Das obrigações de declarar a vontade
Maria Berenice Dias*
SUMÁRIO
1. As obrigações de fazer. 2. A eficácia da ação. 3. Panorama legislativo. 4. O registro do pré-contrato. 5. O direito de arrependimento.
1. As obrigações de fazer.
Com relação ao objeto das obrigações, dentre as modalidades de prestação, encontra-se a de prestação de fato, que se distingue da prestação de coisa.
A prestação de fato pode ser positiva, ou de fato positivo, e negativa, ou de fato negativo, correspondendo, a primeira, a uma atividade ou ação do devedor, facere, e a segunda, a uma abstenção ou omissão, non facere, pati. Também estão implícitos alguns deveres secundários, como o de abstenção de tudo o que seja incompatível ou possa impedir o fato principal.
Nas prestações de fato, a conduta do devedor pode ter um mero caráter material (construção de um edifício, pelo empreiteiro) ou consistir num ato jurídico (prática, pelo mandatário, de um negócio jurídico).
Entre as prestações de fato positivo, dispõe de características especiais o pré-contrato, ou contrato promessa, que consiste na emissão de uma declaração de vontade destinada a concluir o contrato prometido, sendo esta espécie o objeto do presente trabalho.
O princípio nemo potest precise cogi ad factum sempre ensejou o entendimento de que as obrigações de fazer, infungíveis, só podiam resolver-se em perdas e danos. Pothier, ao estudar as promessas de compra e venda, restou por afastar tal princípio, restringindo-o às obrigações de fatos exteriores e corporais.
As divergências, que ainda se fazem sentir sobre o tema, intimidaram o seu acatamento, mas acabou prevalecendo e refletindo-se nos textos legais, principalmente na Alemanha (art. 894 da ZPO) e no CC italiano de 1942, ao deferirem tais estatutos à sentença a produção dos efeitos do contrato não concluído.
O Direito brasileiro sofreu a influência das Ordenações Afonsinas e Filipinas, que, mesmo prevendo o direito de arrependimento, em havendo confissão judicial, possibilita o constrangimento à outorga da escritura, sem, no entanto, deferir caráter substitutivo à decisão judicial.
Mesmo constando do “Esboço do CC” de Teixeira de Freitas que a sentença que manda passar a escritura fica servindo de escritura, o CC de 1916 não contém disposição sobre a execução específica de obrigações de contratar. O art. 880 resume a perdas e danos o inadimplemento das obrigações só exeqüíveis pelo devedor.
Quando a obrigação é um facere, que não exige um relevante comportamento físico e mental do sujeito passivo, ao se limitar a uma emissão de vontade, não se pode falar em obrigação infungível.
Amaral Santos, sustentando a posição doutrinária de Chiovenda, Mandrioli e Bueno Vidigal, afirma: “Se é certo que as prestações infungíveis, quando não satisfeitas pelo devedor, apenas permitem o recurso à indenização por perdas e danos, o mesmo não se pode dizer, entretanto, com referência às prestações juridicamente infungíveis, isto é, aquelas que exclusivamente por um princípio jurídico só podem ser prestadas pelo devedor. Nesse caso, o Estado, que criou a infungibilidade, pode alterá-la, permitindo-se-lhe prestar a declaração de vontade pelo devedor, ou ao menos criar uma situação jurídica equivalente àquela que se verificaria se a declaração de vontade fosse prestada pelo próprio devedor” [1](
O provimento de substituição da vontade, pela sub-rogação do Estado, não agride a liberdade individual nem atinge a incolumidade física do devedor, tratando-se de infungibilidade jurídica, e não material. Como diz Sydney Sanches, “tudo se passa no mundo da eficácia jurídica”[2].
2. A eficácia da ação.
De primeiro, é de lembrar-se que, apesar de encontrar-se o capítulo referente às execuções de fazer dentro do Livro II do Processo de Execução, tal tipo de vínculo obrigacional não dá ensejo ao processo executório, já que o art. 632 do CPC só concede o procedimento sumarizado às obrigações de fazer reconhecidas em sentença ao referir que o réu será citado para cumprir o julgado. Necessário, pois, prévio processo de conhecimento para que o mando sentencial, estabelecendo um facere, dê ensejo à execução.
Inúmeras as controvérsias que se estabeleceram na perquirição da natureza da sentença, enquanto visualizada sua classificação dentro do processo, e na restrita ótica tripartida.
