VARA DISTRITAL DE ……… – COMARCA DE ……….
INQUÉRITO POLICIAL Nº …../….
JUSTIFICATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
MM. JUIZ
Tratam os autos de crime contra o meio ambiente tipificado no caput do art. 60 da Lei 9.605/98, praticado pelo Sr. ……………. (fls. ….) Superintendente da Refinaria ……….., situada na Rod. ………, em conjunto com a pessoa jurídica ………., sociedade de economia mista com sede na Av. ………., nº ……., …….. – ….., tendo como representante legal seu Presidente, Sr. ……. (fls. … ).
Noticiam os autos que por ordem dos acusados, no dia …… de …… de ….., a …….. funcionou a Unidade de Craqueamento Catalítico – U-220-A e o “flare” U-730-B (Tocha nº 03) sem licença ou autorização do órgão ambiental competente – Cetesb, desobedecendo inclusive a determinação legal de paralisação da atividade, conforme ………… (fls. …).
Consta também ser esta apenas mais uma desobediência da …… às várias exigências do órgão ambiental.
A atividade da ……. é efetiva e potencialmente poluidora, especialmente desta unidade que já vinha funcionando irregularmente e sem licença ambiental, tanto que foi autuada mais de uma vez pela Cetesb por causar poluição atmosférica além dos padrões legais estabelecidos (fls. …), sendo objeto de outros inquéritos policiais que estão tramitando neste Foro.
Posteriormente, aos …. de ….. de ….., a …… obteve liminar judicial para “funcionar sem licença” a unidade sob o apelativo argumento da necessidade de abastecimento público. A liminar foi concedida tão somente pelo prazo da contestação (fls. ….).
Já é praxe da …….. protelar o atendimento das exigências legais dos órgãos ambientais valendo-se desse argumento apelativo, ludibriando o Poder Judiciário que de boa-fé acaba suprimindo ou coarctando o poder do licenciamento ambiental, importantíssimo instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, previsto no art. 90 da Lei 6.938/81.
LICENCIAMENTO AMBIENTAL
Leciona o Mestre em Direito Público e Juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Dr. Vladimir Passos de Freitas, na sua obra Direito administrativo e Meio Ambiente, Ed. Juruá, 2ª ed., p. 63:
“Doutrina MEIRELLES, que “licença é o ato administrativo vinculado e definitivo, pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividade ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular…” (grifei)
A Lei 6.938, de 1981, fala no seu art. 10 em prévio licenciamento. Já o art. 18 do Decreto no. 88.351, de 1º de junho de 1983, dispõe que:
Art. 18 – A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimento de atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, bem como os empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento do órgão estadual competente, integrante do SISNAMA, sem prejuízo de outras licenças legalmente exigíveis.
Prossegue o Decreto, fornecendo as espécies do aludido ato administrativo:
Art. 20 – 0 Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças:
1 – Licença Prévia (LP), na fase preliminar de planejamento da atividade, contendo os requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais e federais de uso do solo;
11 – Licença de Instalação (LI) autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado.
111 – Licença de Operação (LO) autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévias e de Instalação.
O termo licença, certamente, não é o mais apropriado, pois pressupõe ato administrativo definitivo e, pelo menos para a Licença Prévia e para a de Instalação, o ato é precário. Mais adequado seria usarmos a denominação autorização, esta sim de caráter discricionário e precário. No entanto, optou o legislador pelo uso do termo licença e por isso só a ele faremos referências, evitando compreensão equivocada do assunto.”
Com um conhecimento ímpar do assunto, comentando o art. 60 da Lei 9.605/99, o Dr. Paulo Afonso Leme Machado, Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Estrasburgo – França, escreveu em sua obra Direito Ambiental Brasileiro, Ed. Malheiros, 7ª ed., p. 221, a seguinte lição:
“A lei exige que os estabelecimentos, obras e serviços sejam construídos, reformados, instalados e que funcionem com licenças e/ou autorizações válidas, isto é, não vencidas. Age com inegável dolo eventual quem (pessoa física ou jurídica) continua operando ou funcionando após a expiração do prazo de validade da licença ou da autorização.”
