduz sereno e não com a lança pontiaguda. Enfim, quem não renega o dragão, mas o mantém sob o seu domínio, obtém a síntese feliz dos opostos tão presentes na vida humana.
Abandona o sentimento de ser dividido, pois encontrou a justa medida e adquiriu a harmonização de seu ego e de sua identidade luminosa com o dragão sombrio, construindo um equilíbrio dinâmico do consciente com o inconsciente, da luz com a sombra.
Enfim, da razão com a paixão, do racional com o simbólico, da ciência com a arte e, enfim, da arte com a religião. Ao final, emerge-se um ser mais rico, mais sereno e mais compreensivo irradiando sua benéfica aura em todo seu redor.
Assim, concluímos que o dragão e o cavaleiro heroico são duas dimensões de nós mesmos. O grande desafio é fazer que o São Jorge tenha a primazia e não deixe que o dragão vença e tire o sentido e o gosto de viver.
Nós brasileiros, particularmente os cariocas são devotos fiéis de São Jorge, é tão forte quanto São Sebastião, que é o patrono oficial da cidade. Mas, este possui um inconveniente que é ser um guerreiro, repleto de flechas, portanto, aparentando estar vencido.
E, o povo[6] sente a necessidade de um santo guerreiro que esbanja coragem e, é vencedor. Assim, São Jorge se mostra como o santo ideal.
Leonardo Boff ainda observa que seguramente os devotos de São Jorge, provavelmente, não sabiam de nada disso, mas, basta que tenham a consciência que a vida se traduz em permanente luta entre o que é bom para mim e para os outros, e entre o que é mau e que deve ser evitado e combatido.
Precisa-se, urgentemente, crer que a virtude é preferível ao vício e, que a palavra final é de São Jorge e não do dragão. Afinal, com fé, nos fortaleceremos para os embates que ocorrem pela vida afora sempre com a poderosa e inspiradora assistência do guerreiro São Jorge.
Referências
AUGRAS, M. A dimensão simbólica: o simbolismo nos testes psicológicos. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1980.
BOFF, Leonardo. Cada um é São Jorge, cada um é dragão. Disponível em: https://leonardoboff.org/2013/04/22/cada-um-e-sao-jorgecada-um-e-dragao/ Acesso em 26.3.2021.
CAMPOS, Maria do Socorro Maia Chaves Arrais. O Heroi Uma Mitologia da Vida Cotidiana. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9495/000055270.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 27.3.2021.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª edição. São Paulo: Ediouro, 1998.
JUNG, C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Tradução de Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
[1] Nascido no século III na Capadócia, região da atual Turquia, Jorge mudou para a Palestina ainda criança. Na adolescência, iniciou a carreira militar e logo foi promovido a capitão do exército romano. Aos 23 anos passou a fazer parte da corte imperial, exercendo a função de Tribuno Militar. Considerado como um dos mais proeminentes santos militares, a memória de São Jorge é celebrada nos dias 23 de abril e 3 de novembro. Nestas datas, por toda a parte, comemora-se a reconstrução da igreja que lhe é dedicada, em Lida (Israel), na qual se encontram suas relíquias. A igreja foi erguida a mando do imperador romano Constantino. São Jorge é o santo padroeiro em diversas partes do mundo tais como: (países) Inglaterra, Portugal (orago menor), Geórgia, Lituânia, Sérvia, Montenegro, Etiópia, e (cidades) Londres, Barcelona, Génova, Régio da Calábria, Ferrara, Friburgo em Brisgóvia, Moscovo e Beirute. No Oriente, ele é conhecido como “megalomártir”, ou seja, “grande mártir”. Ele também é reconhecido como modelo de virgem masculino, ao lado de São João Evangelista e o próprio Jesus Cristo.
[2] Na perspectiva cristã, o termo foi historicamente usado para englobar todas as religiões não abraâmicas. O termo “pagão” é uma adaptação cristã do gentio do judaísmo e, como tal, tem um viés abraâmico inerente, com todas as conotações pejorativas entre o monoteísmo ocidental, comparáveis aos pagãos e infiéis também conhecidos como cafir (????) e mushrik no Islã. Por esta razão, etnólogos evitam o termo “paganismo”, por seus significados incertos e variados, referindo-se à fé tradicional ou histórica, preferindo categorias mais precisas, tais como o politeísmo, xamanismo, panteísmo ou animismo. Num sentido mais amplo, seu significado estende-se às religiões contemporâneas, que incluem a maioria das religiões orientais e as tradições indígenas da América, da Ásia Central, da Austrália e da África, bem como às religiões étnicas não abraâmicas em geral. Definições mais estreitas não incluem nenhuma das religiões mundiais e restringem o termo às correntes locais ou rurais que não são organizadas como religiões civis. Uma característica das tradições pagãs é a ausência de proselitismo e a presença de uma mitologia viva, que explica a prática religiosa.
[3] Estudos Alquímicos”, Carl Gustav Jung, Editora Vozes. Volume XIII das obras completas de Jung. Apresenta a concordância entre os símbolos do mundo das imagens do inconsciente e os símbolos da alquimia. Jung mostrou que as projeções alquimistas constituíam apenas um caso especial o pensamento em geral, e que também o processo da individuação se parecia com o caminho que os alquimistas já haviam trilhado a seu modo sem sua época. Assim, o autor não trouxe à luz do dia aspectos ocultos da ciência alquímica, mas também “o correspondente histórico à psicologia do inconsciente”.
[4] Cumpre alertar que em toda religião, também o cristianismo, possui muita violência. Além de se centralizar em Deus, elabora-se narrativas sobre o drama paradoxal do ser humano, gerando sentido, uma interpretação da realidade, da história e do mundo. Um exemplo é a lenda de São Jorge que aponta o feroz combate com o dragão. Onde, a priori, o dragão é apresentado alado e com enorme boca que emite fogo e fumaça e um odor mortífero.
[5] A palavra resiliência vem do latim: Resilire, que significa “voltar atrás”. Está associada à capacidade que cada pessoa tem de lidar com seus próprios problemas, de sobreviver e superar momentos difíceis, independentemente da situação, diante de situações adversas e não ceder à pressão, independentemente da situação.
[6] Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo, Ogum é orixá do ferro e da guerra, das lutas, dos embates, das vias-de-fato, filho de Iemanjá, divindade nagô, prestigiosa nas macumbas do Rio Janeiro e nos candomblés baianos. Seu dia é a quinta-feira, com Oxóssi. Dá nome, na Bahia, a terreiros ijexá (jeje) como quetos (quietos, ketu, nagô, iorubano), tanto de Angola e como caboclos. No Rio de Janeiro é poderoso Ogun. Segundo Artur Ramos a cor predileta de Ogum é o azul profundo e seu fetiche pode ser um pedaço de ferro qualquer, claro que depois de preparado pelo pai-de-santo. Representam Ogun na iconografia católica, como Santo Antônio (Bahia), São Roque (Alagoas), São Jorge (Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, São Paulo e São João). Ogum é orixá que tem numerosas alcunhas: Ogum-Delê, Ogum-Mejê, Exu-Bará, Xubará, Subará, Exu-Ogum (Xogum), Oramiã e Oraminha. A saudação a Ogum é feita através do termo “Ogun iee!” Que significa: salve Ogum”.