Foi na manhã de 21 de abril de 1792, Joaquim José da Silva Xavier, vulgo “Tiradentes”, deixava o calabouço, onde hoje é situada a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, atravessou a metade do centro caminhando sob a severa escolta por quase duas horas e, depois, subiu ao patíbulo para ser enforcado. Não obstante ser conhecido no mundo pelo nome de “Tiradentes”, o alferes odiava arrancar os dentes das pessoas. “Ele já se mostrava como um dentista a frente do seu tempo. Naquela época era comum extrair um dente por qualquer motivo, mas Tiradentes não concordava com isso. Dizem que ele procurava várias formas de fazer as pessoas manterem seus dentes originais”.
É provável que estivesse apresentável, ou seja, barbeado e de cabelo cortado e curto, como era comum nessas execuções. Após o enforcamento, seu corpo foi esquartejado. As quatro partes foram postas em alforjes com salmoura, para serem exibidas no caminho entre Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Aquele dia não foi um típico dia, pois as execuções de Estado por crime de lesa-majestade eram muito raras. E, os sinos das igrejas tocaram e dobraram, enfim, a capital da Colônia parou. Como Tiradentes foi condenado por Inconfidência (traição à coroa), os sinos da igreja da cidade não poderiam tocar durante sua execução. “No entanto, conta a história, que no momento de seu enforcamento, o sino badalou cinco vezes”.
Mais tarde, muitas décadas seguintes, o enforcamento de Tiradentes se tornara apenas a lembrança de um esquisito para quem a assistiu. Foi o achado por mera sorte os autos do processo, quando no país surgia um arremedo de movimento republicano que trouxe à tona aquele triste passado histórico.
Tiradentes foi, por sua escolha, o único réu confesso. E, por essa razão, fora o único condenado à forca. Porém, não foi o único inconfidente morto, pois Claudio Manuela da Costa amanhecera enforcado em sua cela um dia após ao depoimento que envolvia tanta gente poderoso. Os outros dois morreram de doença propiciada pelas celas úmidas e fétidas antes do julgamento. E, outros nos trabalhos forçados num exílio desumano. Tiradentes era o de classe mais baixa (mas não era pobre. Ele tinha 43 (quarenta e três) jazidas de ouro. Além disso, foi o único que havia feito propaganda aberta do movimento.
Apesar de ser mineiro, foi no Rio de Janeiro que Tiradentes entrou em contato com as ideias revolucionárias iluministas e também se dedicou a melhorias urbanas na cidade, idealizando o abastecimento regular para a população, a construção de moinhos e serviços de barcas de transporte de passageiros.
A mal contada história da Inconfidência que foi um movimento que tanto inspirou nas ideias dos mesmos filósofos por trás das revoluções dos Estados Unidos e França. E, não fora o único movimento desse jeito, nem tinham todos aqueles homens as melhores das intenções. Enfim, as histórias humanas nunca narram exatamente o que aconteceu, e escondem mais problemas do que parece nos discursos políticos.
Distante dos que acreditam, Tiradentes não era o líder da Inconfidência Mineira, o que não retira o fato de teria sido o que mais se envolvera com a conspiração. Os historiadores afirmam que o Tiradentes cumpria a importante tarefa de ser a conexão dos conspiradores com as pessoas das camadas mais pobres da sociedade.
Quando o movimento foi denunciado, Tiradentes estava em viagem na cidade do Rio de Janeiro, local onde foi preso pelo seu envolvimento com a conspiração. O longo processo de julgamento dos inconfidentes estendeu-se por três anos, e a sentença saiu no dia 18 de abril de 1792. Entre os julgados, alguns foram condenados ao degredo e outros, à morte, no entanto, somente Tiradentes teve sua pena mantida.
A respeito da denúncia de Joaquim Silvério dos Reis, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling afirmam: “[Joaquim Silvério] Contou tudo minuciosamente, várias vezes e por escrito: os detalhes da conspiração, a senha, o nome dos principais conjurados, o projeto político, a estratégia militar”. Um elemento mencionado pelos historiadores que questionam essa representação de Tiradentes é o fato de que ele era um militar e que, portanto, era obrigado a seguir as normas da corporação que permitiam os militares terem, no máximo, um bigode.
De qualquer maneira, o resgate de Tiradentes como herói e mártir, feito pelos republicanos somente no fim do XIX, popularizou-se, e a imagem construída em cima desse discurso, que se estabeleceu e foi transmitida década após década, fez com esse personagem assumisse um lugar destacado na memória histórica brasileira.