“Esta segunda parte do art. 60 criminaliza o descumprimento do conteúdo da autorização e/ou licença. Caso contrário, a licença e/ou autorização se converteriam em um mero formalismo, numa proteção fictícia do meio ambiente.”
“Não é preciso que o descumprimento das “normas legais ou regulamentares” cause poluição. Aí se trata do crime do art. 54. O que se incrimina no art. 60 é a desobediência às normas legais ambientais.”
Do crime em tela.
Das lições acima se compreende que o delito não depende de resultado, da comprovação de dano ao meio ambiente ou à vida em geral.
“O bem jurídico tutelado é a preservação do patrimônio natural. 0 objeto material é a vida humana, em primeiro lugar, e o meio ambiente, em segundo” (Luís Paulo Sirvinsiças, Tutela Penal do Meio Ambiente, Saraiva, p. 93).
“Consumou-se o delito com o efetivo funcionamento do estabelecimento potencialmente poluidor sem licença”, conforme parecer do eminente Professor Luiz Regis Prado, Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Saragoza/Espanha e Pós-Doutorado em Direito Penal Ambiental Comparado pela Universidade de Estrasburgo – França, em sua obra Crimes contra o Meio Ambiente, Ed. RT, p. 158.
Alicerçado especialmente por Paulo Afonso e Francisco de Assis Toledo, entendo que o crime é formal no sentido amplo, de mera conduta e de perigo comum presumido, ou seja, daqueles que se consumam com a simples prática da conduta prevista, não exigindo resultado para estar perfeitamente amoldado ao tipo penal previsto na legislação.
Francisco de Assis Toledo, em Princípios Básicos de Direito, Penal, Ed. Saraiva, p. 142/143, ensina que:
“Os crimes de atividade (ou mera conduta) são aqueles em que, no dizer de Maurach, a ação humana esgota a descrição do tipo: ‘a própria ação constitui o ponto final do conteúdo típico’. Em tais crimes, o resultado causal da ação, se eventualmente existente, não entra em consideração para o juízo de tipicidade, pois o tipo desses delitos encerra, de forma nítida, um desvalor da ação proibida.
Ainda sob o aspecto da exigência típica de determinado resultado no mundo exterior, temos os crimes formais e os crimes materiais. Os primeiros abrangem os já mencionados delitos de atividade…”.
“Crimes de dano e crimes de perigo. Crimes de perigo concreto crimes de perigo abstrato ou presumido. Com vista ao bem jurídico protegido, é que se fala em crimes de dano e em crimes de perigo. Os primeiros causam lesão efetiva, os últimos conduzem uma potencialidade lesão, realizável ou não, em concreto, que o legislador deseja cortar nascedouro. Estes – os de perigo – se subdividem em crimes de perigo concreto e em crimes de perigo abstrato ou presumido. Nos de perigo concreto, realização do tipo exige constatação, caso a caso, de perigo real, palpável, mensurável. Nos de perigo abstrato, ao contrário, dispensa-se essa constatação, por se tratar de perigo presumido de lesão, como ocorre formação de quadrilha ou bando (art. 288), punível ainda quando a associação de malfeitores não chega a cometer os crimes a que se propunha; assim também, a falsificação de papel-moeda, punível mesmo que o dinheiro falso não tenha sequer sido objeto de troca ou de introdução na circulação.
É oportuno frisar que os crimes de perigo não se equipara rigorosamente aos formais. Conforme registra Eduardo Correia, o crime de perigo pode ser formal do ângulo do resultado final que se quer evitar, mas um crime material, como no exemplo da fabricação de moeda falsa considerando o fato que caracteriza o perigo. Tal distinção, segundo o autor citado, tem relevância para a admissibilidade da tentativa”.
Damásio E. de Jesus, em Direito Penal, Parte Geral, Ed. Saraiva 167/168, comunga com outra corrente que entende que:
“No crime formal o tipo menciona o comportamento e o resultado, mas não exige a sua produção para a consumação.
Crimes de perigo são os que se consumam tão-só com a possibilidade de dano.
Perigo comum (ou coletivo) é o que expõe ao risco de dano interesse jurídicos de um número indeterminado de pessoas. Constitui o resultado do crimes contra a incolumidade pública”.
