Política

Copa de 2014: negar a aplicação dos microssistemas protetivos dos vulneráveis para garantir interesses da FIFA é ofender a soberania nacional

É com estupefação que tenho acompanhado – e creio que também outros tantos – as notícias dando conta da intenção da FIFA – Fédération Internationale de
Football Association, no sentido de que o governo federal suspenda, durante a Copa de 2014, a aplicação do caso Código de Defesa do Consumidor, bem
como reveja a concessão de meia-entrada nos estádios, garantida aos estudantes por leis estaduais, e aos idosos pelo Estatuto do Idoso, verdadeiros
microssistemas garantidores de direitos de coletividades consideradas desfavorecidas em nosso país.

Vozes contrárias ao acolhimento das reivindicações daquela entidade pelo governo federal já estão aparecendo, a começar pelo IDEC – Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor, o qual direcionou uma carta à Presidência da República, manifestando seu descontentamento e dispensando críticas em
relação à possível revisão do PL 2330/11, denominado Lei Geral da Copa, que tememos seja levada a cabo pelo Legislativo e Executivo.

Em outras palavras, requer a FIFA a supressão de direitos fundamentais garantidos àqueles segmentos da sociedade, juridicamente considerados fática,
econômica, jurídica e socialmente desfavorecidos, bem como seja permitida a comercialização de bebidas alcoólicas nos estádios, tudo na contramão das
diretrizes e princípios que informam a garantia do equilíbrio social visado com a prevenção, precaução e repressão de condutas consideradas, pelo
direito, como danosas à sociedade.

Atender aos interesses da FIFA, perdoem-me pela expressão, será o mesmo que cuspir na cara dos juristas, legisladores, segmentos sociais, enfim, de
todos que trabalharam durante anos, se debruçando com afinco na confecção desses estatutos garantidores de direitos; será cuspir no Judiciário, que,
após a CF/88 deixou de ficar de joelhos e, paulatinamente, vem aplicando as disposições desses diplomas legais protetivos, garantindo a fiel
observância dos preceito constitucionais. Pior ainda, será o mesmo que cuspir nos milhares de consumidores, idosos, estudantes, isto é, sujeitos cujos
direitos são tutelados por leis específicas porquanto sua condição social reclama aquelas tutelas.

Nossa Constituição Federal traz, no art. 170, e incisos, os princípios informadores da ordem econômica, sendo que a defesa do consumidor é um daqueles
princípios a serem observados para que o exercício da atividade econômica transcorra em respeito aos demais interesses multicitados no texto
constitucional. Além disso, a
CF /88, em seu Título II, Capítulo I, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, respectivamente,
prescreveu que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), consignando, posteriormente, no art.
48 do ADCT que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.”

Cumprindo a determinação constitucional, cento e oitenta dias após sua publicação o codex consumerista (Lei nº
8.078 /90) entrou em vigor dispondo logo em seu art.
que se trata de norma de ordem pública e interesse social. Ao proclamar que suas normas são de ordem pública e interesse social, o CDC está a dizer que
aquelas são cogentes e inderrogáveis pela vontade das partes, bem como é um microssistema com função social que, nos dizeres de LEONARDO DE MEDEIROS
GARCIA, “não só procuram assegurar uma série de novos direitos aos consumidores, mas também possuem a função de transformar a sociedade de modo a se
comportar de maneira equilibrada e harmônica nas relações jurídicas.” (In Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. rev. amp. e
atual. Niterói: Impetus, 2011)

Numa análise perfunctória, não é difícil verificar que a própria
Carta Magna conferiu status constitucional aos direitos do consumidor, ao determinar a promoção de sua defesa, na forma da lei. Daí dizer-se que o
CDC possui vocação constitucional. Ademais, como magistralmente pontuado por SÉRGIO CAVALIERI FILHO, o CDC é verdadeira “sobre-estrutura jurídica
multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma relação de consumo” (In Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1998). Sobre a harmonia nessas relações, o CDC também é enfático ao dispor em seu art. 4º que a harmonização dos interesses dos
participantes das relações de consumo somente será alcançada caso sejam compatibilizados com a proteção do consumidor, e sempre, registre-se, observada
a boa-fé objetiva.

Assim, revela-se verdadeiro absurdo a permissão contida no art. 33 do PL nº 2330/11, que assim dispõe:

Art. 33.  Os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de Ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento
de assentos nos locais dos Eventos serão definidos pela FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade:

I – de modificar datas, horários ou locais dos Eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso do valor do Ingresso ou o direito de comparecer
ao Evento remarcado;

II – da venda de Ingresso de forma avulsa ou conjuntamente com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e

III – de estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do Ingresso após a confirmação de que o pedido de Ingresso foi aceito ou
após o pagamento do valor do Ingresso, independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso.

