Denúncia da lide
Maria Berenice Dias*
Das figuras intervencionais, a mais difundida e utilizada é a denunciação da lide, sendo, no entanto, a mais desconhecida, e, por ser muitas vezes usada de forma indevida, acaba por acarretar irreversíveis prejuízos a quem a utiliza.
Visa o instituto a atender ao princípio da economia processual e, apesar da expressão utilizada no caput do art. 70 do CPC, constitui-se de uma simples faculdade, visando ao aproveitamento do mesmo processo e do mesmo conjunto probatório, para se resolverem duas ou mais lides em uma única demanda, conforme sustenta o hoje ministro do STJ Athos Gusmão Carneiro (Intervenção de Terceiros, São Paulo, Saraiva, 1983, p.76).
Dita forma de intervenção autoriza a inserção de nova relação jurídica dentro de demanda já processualizada para julgamento conjunto, por haver entre ambas vínculo de prejudicialidade e dependência, ou seja, o acertamento da lide principal torna exigível a que vem para o processo incidentalmente, por tornar suficiente seu suporte fático. Existe entre ambas uma relativa identidade subjetiva, pois o partícipe da relação jurídica de direito material, que veio anteriormente a juízo, também integra a que introduz por via da denúncia da lide.
Além desse pressuposto de ordem subjetiva, para que possa aportar a juízo essa segunda relação jurídica, necessita configurar-se como lide de garantia. As duas primeiras hipóteses legais de seu cabimento referem-se a específicos institutos da lei civil que expressamente prevêem a existência de vínculo legitimante de seu exercício. A evicção, prevista no art. 1.107 do CC, defere direito indenizatório ao comprador em havendo perda do bem adquirido. A hipótese seguinte outorga a possibilidade de uso nos casos em que o desdobramento da posse não anula a posse indireta, conforme a dicção do art. 486 do CC.
O inc. III do art. 70 do CPC dispõe de uma linguagem abrangente, deferindo a denúncia de pretensão indenizatória, decorrente de direito de garantia previsto na lei ou em contrato e exercitável via ação de regresso.
Sydney Sanches, em sua excelente monografia sobre o tema, na qual faz um minucioso levantamento das hipóteses em que a lei confere ação regressiva, diz que direito de regresso, do latim regressus, de regredire (reprocedere, retroagir, voltar para trás), pressupõe que alguém pagou porque devia, mas, mesmo devendo, tinha o direito de voltar-se contra outrem para reclamar o que desembolsou (Denunciação da Lide, São Paulo, RT, 1984, p. 116).
A existência de direito de regresso, embora necessária, não é suficiente para permitir a denunciação, já que indispensável que a garantia seja própria, não se podendo impor ao autor que assista impassível à inserção de lide cujos fundamentos fáticos e jurídicos nenhum vínculo imediato tenham com a ação que intentou. Como assevera Vicente Grecco Filho, “só é admissível a denunciação nos casos de garantia automaticamente decorrente da lei ou do contrato, ficando proibida a intromissão de fundamento novo não constante da ação originária; a denunciação não pode-se transformar em instrumento de denegação de justiça para o autor, alheio à relação de garantia” (Intervenção de Terceiros, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 17).
Assim pincelado um rápido perfil do instituto, mister atentar-se nas duas hipóteses em que a denúncia é perseguida com mais freqüência. Nas demandas indenizatórias decorrentes de acidente de trânsito, quando inequivocamente se pretende o reconhecimento da inexistência de responsabilidade, ou seja, a ilegitimidade de o demandado responder pelos danos.
Exemplo típico é quando ocorrem múltiplas colisões, fato vulgarmente nominado como “carambola”. O mais seguro seria ferir-se um litisconsórsio alternativo eventual contra todos os partícipes do evento, possibilidade não repudiada pela lei, como se infere no art. 289 do estatuto processual; e a possibilidade de sua ocorrência quanto ao elemento subjetivo da ação é sustentada por Cândido Dinamarco (Litisconsórcio, São Paulo, RT, 1986, p. 312) e Araken de Assis (Cumulação de Ações, RT, São Paulo, 1989, p. 141). Apesar de já reconhecida, na inicial, a ilegitimidade de um dos demandados, somente a sentença final é que apontará o verdadeiro responsável.