Não obstante as opiniões contrárias, é importante observar que realmente o tipo penal do art. 60, como bem lembrou Paulo Afonso, não prevê sequer as consequências ou resultados da conduta. O que se incrimina é o ato de desobedecer ou agir sem respaldo da licença autorização, norma ou regulamento.
As expressões “potencialmente poluidores” e “sem licença ou autorização” inseridas no comentado art. 60 são apenas elemento normativos do tipo penal e que não exigem a demonstração da ocorrência de um perigo concreto ao bem jurídico tutelado.
O dolo dos entes – fls. ….: O Sr. Joaquim informou que por decisão colegiada, da qual participou, deliberaram os agentes desobedecer a ordem de paralisação, fazendo funcionar as unidades mesmo sem a licença ou autorização da Cetesb.
Da responsabilidade penal da pessoa – jurídica: Como visto acima, é inegável e clara a participação da pessoa jurídica na decisão de praticar a conduta típica em beneficio próprio.
Walter Claudius Rotheriburg, Mestre em Direito Público pela Universidade do Paraná Especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Paris, em sua obra A Pessoa Jurídica Criminosa, Ed. Juruá, p. 176 e ss., meditando sobre o assunto, escreveu:
“Toda a questão da tipicidade – que em Direito Criminal já encerra a ilicitude – no tocante à sujeição criminal ativa da pessoa jurídica resolve-se basicamente no plano da legislação. Supõe, obviamente, premissas teóricas e ideológicas sobre a aceitação de uma vontade censurável, mas então se está fora do momento lógico da tipicidade.
A enunciação dos tipos incriminadores de (condutas de) pessoas jurídicas nada tem, a rigor, de especial.
Vale-se o legislador, não-raro, de tipos penais em branco, a serem complementados (por remissão expressa ou necessidade implícita da norma incriminadora) por outros dados, obtidos de outras fontes (leis, regulamentos, tabelas … ) …
Muito próximos a esses estão os tipos configuradores dos chamados “delitos de desobediência”, que incriminam antes a infringência a outros preceitos ( … ), sendo que só estes últimos se relacionam imediatamente à tutela do bem jurídico (ambiente natural, por exemplo).”
Reconhecida à pessoa jurídica a faculdade de agir e reagir por seus órgãos cuja ação e omissão são consideradas como a do grupo’…
Pode-se então dizer, sem muito rigor, que é possível uma reprova moral (uma consideração ética) das condutas dos entes coletivos, nos termos jurídicos da culpabilidade.”
Sérgio Salomão Shecaira, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo,, em sua obra Responsabilidade Penal Pessoa Jurídica 1 Ed. RT, p. 97 e ss., com muito acerto dissertou:
‘Neste sentido é que podemos, juntos com Tiedemann, diante características peculiares das grandes empresas, afirmar que “os agrupamentos criam um ambiente, um clima que facilita e incita os autores físicos ( materiais) a cometerem delitos em beneficio dos agrupamentos. Daí a ideia não sancionar somente a estes autores materiais (que podem ser mudados substituídos) mas também, e sobretudo, a própria empresa.
A empresa poderá, pois, não só ser punida quando deliberar – e pratica um ato ilícito, mas também quando não impedir que ele seja praticado em beneficio exclusivo.
Basta, aqui, tenha tido a infração o objetivo de ser útil à finalidade do coletivo”
Da falta de conclusão e relatório do inquérito: O presente inquérito, pela natureza do delito, poderia ter sido concluído em 30 ou 60 dias no máximo. Os fatos deste inquérito estavam sendo confundidos com aqueles do IP. ….. (cópia da cota em anexo). Lamentavelmente, autoridade policial não diligenciou para sanar o problema, sendo posteriormente detectado pelo – Ministério Público que pediu desmembramento. Após o desmembramento e instauração destes auto requisitadas diligencias específicas às fls. …, também não cuidou a autoridade policial de concluir e relatar os autos no tempo pedido, deixando inclusive de requisitar do Sr. …… da Cetesb as informações requisitas no cota de fls. …, item 4.
Entendendo que poderia até ter proposto a ação penal com base nos documentos de fls. …, não o fazendo para evitar alegações levianas de imparcialidade. Concluo agora pela desnecessidade e prescindibilidade das diligências da autoridade policial e seu relatório para oferecer denúncia, não acarretando qualquer prejuízo à verdade real ou futura nulidade processual.