Ora, o dispositivo em questão afronta veementemente o disposto no art. 49 do CDC, que garante a este o prazo de reflexão de 7 dias para a desistência
do contrato quando a contratação ou o fornecimento do produto ou do serviço ocorrer fora do estabelecimento comercial. Como se sabe, hodiernamente
inúmeras vendas, como ocorre com a venda de ingressos para eventos, inclusive, são feitas pela internet, sendo que, provavelmente milhares de
torcedores irão adquirir seus ingressos dessa forma.

A aquisição de ingressos é, indubitavelmente, um contrato. Então o consumidor, caso exercite o seu direito de reflexão, poderá ser sancionado pelo
exercício regular de um direito?! Era só o que faltava! Ficará ao livre arbítrio da FIFA definir os critérios para cancelamento, devolução e reembolso
de ingressos, praticar venda casada no fornecimento de ingressos e estabelecer cláusula penal, “independentemente da forma ou do local da submissão do
pedido ou da aquisição do Ingresso”? Isso é “escarrar” na cara do consumidor, data maxima venia!

Permitir que a FIFA imponha ao Brasil as regras que melhor lhe atendam é, mais do que afrontar as disposições constitucionais e do microssistema
consumerista, afrontar os seguintes fundamentos da República Federativa do Brasil: a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I,
II e II, da CF). Quando o consumidor exerce seus direitos, está exercendo sua cidadania. Atender às reivindicações da nominada entidade é permitir que
um ente não soberano intervenha na nossa soberania. Quando nossa bandeira tremula ostentando a frase “Ordem e Progresso”, nessa ordem está compreendida
a ordem jurídica. A independência nacional da República Federativa do Brasil é princípio reitor de suas relações internacionais (art. 4º, I, da CF). Se
a ordem jurídica é um dos instrumentos a garantir essa independência em relação a Estados estrangeiros, o que se dirá em relação a uma mera entidade
que regula o futebol!? Todos esses estatutos garantidores de direitos, em última análise, foram forjados de modo a assegurar a dignidade da pessoa
humana. Normas jurídicas servem para isso. As leis servem ao homem, e não o contrário.

No que toca aos idosos, a garantia de meia-entrada também é inspirada no texto constitucional, figurando no Capítulo V da Lei nº 10.741/03, sob a
rubrica “Da Educação, Cultura, Esporte e Lazer” preceituando no art. 23 que “A participação dos idosos em atividades culturais e de lazer será
proporcionada mediante descontos de pelo menos 50% (cinqüenta por cento) nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer, bem
como o acesso preferencial aos respectivos locais.” Como se vê, o preceptivo é imperativo ao dizer que a participação dos idosos SERÁ PROPORCIONADA.
Portanto, não é mero conselho ou orientação; é norma imperativa (grifei).

Em relação à meia-entrada garantida aos estudantes, tal decorre da necessidade de se assegurar a essa coletividade o seu pleno desenvolvimento e
preparo para o exercício da cidadania, consoante dispõe o caput do art. 205 da CF/88, não sendo demais lembrar que o dispositivo em comento se encontra
no capítulo que trata da educação, da cultura e do desporto. Assim, deve ser garantida a meia-entrada em eventos esportivos.

Não obstante as leis estaduais que garantem a meia-entrada aos estudantes, a MP 2208/01 assegura esse benefício a menores de dezoito anos que
apresentem documento de identidade expedido pelos órgãos públicos competentes (art. 2º), bem como ao estudante que comprove essa qualidade através da
“exibição de documento de identificação estudantil expedido pelos correspondentes estabelecimentos de ensino ou pela associação ou agremiação
estudantil a que pertença, inclusive pelos que já sejam utilizados, vedada a exclusividade de qualquer deles” (art. 1º).

Não custa lembrar que a MP 2208/01 teve como objetivos principais: a) regulamentar a comprovação da situação de estudante; b) afastar o monopólio da
UNE e da UBES, no que diz respeito à emissão de carteirinhas cujo uso permite que o estudante goze de seus direitos.

Há quem diga que a MP em referência perdeu sua validade por decurso de tempo, o que não é verdade, pois, para os desavisados, a EC 32/01 atribuiu lapso
temporal indeterminado para as MPs que lhe são anteriores. Dessa forma, as MPs anteriores à emenda constitucional em tela somente perderão sua eficácia
se forem revogadas, o que não é o caso.

Outro ponto de relevância inafastável diz respeito à venda de bebidas alcoólicas nos estádios. A proibição nesse sentido deriva do art. 13-A, II, da
Lei nº 10.671/03, conhecida como Estatuto do Torcedor, sendo também uma norma de ordem pública e interesse social, na medida em que guarda íntima
relação com o CDC. Permitir, mesmo que em caráter transitório, que a venda e consumo de bebidas seja liberada nos estádios durante a Copa de 2014, é
arriscar demasiadamente a segurança pública, pois é sabido que o consumo exagerado de bebidas é responsável por todo o tipo de desordem social,
culminando, não raro, na prática de crimes.