Enfim, o dia de Tiradentes, que tanto sonhou com uma República, com maior liberdade para o Brasil, mas acabou enforcado. Consigne-se que Tiradentes tentou várias profissões, a saber: dentista, tropeiro, minerador e engenheiro. Quando decidiu e entrou para a Sexta Companhia de Dragões de Minas Gerais, como alferes, que seria uma espécie de segundo-tenente.
Idealizou o abastecimento regular da cidade, construção de moinhos, trapiches, armazéns além de serviços de barcas de transporte de passageiros. Ironicamente, trinta anos depois de ter projetado essas melhorias, Dom João VI mandou fazer a canalização do rio, seguindo exatamente os planos de Tiradentes. Exatamente um século depois, o engenheiro André Paulo de Frotin canalizou as águas da Serra do Tinguá, dentro dos mesmos moldes antes arquitetado pelo alferes enforcado.
Em verdade, não foi a morte que o transformou em herói. Afinal, só fora reconhecido após noventa e oito anos de sua morte. E, em 1870, o movimento republicano o elegeu como mártir cívico-religioso e antimonarquista. E, somente em 1890 a data de seu enforcamento se tornara feriado nacional.
Tiradentes é o “patrono cívico da nação”, ou seja, o único brasileiro que tem sua data de morte como feriado nacional.
A primeira imagem oficial de Tiradentes em 1890, uma pintura de autoria de Décio Villares, apresentou um Tiradentes como Cristo, com barbas e cabelos longos. Segundo os relatos da época, Tiradentes era alto, magro e bastante feio. Nunca usou barba e cabelos longos. E, como militar o máximo permitido era um discreto bigode.
Apesar de não ter se casado, Tiradentes deixou dois filhos, João que teve com a mulata Eugênia Joaquina da Silva e Joaquina, fruto de seu affair com a viúva Antônia Maria do Espírito do Santo. Aos quarenta anos, Tiradentes se apaixonou por Ana, filha de um sargento, que tinha apenas quinze anos. Porém, o romance não logrou êxito, pois a moça já se encontrava prometida a outro homem.
Depois da sua execução, a casa de Tiradentes em Vila Rica foi queimada, jogaram sal grosso no chão para que nunca mais crescesse nada naquelas terras e seus parentes foram todos condenados infames.
Suas derradeiras palavras foram: “Pois seja feita a vontade de Deus. Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação da minha pátria”, teria dito Tiradentes ao ouvir serenamente a sua sentença de morte, porém, alguns relatos não oficiais, dizem que, após subir os 21(vinte e um) degraus para chegar à forca, ele teria dito ao carrasco “seja rápido.”
A versão de que Tiradentes teria sido o principal líder da Inconfidência Mineira explicaria a decisão da rainha de Portugal, D. Maria I, de manter a pena de morte para Joaquim José da Silva Xavier ao invés de alterá-la, como fez em relação aos demais, para o banimento nas colônias portuguesas na África. No entanto, há fortes indícios de que Tiradentes não ocupava senão um lugar marginal, secundário, nas articulações do movimento.
O inventário de seu patrimônio também revela que Tiradentes possuía vestuário e mobílias semelhantes aos utilizados pela aristocracia da época. Sabendo-se que isso era fator importante de distinção social, trata-se de mais um indício que aponta para o fato de que a Inconfidência Mineira, apesar de seu caráter anticolonial, visava construir um Estado independente, que garantisse o controle do espaço político e social aos grupos sociais representados em sua liderança.
O escravo chamado Jerônimo Capitânia tornou-se o carrasco oficial quando trocou sua pena de morte por uma pena de prisão perpétua, ao ter sido encarregado de enforcar Tiradentes. Tiradentes é o “patrono cívico da nação”, ou seja, o único brasileiro que tem sua data de morte como feriado nacional.
Parafraseando Bertolt Brecht: Miserável país aquele que não tem heróis. Miserável país aquele que precisa de heróis.
Referências:
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2013.
FIGUEIREDO, Lucas. Boa Ventura! A corrida do ouro no Brasil (1687-1810). Rio de Janeiro: Record, 2011.
PORTILHO, Gabriela. Por que Tiradentes foi o único inconfidente enforcado? Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/por-que-tiradentes-foi-o-unico-inconfidente-enforcado/ Acesso em 20.4.2021.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STALING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.