Efeito devolutivo no projeto de lei que altera as disposições do art. 520 do CPC
Tassus Dinamarco *
Segundo Maurício Traldi e Ricardo Ferreira Pastore, por meio do Anexo nº 1.981, do periódico Biblioteca Informa, de 14-20 de outubro de 2007, “Tramita perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei da Câmara nº 30/2005 SF (PL nº 3605/2004, na origem – ‘PL’), de autoria do Deputado Federal Colbert Martins, do PPS/BA, que altera a redação do art. 520 do Código de Processo Civil (‘CPC’), modificando a sistemática para concessão do efeito suspensivo ao recurso de apelação. Como é sabido, o efeito suspensivo impede a imediata produção de efeitos da decisão recorrida até o julgamento final do recurso, impossibilitando, dessa forma, a execução provisória da decisão. De acordo com a atual redação do art. 520 do CPC (caput, primeira parte), como regra, o recurso de apelação deve ser recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo. No rol não taxativo contido nos incisos do art. 520 do CPC (caput, segunda parte), o legislador relacionou algumas das hipóteses nas quais o recurso deve ser recebido apenas no efeito devolutivo: ‘Art. 520 – A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que: I – homologar a divisão ou a demarcação; II – condenar à prestação de alimentos; III – (Revogado pela Lei nº 11.232, de 2005); IV – decidir o processo cautelar; V – rejeitar liminarmente embargos à execução ou julgá-los improcedentes; VI – julgar procedente o pedido de instituição de arbitragem; VII – confirmar a antecipação dos efeitos da tutela.’. O PL propõe uma inversão na regra dos efeitos, de forma que a concessão do efeito suspensivo passe a ser exceção, e não mais a regra geral, devendo, em princípio, o recurso ser recebido apenas no efeito devolutivo. Confira-se a redação do art. 520 aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (‘CCJ’) da Câmara dos Deputados, após emendas do Senado Federal: ‘Art. 520. A apelação será recebida no efeito devolutivo, devendo, no entanto, ser recebida também no efeito suspensivo quando disposição expressa de lei assim o determinar, ou quando interposta de sentença: I – proferida em ação relativa ao estado ou capacidade da pessoa; II – diretamente conducente à alteração em registro público; III – cujo cumprimento necessariamente produza conseqüências práticas irreversíveis; IV – que substitua declaração de vontade; V – sujeita a reexame necessário.’. Oportunamente o PL será votado pelo Plenário da Câmara dos Deputados. Se aprovado, seguirá para a sanção ou veto Presidencial. Considerações preliminares sobre o PL. O PL está inserido no contexto das últimas reformas implementadas no CPC e que visam conferir maior efetividade e celeridade ao processo. O PL tem o objetivo claro de corrigir incoerência do sistema processual. Como bem salientado na ‘Justificação’ do PL, ‘É mais fácil alcançar a efetividade de uma decisão interlocutória que antecipa os efeitos da tutela do que a de uma sentença que concede essa mesma tutela, agora em sede de cognição plena e exauriente. Isso porque aquela é atacada via recurso de agravo, que de regra não tem efeito suspensivo, ao passo que a última desafia apelação, onde a regra é inversa, ou seja, o recurso é recebido em ambos os efeitos’ [Justificação apresentada pelo Deputado Federal Colbert Martins quando da apresentação do PL na Câmara dos Deputados, in www.camara.gov.br]. Além disso, pretende-se com essa alteração diminuir o número de recursos protelatórios: ‘A par das propostas de alteração do sistema recursal, cremos que a possibilidade de efetivação das sentenças de primeiro grau, independentemente de eventual revisão, em muito contribuiria para a diminuição dos recursos meramente protelatórios. Afinal, se a execução imediata da sentença passar a ser regra, o interesse recursal protelatório diminuirá, principalmente diante das novas regras da execução provisória’ [Justificação apresentada pelo Deputado Federal Colbert Martins quando da apresentação do PL na Câmara dos Deputados, in www.camara.gov.br]. Considerando que a lei processual tem aplicação imediata aos processos em andamento, entendemos que a tramitação desse PL é medida que se impõe. A aprovação do PL trará conseqüências aos processos em andamento em Primeira Instância não sentenciados (no momento da entrada em vigor da lei), permitindo que o credor dê início à execução provisória da sentença, caso o recurso de apelação não seja recebido no efeito suspensivo. Em conclusão, ao tornar exceção a concessão do efeito suspensivo ao recurso de apelação, o PL confere à sentença maior efetividade, seguindo a tendência dos sistemas processuais mais modernos. São Paulo, 19 de outubro de 2007”1.