DENÚNCIA – Oferecimento sem prévio inquérito policial – Admissibilidade. (STF) RT 553/428
DENÚNCIA – Oferecimento com dispensa do inquérito pelo promotor – Nulidade pretendida – Inexistência – Recurso de “habeas corpus” improvido -(STF – Ementa.) RT 558/421.
INQUÉRITO POLICIAL – Dispensa – Denúncia baseada em representação oferecida por juiz de direito – Inexistência de dúvidas quanto à materialidade e à autoria do delito – justa causa para a ação penal. Trancamento inadmissível (STJ) RT 664/336.
FALTA DE RELATÓRIO – TJSP – Nulidade. Inocorrência. Relatório da autoridade policial encerrada a fase investigatória. Falta. Mera irregularidade administrativa que não atinge a ação penal. Nulidade rejeitada. A falta de relatório não anula o inquérito policial e não impede a ação penal (RJTJESP 122/554).
Da falta de atendimento da Cetesb: Da mesma forma que a autoridade policial não foi diligente o quanto se esperava na condução deste inquérito (fls. ….), também o gerente da Cetesb, Sr. ……, pois avisado pessoalmente por telefone e por e-mail para providenciar as informações requisitadas na minha cota de fls. ….., item …., não cuidou de fazê-lo e apresentar ao delegado quando da oitiva na delegacia (fls. ..).
Finalmente, pondo termo ao raciocínio desenvolvido, valho-me da sabedoria do Mestre Vladimir Passos de Freitas, extraída de sua outra abra Direito Ambiental em Evolução, Ed. Juruá, p. 35:
É conveniente, indaga-se, criminalizar a conduta antiecológica? Respondemos afirmativamente, com Paulo José da Costa Júnior e outros renomados doutrinadores. “Os abusos são tais e tamanhos, que se faz mister a ultima ratio da sanção penal”.
Por todos os argumentos acima, concluo pela existência de justa causa e pela necessidade de responsabilização criminal dos acusados pela conduta praticada, pois violaram a lei penal ambiental.
Justificada desta forma a postura do Ministério Público, ofereço denúncia em separado contra o Sr. Joaquim Pedro Mello da Silva (fis. 28)
Superintendente da Replan e contra a pessoa jurídica …………, representada por seu Presidente, Sr. Joel Mendes Rennô (fls24 ), fazendo os requerimentos no termo de vista.
DO RITO PROCESSUAL:
Por expressa previsão nos artigos 26 a 28, bem como 79 da Lei Ambiental, aplicam-se ao processo penal as regras da Lei 9.099/95 – Juizados Especiais Criminais, além do Código Penal e Processual Penal.
Considerando a previsão de pena do art. 60 da Lei 9.605/98, o rito a ser seguido é o do Juizado Especial, com modificações. Porém, de antemão, entendo prejudicada a possibilidade de conciliação e transação na forma dos arts. 72/76 daquele diploma, especialmente 76, 111, pois:
– O dano provocado pelo funcionamento das unidades sem preenchimento das exigências da licença, é um dano irreparável, mas que não é “objeto” deste inquérito, porém serve de embasamento para aquilatar, as consequências da conduta dos acusados. Aqui, só a desobediência está em pauta.
A conduta é gravíssima, considerando a qualidade dos agentes, a natureza das operações da …… e a potencialidade poluidora das unidades.
Encontram-se na Promotoria, neste momento, mais outros 05 inquéritos policiais por crime ambiental, cuja autoria está sendo atribuída aos acusados acima, sem prejuízo de outros eventualmente requeridos e em trânsito.
Em todo o país, a ……… tem sido ré em inúmeras ações por causar poluição ambienta). Neste foro, a …….., da mesma forma.
Por estas razões, reafirmo, prejudicada está a possibilidade de transação em audiência preliminar.
A possibilidade de suspensão do processo não está descartada, mas certamente estará condicionada ao recebimento da denúncia e à verificação das condições legais e especiais que o “fato e a situação dos acusado exige” (art. 89, § 20).
Respeitosamente, aguardo recebimento, citação e prosseguimento até final decisão.
[Local], [dia] de [mês] de [ano].
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Promotor de Justiça