Bruno de Oliveira Carreirão*
O STF decidiu por 6×5 algo que deveria ter sido por 11×0: que o que está escrito na Constituição significa exatamente o que está escrito na Constituição. O caso era a possibilidade de reeleição de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre para a presidência da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente – algo que o art. 57, § 4º, da Constituição, veda com muita clareza: “eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente”[1].
É evidente que a corte constitucional é a intérprete da Constituição e que nem sempre a interpretação literal é suficiente para a solução de todos casos controvertidos que lhe são submetidos, mas o caso em questão simplesmente não admitia nenhuma margem razoável de dubiedade. Se a norma jurídica é uma moldura, tal qual dizia Hans Kelsen[2], o quadro que cinco dos ministros do Supremo tentaram colocar definitivamente não cabia nela.
Em qualquer país sério, a simples divisão dos ministros em uma matéria tão evidente deveria ser um escândalo. No Brasil, no entanto, é apenas o cotidiano do Supremo Tribunal Federal há muitos anos, com sua “vanguarda iluminista” que foi muitas vezes festejada por boa parte dos juristas brasileiros quando era para satisfazer anseios ideológicos, geralmente progressistas.
Nos casos da união civil entre pessoas do mesmo sexo, aborto de fetos anencefálicos e criminalização da homofobia, por exemplo, o STF abusou da retórica principialista e atropelou a literalidade da lei e da Constituição para invadir a seara do Poder Legislativo, sob o argumento de que o Congresso não votava essas pautas por desídia – como se deixar de alterar uma determinada lei fosse uma “omissão” e não uma posição válida. Tudo isso sob os aplausos dos juristas progressistas.
Os conservadores, porém, também têm sua parcela de culpa, ao referendarem decisões como a que autorizou o cumprimento da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado – que posteriormente foi suplantada por um novo posicionamento do STF.
A verdade é que todos nós, juristas, somos culpados quando passamos a considerar o positivismo jurídico ultrapassado e a adotar métodos mais “criativos” de interpretação do direito. Nos acostumamos a encarar como verdade absoluta o neoconstitucionalismo, a distinção da norma jurídica entre regras e princípios e a técnica da ponderação – teorias que não passam de uma maquiagem retórica para justificar a hermenêutica freestyle do julgador quando decide conforme a sua própria vontade[3].
Esse é um fenômeno que é caracterizado por Bruno Salama como uma renovação da cultura jurídica brasileira, que, segundo ele, tem como uma de suas características a relativização das formas jurídicas[4]. Sobre esse fenômeno, Salama destaca:
[…] o eixo de análise do magistrado se foi deslocando do raciocínio exclusivamente silogístico e subsuntivo, para uma certa forma de realismo jurídico em que as circunstâncias fáticas, as finalidades e as funções do direito paulatinamente ganhavam crescente importância[5].
Um exemplo muito claro para mim dessa forma maquiavélica de decidir, justificando o meio em razão de um fim que atende ao “bem maior”, foi o julgamento do caso em que o STF decidiu sobre a aplicabilidade da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010.
A Lei Complementar nº 135 foi publicada e entrou em vigor em 4 de junho de 2010. A Constituição Federal, por seu turno, prevê em seu art. 16 que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Trata-se de um artigo bastante claro: a lei só pode ser aplicada um ano após a sua vigência, sem abrir qualquer exceção.
Todavia, quando o STF julgou o Recurso Extraordinário nº 633703, cinco ministros votaram no sentido de que a Lei da Ficha Limpa deveria ser aplicada às eleições de 2010. Em particular, o voto da Min. Carmen Lúcia é bastante ilustrativo: ao considerar a norma insculpida no art. 16 da Constituição como “princípio da anterioridade eleitoral”, a Min. Carmen Lúcia afirmou que “o princípio constitucional prevalecente é o da proteção ético-jurídica do processo eleitoral, sobrepondo-se o direito da sociedade a uma eleição moralizada, proba, impessoal e legal ao voluntarismo daquele que pretende se pôr ao crivo do eleitor”.
Mesmo os ministros que votaram pela não aplicabilidade da lei para as eleições de 2010 consideraram a referida norma como um princípio, tanto que a tese que foi fixada no julgamento do recurso foi que “a Lei Complementar 135/2010 não é aplicável às eleições gerais de 2010, em face do princípio da anterioridade eleitoral”.
É por isso que a pior coisa que pode acontecer a uma norma jurídica é ela se considerada “princípio”, pois princípio é uma norma que o julgador pode ignorar, mesmo sem declará-la inválida – eu sei que na retórica neoconstitucionalista a justificativa é mais rebuscada, mas é isso que acontece na prática.
Abandonamos a forma quando passamos a conviver pacificamente com esse tipo de vandalismo hermenêutico porque o fim da decisão era algo que nos parecia justo. Consentimos tacitamente durante anos com o ativismo judicial e com a violação da separação dos poderes porque concordávamos com o conteúdo da decisão.
O grande revés é que a relativização da forma é uma via de mão dupla e serve tanto para atender a fins nobres, quanto para a satisfazer os desígnios mais indecorosos. É por isso que – me perdoe, Maquiavel -, no Direito, os fins jamais podem justificar os meios.
* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e acredita que Montesquieu se revire no túmulo cada vez que alguém usa a expressão “vanguarda iluminista”.
[1] Art. 57. O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro.
[…]
§ 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente.
[2] O clássico vem sempre a calhar: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[3] Já explorei o tema com maior profundidade em: CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Regras e Princípios: Um ensaio sobre a relação da base teórica do Constitucionalismo Principialista com a Hermenêutica Freestyle. Revista Eletrônica Direito e Política. v. 13, n. 2, p. 880–908, 2018.
[4] SALAMA, Bruno Meyerhof. Vetores da jurisprudência na interpretação dos contratos bancários no Brasil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. v. 57, p. 157–170, 2012, p. 166.
[5] Ibid., p. 167.