Bruno de Oliveira Carreirão*
“A Justiça no Brasil é lenta” é um mantra que todo brasileiro repete e um problema que parece que nunca terá solução. Nós que lidamos diariamente com o Poder Judiciário até perdemos um pouco do referencial e normalizamos situações absurdas. Chegamos ao cúmulo de considerar, por exemplo, que um processo que demorou 2 anos foi rápido, enquanto que para um leigo, a tramitação do processo foi extremamente demorada (vou contar um segredo: o leigo é quem tem razão).
O excessivo volume de processos é habitualmente apontado com o vilão da morosidade da Justiça e constantemente surgem propostas para tentar resolver a situação – como as famosas metas do CNJ – que atacam muito mais a consequência dos que as causas. E é sobre as causas do grande número de processos que eu quero tratar aqui.
Em qualquer rápida enquete sobre as causas do alto volume de processos no Brasil, as hipóteses mais apontadas provavelmente serão:
* Excesso de faculdades de Direito e advogados no país;
* Falta de estrutura/Ineficiência do Poder Judiciário;
* Cultura do litígio (a.k.a. “brasileiro é encrenqueiro, gosta de brigar”)
Todas essas hipóteses podem ter algum fundo de verdade, mas todas ignoram um fator muito simples, porém muito importante: as pessoas têm incentivos para propor ações judiciais. Afinal, se a Justiça é tão lenta, o natural seria o desestímulo à propositura de ações, mas a realidade é que o número de processos é crescente. Por quê?
Vou utilizar uma breve anedota para explicar o ponto.
Senta que lá vem história…
Fulaninha de Tal foi inscrita no SPC pelo Banco Safado S/A por conta de uma dívida. Fulaninha provou ao banco que a dívida estava paga, mas continuou com o nome sujo. O Banco Safado poderia ter resolvido a situação extrajudicialmente, poderia ter feito um acordo, mas preferiu levar o processo até o fim.
Resultado: na sentença, a juíza reconheceu que a inscrição no cadastro de inadimplentes foi indevida. No entanto, entendeu que a situação não passou de um mero dissabor cotidiano e que Fulaninha não sofreu dano moral, deixando assim de condenar o Banco Safado a lhe pagar indenização.
Essa anedota, na verdade, é um caso real, que aconteceu recentemente em Aracajú/SE e que virou notícia[1] por se tratar de uma sentença que é absolutamente contrária à jurisprudência já consolidada sobre o tema – afinal, se existe uma tese jurídica que é (e muito) pacificada na jurisprudência nacional, é a de que a negativação indevida geral dano moral presumido.
Uma caixinha de surpresas
Ora, por que o Banco Safado optou por levar o processo até o fim? Por que é brasileiro e gosta de encrenca? Essa hipótese poderia até fazer sentido se o caso fosse uma briga de vizinhos ou um conflito familiar, mas não em um processo envolvendo uma instituição financeira. O banco não litigou apenas porque ficou com raiva da consumidora. Empresa não tem sentimento; empresa faz conta.
Na conta que o Banco fez, um dos fatores que foi considerado foi o percentual de chance de não haver condenação ou de haver condenação por um valor irrisório. Se a jurisprudência dos tribunais superiores fosse seguida à risca, esse percentual tenderia a zero, mas não é o que acontece no Brasil.
O exemplo acima não é um caso isolado. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) divulgou[2] recentemente uma pesquisa realizada por meio de questionário enviado aos magistrados brasileiros, ativos e inativos, a respeito de diversos aspectos, com o objetivo de mapear o pensamento da magistratura nacional. Uma das questões apresentadas foi: “O(a) magistrado(a) deveria poder decidir sem se pautar necessariamente pelo sistema de súmulas e precedentes vinculantes”.
Entre juízes de primeiro grau, 51,8% concordaram com a afirmação; entre desembargadores, 51,3% concordaram; entre magistrado inativos, 66,6%; e entre ministros dos tribunais superiores, 55%. Ou seja, em todos os segmentos questionados, mais da metade considera que o magistrado não deve necessariamente seguir a jurisprudência.
É nítido que falta a muito dos magistrados brasileiros a humildade de reconhecer o seu papel dentro de uma estrutura. O juiz é apenas uma engrenagem de uma máquina complexa; sempre que o juiz resolve decidir à sua própria maneira, ignorando os precedentes envolvendo casos idênticos, a engrenagem emperra e prejudica o funcionamento de todo o sistema.
No exemplo acima, a consumidora certamente irá recorrer da sentença e provavelmente terá maior sucesso no segundo grau. Todavia, esse é mais um recurso que entrará na pauta da Turma de Recursos e que poderia ter sido evitado se a juíza tivesse a humildade de reconhecer que o seu entendimento pessoal não é mais importante do que a segurança jurídica.
Mas o problema maior não está individualmente nos recursos contra as decisões desviantes, mas sim na estrutura de incentivos que elas criam para a litigância. O Poder Judiciário no Brasil é uma “caixinha de surpresas”. As decisões são imprevisíveis e, por isso, geram incentivo para que as partes tentem “emplacar” qualquer tese jurídica, mesmo que exista jurisprudência consolidada em sentido contrário.
É evidente que a insegurança jurídica não é o único incentivo para a propositura de ações. Os estudos da economia comportamental mostram que as pessoas têm sua racionalidade limitada por vieses e heurísticas[3] – as pessoas tendem a ser otimistas, por exemplo, superestimando as hipóteses de sucesso e minimizando as de fracasso -, o que certamente contribui para uma tomada de decisão que não é a mais racional na hora de decidir propor uma ação ou de avaliar uma proposta de acordo. A banalização da gratuidade da justiça também é um incentivo para ações aventureiras.
No entanto, somada a todos esses fatores (e muitos outros), a insegurança jurídica gerada pela imprevisibilidade das decisões judiciais cria uma estrutura de incentivos para a litigância, que acarreta no impressionante número de ações que temos no país.
É evidente que um problema complexo de causa multifatorial não terá uma solução simples. Contudo, uma boa dose de humildade para a magistratura brasileira já seria um excelente primeiro passo.
[1] https://www.conjur.com.br/2019-jul-24/mulher-teve-nome-negativado-indevidamente-nao-indenizada
[2] https://www.amb.com.br/pesquisa-da-amb-revela-pensamento-da-magistratura-brasileira/
[3] Sobre vieses e heurísticas e racionalidade limitada, recomendo a leitura: THALER, Richard; SUNSTEIN, Cass. Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth and Happiness. New Haven: Yale University Press, 2008.
* Advogado, mestre em direito e um eterno inconformado com diversas questões do cotidiano da advocacia.