José Carlos Barbosa Moreira, quanto aos efeitos dos recursos, efeitos da interposição e o impedimento ao trânsito em julgado, tem o seguinte entendimento: “Efeito comum e constante de todos os recursos, desde que admissíveis, é o de obstar, uma vez interpostos, ao trânsito em julgado da decisão. No direito brasileiro, a coisa julgada (material ou simplesmente formal – ao contrário do que pode parecer à vista do teor literal do art. 467, que só aquela se refere) jamais se constitui enquanto a decisão comporte algum recurso, seja qual for. Esse ponto é importante para a determinação da natureza da execução instaurável, por força de autorização legal, na pendência de recurso contra a decisão, inclusive do extraordinário. Tal execução é sempre provisória: arts. 521, 2ª parte, e 475-I (introduzido pela Lei nº 11.232), § 1º […]”2. Prossegue o processualista carioca, agora sobre o efeito suspensivo, dizendo que “Consiste este efeito, que não se confunde com o acima indicado, em fazer substituir o óbice à manifestação da eficácia da decisão. A interposição não faz cessar efeitos que já se estivessem produzindo, apenas prolonga o estado de ineficácia em que se encontrava a decisão, pelo simples fato de estar sujeita à impugnação através do recurso. A denominação ‘efeito suspensivo’, por isso, apesar de tradicional, é a rigor inexata. O impedimento atinge toda a eficácia da decisão, e não apenas o efeito executivo que ela possa ter. Impróprio, destarte, conceituar a suspensividade em termos restritos, alusivos unicamente à impossibilidade de executar-se a decisão, que, aliás, por sua própria natureza, nem sempre comportaria execução em sentido técnico: assim, as decisões meramente declaratórias e as constitutivas. A regra é a de que os recursos são dotados de efeito suspensivo. Enquanto sujeita a recurso, a decisão, em princípio, não produz efeitos. Excepcionalmente, a lei, negando suspensividade ao recurso, permite que a decisão se torne eficaz antes de transitar em julgado. Essa antecipação pode concernir a toda a eficácia, ou só a alguns efeitos da decisão. Resulta necessariamente de texto legal expresso, ou de categórica imposição sistemática. No silêncio da lei, deve-se normalmente entender que o recurso tem efeito suspensivo; assim, v.g., quanto aos embargos infringentes” […]3. Quanto ao efeito devolutivo, diz Barbosa Moreira que “A interposição do recurso transfere ao órgão ad quem o conhecimento da matéria impugnada. Podem variar, de recurso para recurso, a extensão e a profundidade do efeito devolutivo; aquela, porém, não ultrapassará os limites da própria impugnação: no recurso parcial […], a parte não impugnada pelo recorrente escapa ao conhecimento do órgão ad quem. Quando a lei, a título de exceção, atribui competência ao próprio órgão a quo para reexaminar a matéria impugnada, o efeito devolutivo ou inexiste (embargos de declaração), ou fica condicionado a que não se reforme a decisão antes do julgamento do recurso: assim no agravo (art. 529). Fora dessas hipóteses, ao órgão a quo é vedado praticar qualquer ato que importe modificação, total ou parcial, do julgamento, ressalvada a possibilidade de corrigir, ex officio ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou erros de cálculo (art. 463, nº I)”4.