Será que isso vale a pena? Será viável afastar conquistas sociais hoje estampadas em legislações fortes, com vocação constitucional, em nome de
interesses particulares? O legado que essa Copa do Mundo deixará será positivo? Alguém sabe?

O que se sabe é que a estrutura construída para a Copa de 2014 não é barata. Já tem saído bastante cara, não só para o bolso do contribuinte, mas, em
situações piores, para toda uma coletividade que sofre com todo o tipo de revés, como a falta de hospitais, escolas, alimentação de qualidade,
desemprego, moradia, segurança, desamparo, enfim, não por acaso os direitos sociais arrolados no art. 6º da Carta Fundamental.

Posso agravar mais?

Pois bem, some-se a isso o fato inarredável de que o brasileiro, aquele que “não desiste nunca”, e em diversas ocasiões “vende” o almoço pra comprar o
jantar, para ir a um jogo de futebol às vezes também vende o jantar pra comprar o ingresso ao estádio. Esse torcedor, como a experiência já demonstrou
em diversas oportunidades, não raro se envolve em brigas nos estádios, e às vezes mata torcedores adversários, às vezes sob a influência de álcool,
mas, acima de tudo, em razão da pobreza cultural de que é infeliz portador. Esse torcedor é capaz de matar porque sua existência é marcada pela
violência institucional perpetrada pelo Estado, que não lhe garante os direitos mais básicos para viver dignamente, mas lhe garante pão e circo.
Afinal, é o que importa! Façamos o indivíduo esquecer sua condição indigna garantindo-lhe o acesso aos jogos de futebol, mesmo com os ingressos mais
baratos chegando a custar quase 10% do salário mínimo, e maximizemos os lucros na Copa do Mundo. E por quê não? Afinal, será bom para a economia! Vamos
acrescentar um ingrediente a mais nas bebidas que serão vendidas nos estádios, caso o governo federal concorde com as imposições mercantilistas da
FIFA: vamos acrescentar uma dose de ódio que torcerá as vísceras do torcedor (perdão pelo trocadilho) quando este tiver seus direitos constitucionais
desrespeitados durante a Copa de 2014.

Não é demais repetir que o desenvolvimento econômico, cujas balizas se encontram no Capítulo I, do Título VII, da Constituição Federal, deve observar a
garantia de outros direitos também previstos constitucionalmente, e que se encontram em posição topográfica em relação à ordem econômica, estatuídos no
rol de direitos fundamentais individuais e coletivos, sob pena de até mesmo configurar ofensa aos princípios reitores da Administração Pública,
expressos na CF/88 ou mesmo aqueles reconhecidos como tal.

Ceder aos humores da FIFA é contrabando legislativo travestido de prosperidade econômica e suposta projeção no cenário mundial, o que redundará em
altos custos sociais, decorrentes da violação de direitos fundamentais.

Se a nossa Carta Política não admite nem mesmo a deliberação de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais, a teor do
disposto no art. 60º § 4º, IV, da Constituição Federal – o que, em tese, objetivaria consolidar uma situação duradoura no tempo e de caráter geral – o
que se pode dizer de um projeto de lei com caráter flagrantemente unilateral, que visa a atender interesses exclusivos de uma entidade futebolística? É
flagrantemente inconstitucional, e deverá, de lege ferenda, ser vetado, no que contrariar os preceitos constitucionais.

Contrariar o CDC, o Estatuto do Idoso e as garantias estudantis é, reflexamente, contrariar a Constituição. Caso essa situação se concretize, caberá ao
Ministério Público e demais legitimados pela promoção de ações coletivas promover as intervenções pertinentes, sem poupar armas, de modo a assegurar a
integridade leis que garantem direitos e proteção a seus destinatários.

Só faltava o nosso país deixar de ser colônia de Portugal e virar colônia da FIFA!

Esperamos, sinceramente, que nossa presidenta, que foi ativista, foi presa e torturada por lutar por liberdade e pelos direitos mais caros do ser
humano, enfim, que combateu a ditadura militar, não ceda à ditadura da FIFA.

* Vitor Vilela Guglinski, Advogado. Professor. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Ocupou o cargo de assessor do juiz da 2a. Vara
Cível de Juiz de Fora-MG. Membro do INJUR – Instituto Cultural para a Difusão do Conhecimento Jurídico. Colaborador permanente a convite da COAD/ADV.
Seminarista convidado pelo INPA – Instituto de Pesquisas aplicadas do Ceará. Autor de artigos e ensaios jurídicos publicados em periódicos
especializados

Como citar e referenciar este artigo:
GUGLINSKI, Vitor Vilela. Copa de 2014: negar a aplicação dos microssistemas protetivos dos vulneráveis para garantir interesses da FIFA é ofender a soberania nacional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/copa-de-2014-negar-a-aplicacao-dos-microssistemas-protetivos-dos-vulneraveis-para-garantir-interesses-da-fifa-e-ofender-a-soberania-nacional/ Acesso em: 22 nov. 2024
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