Liebman, em diferentes momentos, classificou a ação como condenatória, para, em outra oportunidade, exemplificá-la como constitutiva, como surpreendeu Araken de Assis[3] .
As peculiaridades da ação e a necessidade de enquadrá-la dentro de parâmetros que não atendem a sua natureza é que têm levado aos adeptos da hoje superada visão a afirmarem, como Humberto Theodoro Júnior, a natureza condenatória da sentença, sem, no entanto, dar ensejo à actio judicati, pois é a própria execução que se exaure no momento do trânsito em julgado” [4] .
Também Bueno Vidigal, depois de afirmar “é claro que não é constitutiva a sentença que se substitui à declaração de vontade, se esta fosse prestada, não haveria necessidade de sentença”, resta por afirmar “considerada em sua função, é sentença constitutiva, em sentido amplo” [5].
No momento em que se vislumbra que existem ações que já trazem em si a execução forçada, e não só a preparam, satisfazendo com sua cristalização o próprio direito reconhecido, e que na classificação quinária de Pontes de Miranda recebem o nome de executiva, fácil é identificar-se a ação substitutiva da vontade.
“A executividade, nos casos do art. 641, não é simples efeito; a sentença tem força executiva, é sentença executiva, em ação executiva, que exsurgiu em ação executiva lato sensu. O ato do juiz tem a mesma eficácia que aquele que o réu, devedor, tinha de praticar, e não praticou. Por exemplo, se o réu devia ceder algum direito, esse direito passou, pelo fato do trânsito em julgado da sentença , ao autor (ou ao terceiro, a favor de quem estipulara o autor), a despeito da inatividade do réu. O momento da coisa julgada é que firma o momento em que a declaração de vontade se tem por prestada. Não há, pois, falar-se de execução da sentença” [6].
3. Panorama legislativo
Somente o Decreto-Lei nº 58/37, elaborado por Waldemar Ferreira, admitiu a execução específica, por meio de sentença substitutiva da declaração de vontade nos compromissos de compra e venda de imóveis. O art. 16 regulamentou a ação correspondente, de adjudicação, com a expedição da respectiva carta.
O CPC de 1939, em seu art. 346, restou por regular, com algumas alterações, a ação de adjudicação compulsória prevista na lei especial.
A atual condição processual, nas disposições transitórias, art. 1.218, I, preservou a ação especial., mas a Lei nº 6.014/73, que adaptou ao CPC, também sumaríssimo, e ao copiar o art. 22, remetendo à forma procedimental dos arts. 640 e 641, acabou por afastar a norma de eficácia transitória. Como afirma Adroaldo Furtado Fabrício, a disposição transitória sequer chegou a vigorar, pois, ainda, no período da vacatio do Código, acabou por ser incorporada à lei especial [7] .
Finalmente, a Lei nº 6.766/79, sobre parcelamento do solo urbano, defere efeitos reais aos compromissos, às cessões ou promessas de cessão, à reserva de lotes, já que seu art. 27 permite a substituição da vontade do alienante pelo só registro no álbum imobiliário.
Resta, pois, a matéria atinente aos contratos de promessa de compra e venda de imóveis, no aspecto material, regida pelos arts. 15, 16 e 22 do Decreto-Lei nº 58/38, com referência aos imóveis não loteados; já com referência aos
imóveis loteados, o direito material aplicável está substanciado no art. 27 da Lei nº 6.766/79, art. 69 da Lei nº 4.380/69 [8]. E 4.591/64, art. 35, § 4º [9].
O CPC desdobrou em três artigos as ações referentes aos contratos preliminares em geral, sendo que, com referência aos pré-contratos, que tenham por objeto bens imóveis, foi deferido o rito sumaríssimo, sem, no entanto, afastar os requisitos especiais previstos nas legislações especiais supra-referidas.
O art. 639 só tratou das promessas de contratos uni, bi ou plurilaterais, não estipulando os requisitos encontráveis na lei material para a outorga da ação, como afirma Araken de Assis: “… razões históricas fizeram introduzir o instituto pelo estreito canal deste tipo de pré-contrato, sem dúvida importante, e o direito de o particular conseguir a sentença, neste caso, sofre as restrições ínsitas do Direito Material em jogo e o abalo de pressupostos diversos de outros contratos preliminares. Por isso, impossível sustentar que o art. 369 do CPC facultaria sentença substitutiva acaso não fosse admissível a adjudicação compulsória, como se uma coisa e outra não sejam meios paralelos para o mesmo fim” [10].