Barbosa Moreira ainda comenta a extensão subjetiva dos efeitos dos recursos, a cessação dos efeitos da interposição e os efeitos do julgamento, cuja reprodução será omitida por fidelidade à economia deste ensaio.
Convém, ainda assim, fazermos um último apontamento feito pelo ilustre Barbosa Moreira sobre os efeitos do recurso de apelação fincado no texto vigente do art. 520 do Código de Processo Civil: “[…] Às hipóteses do art. 520 deve acrescentar-se a do art. 1.184 (sentença que decreta a interdição), como ressalta da cláusula ‘produz efeito desde logo, embora sujeita a apelação’, inserta na primeira parte do dispositivo. Mesmo nesses casos, pode o relator no órgão ad quem suspender a eficácia da sentença, se do respectivo cumprimento puder ‘resultar lesão grave e de difícil reparação’ e for relevante a fundamentação do recurso (art. 558, parágrafo único, na redação da Lei nº 9.139, de 30.11.1995)”5.
Relativamente ao Projeto de Lei citado por Maurício Traldi e Ricardo Ferreira Pastore, talvez a redação final do texto – que certamente será aprovado pelo parlamento federal – soasse melhor nos seguintes termos, cuja proposição é nossa, sem prejuízo de eventuais propostas semelhantes por ventura já ventiladas, não raro com mais técnica jurídica ou mesmo de redação:
Art. 520. A apelação será recebida somente no efeito devolutivo, devendo, no entanto, ser recebida excepcionalmente no efeito suspensivo quando o caso concreto assim exigir, aferido, motivadamente, pelo juiz de primeiro grau ao determinar sua subida à superior instância.
Pensamos assim sob o argumento de se dar, efetivamente, maior poder decisório ao juiz de primeiro grau. O obstáculo causado pelo art. 520 é justamente o de engessar a discricionariedade que deve ter o Poder Judiciário no momento em que decide, depois da instrução dos autos, o processo.
Que seja dado maior poder executivo ao magistrado, pois sempre há a possibilidade do tribunal, mais sensível em muitas oportunidades, suspender a eficácia da decisão de primeiro grau, seja através do recurso de agravo de instrumento ou mesmo mediante ação cautelar inominada, já admitida pelo Superior Tribunal de Justiça: STJ, MC 34-RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, Revista do STJ, v. 13, p. 215.
Clara é a visão de Luiz Guilherme Marinoni ao comentar a regra da nulla executio sine titulo como justificativa técnico-jurídico da impossibilidade de o juiz julgar com base em verossimilhança, com citação de Francesco Carnelutti, Carlo Furno, Giuseppe Chiovenda e Sergio La China: “Como já foi evidenciado, a necessária precedência da sentença condenatória em relação à execução resulta da suposição de que a cognição, ou o conhecimento da existência do direito afirmado pelo autor, deve anteceder a execução. Isso porque se acreditava que a proibição da execução antes do término da cognição – que era traduzida por meio da fórmula de que o juiz não podia julgar com base em verossimilhança – era fundamental para garantir o direito de defesa e, assim, não poderia jamais ser excepcionada. A partir da premissa de que a cognição deveria anteceder a execução, foi estabelecido o princípio da nulla executio sine titulo, que quer dizer que a execução não pode ser feita sem título. Tomando em conta a relação entre condenação e execução, o título seria, evidentemente, a sentença condenatória. O problema que poderia ser levantado, em relação a ela, diz respeito a se saber se a sentença condenatória recorrida pode ser considerada título executivo. Não há dúvida que, desde há muito tempo, admite-se a execução na pendência do recurso. Esse tipo de execução fica limitada, não levando à completa satisfação do direito. Trata-se de equívoco, pois a ‘completude’ da execução feita na pendência do recurso é uma questão de política legislativa, não constituindo uma decorrência necessária da existência do recurso, a menos que se continue entendendo que a execução, antes do julgamento do recurso, constitui um julgado que ainda não ‘descobriu a verdade’ e, portanto, fere a ‘ampla defesa’. Com efeito, a