Na hipótese de ter sido movida a ação somente contra quem diretamente produziu os danos, este sustentando que o evento ocorreu por culpa de terceiro – aquele que lhe bateu o veículo atrás, impulsionando-o contra o do autor –, muito seguidamente acaba por denunciá-lo à lide, pois entende ser o responsável pelo evento. A linha argumentativa que sustenta, baseada na inexistência de culpa, e por conseqüência na sua ilegitimidade para figurar na demanda, no entanto, não pode ensejar a intervenção. Inexiste qualquer direito de garantia, a facultar o exercício da ação de regresso, a sustentação de ser outrem o responsável pelo evento. Essa defesa necessariamente tem de conduzir à improcedência da ação. Se eventualmente acolhida a demanda, imperiosa a improcedência da denunciação. De outro lado, a condenação do réu denunciante, mesmo garantindo direito de reembolso pela via executória, mostra-se como refugir à natureza do instituto, é condenação do denunciado a ressarcir diretamente o autor.
Necessário reafirmar que não serve esta forma intervencional para, sustentando-se a ilegitimatio ad causam, trazer para a demanda o causador indireto do prejuízo, a fim de que se opere a substituição da parte. Descabe sustentar-se a existência da responsabilidade em face do art. 160 do CC, que declara não constituírem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito, nem a deteriorização ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente. Se o dono da coisa destruída ou danificada não foi culpado do perigo, assiste-lhe o direito de indenização do prejuízo. No caso de ter ocorrido o perigo por culpa de terceiro, contra este compete ao autor do dano ação regressiva (arts. 1.519 e 1.520 do CC). O estatuto só outorga a ação contra o autor do dano, e na hipótese este não é o demandado. Não houve prática de ato, inexiste qualquer agir, não passando o envolvido de mero instrumento, corpo inerte frente ao evento. A simples propriedade do objeto que causou o dano não gera qualquer obrigação indenizatória, por ausência de responsabilidade civil.
Também em outra situação muito comum, ainda em matéria de acidente de trânsito, é ver-se a tentativa de denunciação, quando, já tendo havido a transferência do veículo envolvido, é acionado o anterior proprietário. A pretensão de denunciar a lide ao adquirente, como forma de sustentação de ausência de culpa e a inexistência de responsabilidade, é absolutamente imprópria. Como o uso do automóvel não evidencia a propriedade, mister que a titularidade seja documentada de forma inequívoca. O registro junto ao departamento de trânsito não tem esse condão, pois tal diligência, a cargo do adquirente, tem por função regular a situação do novo proprietário frente à administração pública. De outro lado, a posição com tenacidade sustentada pelo ilustre Des. Décio Erpen (AJURIS, 25/149), de que é o assento no Cartório de Registro Especial que transfere a propriedade do veículo automotor, já não vem mais recebendo aceitação maciça por parte da Corte estadual da Justiça. Não se pode exigir a publicação do ato por registro cartorário para se outorgar eficácia perante terceiros ao ato traslativo. Não pode a Lei dos Registros Públicos alterar a norma da lei civil que estabelece a titularidade dos bens móveis pela posse e a forma de sua transferência pela tradição. Necessário lembrar a autoridade de Pontes de Miranda (Tratado das Ações, São Paulo, RT, 1978, Tomo I, p. 94) ao afirmar que o direito de propriedade, sendo direito absoluto, é dotado de sujeitos passivos totais, a merecer respeitabilidade geral. Assim, incabível exigir registro cartorário para se ver reconhecida eficácia erga omnes a direito que já é dotado dessa qualidade. Em nome de uma eventual insegurança com relação à legitimidade passiva, não se pode impor uma condenação a quem não agiu com culpa. A obrigação indenizatória está calcada nesse elemento subjetivo, pelos termos do art. 159 do CC.
Nessas e em inúmeras outras hipóteses, o uso da litisdenunciação – quando há carência de ação, por ilegitimidade de parte, conforme a nomenclatura adotada pelo estatuto pátrio – gera um mal maior, pois acaba sendo condenado quem não é obrigado pelo pagamento da indenização, e a garantia de reembolso pelo acolhimento da lide incidente nem sempre sana a injustiça cometida.
Mister que seja visualizada com mais seriedade e utilizada com mais parcimônia a denunciação da lide. O instituto, quando mal utilizado, só depois de uma longa tramitação, leva a um juízo de improcedência da ação pelo reconhecimento da inexistência de culpa do réu denunciante. Situação ainda mais dolorosa é a condenação de quem não é o responsável pelo dano; e pouco serve a obtenção de título executivo para voltar-se contra o verdadeiro obrigado. Por derradeiro, a condenação direta do denunciado, postura já adotada em alguns julgados, é de todo insustentável, uma vez que compromete e desvirtua o próprio instituto intervencional.
Assim, o não-exercício da denunciação ou o seu liminar desacolhimento não registra qualquer conseqüência trágica ou fatal quanto a sua indevida utilização.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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