Ao estipular o referido artigo que, sendo isso possível e não excluído pelo título, restou de forma correta por desvencilhar-se das questões de direito substancial. Melhor esculpiu o § 2º do art. 1.066 do CPC de 39, que reclamava, para a ação, contrato preliminar com as condições de validade do definitivo, exigência nominada por Pontes de Miranda de heterotópica [11].
Não precisa, pois, em face do novo texto legal, a forma do definitivo, basta que tenha a validade, eficácia e regularidade do mesmo, sendo possível o instrumento particular como pressuposto à ação adjudicatória. O contrato definitivo é que terá a forma exigida pela lei, por determinação judicial, segundo Sydney Sanches [12].
Procurou o novel dispositivo afastar do âmbito da relação processual as divergências doutrinárias e jurisprudenciais que sempre animaram o tema.
4. O registro do pré-contrato.
Cabe examinar-se, agora, sobre a necessidade de registro do pré-contrato, para dar ensejo à adjudicação compulsória.
O art. 27 da Lei nº 6.766/79 não exige o registro do compromisso, contrato ou cessão, uma vez que defere direito ao ato registral após simples notificação do promitente vendedor para a formalização do Direito. Despicienda a via judicial para a outorga de eficácia real ao acertamento preliminar da venda. Somente em havendo impugnação, a teor do § 3º do indigitado artigo, é que são remetidas as partes à órbita do Judiciário, conforme o procedimento outorgado pelos arts. 639 e 640 do CPC. Em assim determinando a lei, vê-se que, em se tratando de imóveis loteados, para o sucesso da via adjudicatória, despicienda a prévia formalidade registral.
Já quanto aos imóveis não loteados vigora o regramento dos arts. 15, 16 e 22 do Decreto-Lei nº 58/38, que, em seu art. 22, faz expressa referência à necessidade da inscrição, a qualquer tempo, do contrato para a ação de adjudicação. Igual exigência é feita com relação aos imóveis financiados pelo SFH (art. 69 da Lei nº 4.380/64) e às edificações condominiais (§ 4º do art. 45 da Lei nº 4.591/64).
A posterioridade da norma processual, no entanto, restou por derrogar os requisitos insculpidos nas leis materiais para a consolidação do Direito pela via judicial.
Ante a carência de regramento procedimental adequado é que restaram as leis consagradoras dos direitos por estipular as normas procedimentais, estabelecendo pressupostos e requisitos para o seu reconhecimento.
Porém, no momento em que explicitamente o CPC regra a forma de adimplemento de obrigações que tenham por objeto a transferência da propriedade, sem estabelecer a exigência da prévia inscrição imobiliária, não mais se torna esta necessária para o exercício do Direito à tutela jurídica.
Por certo que não se pode conceber a existência de uma dupla via judicial para o exercício da mesma pretensão, ou o uso da ação prevista na lei processual para contornar os entraves da demanda outorgada pela lei que regra o Direito Material. Expediente, aliás, preconizado por Pontes de Miranda ao tempo do CPC revogado, como lembra Araken de Assis, ao sustentar a dispensabilidade do registro [13].
Essa postura é sustentada, também, por Ricardo Arcoverde [14] e Arnaldo Rizzardo. “O novo CPC limpou a área para a aceitação, em sentença, independentemente de inscrição, da execução coativa de forma específica da obrigação de emitir a declaração negocial contraída em promessa irretratável” [15].
Apesar das inúmeras decisões do STF sustentando a indispensabilidade do registro, vem mesmo sendo contornado por meio das Súmulas nºs 167 [16]e 168[17]
Explícito o art. 639 do CPC ao deferir uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato não firmado. Vê-se, pois, a natureza substitutiva da sentença, por ocorrer a sub-rogação pelo Estado da volição faltante.
O atual verbo legislativo, mais feliz que o art. 1.006 do CPC, que estabelecia uma ficção – “será esta havida por enunciada” -, recebeu os aplausos da doutrina, já que sensível a crítica de Bueno Vidigal, melhor retratou a substituição da vontade do obrigado pelo comando judicial. Trata-se a sentença substitutiva da declaração de vontade de uma forma de execução específica de certa obrigação de fazer mediante sub-rogação e independente da vontade do devedor.