doutrina clássica, ainda que sustentando a execução provisória, sempre mostrou grande preocupação em relação à busca da verdade. Chiovenda, em sua Instituições, ao se deparar com a execução da sentença na pendência do recurso interposto para a Corte de Cassação italiana, e assim verificar que o recorrente, no caso, poderia ‘executar’ antes da finalização da fase de conhecimento – quando então se encontraria a tão proclamada ‘verdade’ -, foi obrigado a concluir que essa teoria seria uma das hipóteses em que ‘pode ocorrer a figura duma sentença não definitiva, mas executória, e, pois, a separação entre a definitividade da cognição e a executoriedade’. Essa exceção entre a definitividade da cognição e a excepcionalidade gerava, nas palavras do próprio Chiovenda, uma ‘figura anormal’, que seria, nada mais nada menos, do que uma execução ‘descoincidente, de fato, da certeza jurídica’. A separação entre sentença condenatória transitada em julgado e sentença condenatória recorrida, para efeitos de execução, serve somente para demonstrar que a doutrina clássica associou a completude da cognição – inclusive da fase recursal – com o encontro da verdade. Tanto é que acusou a execução provisória de figura ‘anormal’. Entretanto, não há como deixar de enxergar que essa doutrina, ao admitir a execução provisória, transigiu com a idéia de busca da verdade e de segurança jurídica. Se essa execução, ainda que ‘anormal’, foi admitida à luz do princípio da nulla executio sine titulo, impõe-se a conclusão de que se aceitou que o título, sem o qual a execução não poderia ocorrer, poderia se constituir em sentença condenatória ainda não transitada em julgado. Por essa razão, o princípio da nulla executio sine titulo, embora originariamente pensado para garantir a segurança jurídica, abre atualmente duas possibilidades de compreensão: ou se aceita que, por ser necessária execução na pendência do conhecimento (como demonstra inclusive a tutela antecipatória), o princípio não tem mais sustentação; ou se admite uma nova abordagem do conceito de título, o qual então passaria a ser visto como algo que não deve ser relacionado com a existência do direito, mas sim com a necessidade prática de sua realização. Assim, o legislador poderia atribuir eficácia executiva a decisões proferidas antes do trânsito em julgado. Além disso, como se dá ao juiz, em alguns casos, o poder de conceder a tutela do direito também no curso da cognição – a tutela antecipatória -, é lógico que se confere, automaticamente e ainda que implicitamente, eficácia executiva a essas decisões, pois seria pouco mais do que absurdo imaginar que o legislador deu ao juiz a possibilidade de conceder uma tutela que não pode ser executada”6.
Esse o relato feito sobre o PL que objetiva derrogar o art. 520 do Código de Processo Civil. Parece que há um imenso temor em se dar maior efetividade às decisões judiciais de primeiro grau, sem justificativa. A tão aclamada busca pela celeridade processual poderia, e muito, ser atendida em grande parte no momento em que o legislador entender que o tempo do processo, bastante repudiado pela sociedade, pode ser encurtado na medida em que se dê maior poder executivo ao juiz, sem o abandono, certamente, do controle recursal exercido pela hierarquia do tribunal ao qual está vinculado.
Notas de rodapé
1 Os autores são associados da Área Contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados, com escritórios em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília;
2 O novo processo civil brasileiro (Exposição sistemática do procedimento), 25ª ed., Forense, RJ, 2007, p. 122.
3 O novo processo civil brasileiro (Exposição sistemática do procedimento), 25ª ed., Forense, RJ, 2007, pp. 122/123.
4 O novo processo civil brasileiro (Exposição sistemática do procedimento), 25ª ed., Forense, RJ, 2007, p. 123;
5 Idem, pp. 133/134.
6 Técnica Processual e Tutela dos Direitos, RT, SP, 2004, pp. 47/50.
* Advogado, pós-graduando em Processo Civil pela Universidade Católica de Santos (SP).
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