É evidente que a eficácia executiva imediata dessa sentença implementa o negócio jurídico de direito material e o substitui para fins de registro, quando imprescindível, ou de provar existência de qualquer outro contrato definitivo. Logo, na maioria dos casos, o mandato judicial resolve o problema registral” [18].
5. O direito de arrependimento.
Finalmente, cabe analisar-se o direito de arrependimento insculpido no art. 1.088 do CC. Em matéria de pré-contratos, tal norma vem recebendo abrandamentos, vigorando o princípio de sua irretratabilidade.
O art. 25 da Lei nº 6.766/79 considera irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessão e promessa de cessão. O art. 22 do Decreto-Lei nº 58/38 e o art. 69 da Lei nº 4.380/64 atribuem direito real aos contratos sem cláusula de arrependimento. Como lembra Araken de Assis: “Não coexistem pré-contrato compulsório e cláusula de arrependimento, porque, neste caso, face aos termos do art. 1.088 do CC brasileiro, as partes convieram com a redução da retratabilidade às perdas e danos” (14).
Pontes de Miranda sustenta que tal dispositivo não se aplica aos pré-contratos, sendo que a Súmula nº 166 do STF estipulou: “É inadmissível o arrependimento de compromisso de compra e venda ao regime do Decreto-Lei nº 58”.
Apesar disso, no entanto, não se pode apagar a norma inserida na lei e que permite a estipulação de cláusula de arrependimento. É de lembrar-se que o art. 639 do CPC condiciona a ação substitutiva à não-exclusão do direito pelo título.
Incontroverso, no entanto, que a retratabilidade prevista no contrato não afasta o exercício da ação adjudicatória, já que, para a mesma, mister a prova do pagamento do preço. Estando este já satisfeito, não se pode falar em direito de arrependimento. Interessante a posição adotada, na seguinte decisão: “O direito de arrependimento tem que ser exercido dentro do prazo que o pré-contrato estabelecer e, se não existir esse prazo, até o início da execução do contrato” (15) .
[1] “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, Saraiva, São Paulo, 1985, 12ª ed., 3/376.
[2] – “Execução Específica”, Ver. dos Tribs., São Paulo, 1978, p. 41
[3] Manual do Processo de Execução, SEJOU, Porto Alegre, 1987.
[4] In Araken de Assis, ob. Cit., p. 310.
[5] “Direito Processual Civil”, Ed. Saraiva, 1965, p. 86 e 91
[6] Pontes de Miranda, Comentários …, Tomo X, p. 319.
[7] “Doutrina e Prática do Procedimento Sumaríssimo”, Coleção AJURIS/7, Porto Alegre, 1970, p. 105.
[8] “Art. 69”: O contrato de promessa de cessão de direitos relativos a imóveis não loteados, sem cláusula de arrependimento e com imissão de posse, uma vez inscrita no Registro Geral de Imóveis, atribui ao promitente cessionário direito real oponível ao terceiro e confere direito à abstenção compulsória da escritura definitiva de cessão, aplicando-se, neste caso, no que couber, o disposto no art. 16 do Decreto-Lei nº 58, de 10.12.37, e no art. 346 do CPC.
[9] “§ 4º do art. 35”: Descumprida pelo incorporador e pelo mandante de que trata o § 1º do art. 31 a obrigação da outorga dos contratos referidos no capítulo deste artigo, nos prazos ora fixados, a carta proposta ou o documento de ajuste preliminar poderão ser averbados no Registro de Imóveis, averbação que conferirá direito real oponível a terceiros, com o conseqüente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente.
[10] Ob. Cit., p. 312.
[11] “Coments. ao CPC”, Saraiva, Rio de Janeiro, 1978, X/116
[12] Ob. Cit., p. 29.
[13] Ob. Cit., p. 315.
[14] “Adjudicação Compulsória”, Ver. dos Tribs., 4ª ed., 1988, p. 69.
[15] “Contratos”, Aide, Rio de Janeiro, 1988, p. 286.
[16] “Súmula nº 167”: Não se aplica o regime do Decreto-Lei nº 58 ao compromisso de compra e venda não inscrito no Registro Imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar o registro.
[17] “Súmula nº 168”: Para os efeitos do Decreto-Lei nº 58, admite-se a inscrição imobiliária do compromisso de compra e venda no curso da ação.
[18] Araken de Assis, ob. cit., p. 319.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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