Economia

Cartel, ilegalidade per se e ônus da prova: breves considerações

Cartel, ilegalidade per se e ônus da prova: breves considerações

 

 

Roberto Domingos Taufick*

 

 

 

A ilegalidade per se é inadmissível no Direito Antitruste. A mais evidente afronta à concorrência demanda, ao menos, a existência de poder de mercado por parte do agente econômico. A verificação da presença de posição dominante é  conditio sine qua non para determinar se houve ou não afronta à concorrência.

 

É essencial termos em mente que a concorrência não é um bem em si mesmo, haja vista que a ausência da concorrência é, por vezes, necessária para o mais eficiente funcionamento de determinada atividade econômica. Onde essa exceção não se aplica, o afastamento ou decréscimo da concorrência por meios que não o crescimento interno da empresa são, como regra, condenáveis.

 

Observe-se que, primeiramente, é necessário que haja a efetiva possibilidade de a conduta analisada vir a ferir a concorrência, sem o quê se configuraria crime impossível. Nesses termos, o ilícito per se clássico já é afastado, porquanto a mais simples condenação depende, ao menos, de uma mínima análise de mercado, definindo sua dimensões geográfica e em termos de produto. Nesses termos, não há nítida separação entre a denominada regra per se e a regra da razão, uma vez que considerável análise sobre as condições do mercado costuma ser necessária para a aplicação daquela[1].

 

Essa análise pode vir a ser substituída pela prova inconteste de que o ato sob análise já apresentou manifesta implicação anticoncorrencial – implicação essa que tem o condão de provar a existência de poder de mercado, sem o qual ela não existiria. A constatação da ilegalidade pela análise sumária (quick look) – nome que preferimos ao termo ilegalidade per se, em razão de sua maior precisão terminológica – depende, portanto, da comprovação da ocorrência de manifesto dano à concorrência. É evidente, diga-se, que a constatação da ilegalidade pela análise sumária não afasta a necessidade de comprovação do poder de mercado – ao revés, reforça-a pelo mister de que se comprove dano à concorrência, o qual tão-somente se efetiva caso o agente detenha referido poder de mercado. O que caracteriza a análise sumária não é a dispensa do poder de mercado, mas a imediata constatação do dano e do subseqüente poder de mercado, a qual permite a célere condenação do cartel.

 

A denominada regra per se tem sido comum e inadequadamente invocada em casos de cartel. O cartel, embora tipicamente caracterizado como ilícito de conduta, é igualmente ato de concentração – devendo, como tal, ser submetido à regra da razão que permeia o art. 54 da Lei nº 8.884/94. Diferentemente da concorrência desleal, portanto, o cartel é crime formal e não de mera conduta, exigindo-se, para sua consumação, que os resultados sejam factíveis. A não ser que se faça uma confusão entre os institutos, a reprovação de trustes e cartéis é pautada pelo potencial ofensivo à concorrência, e não pelo desrespeito ao comportamento ético entre concorrentes, matéria para o crime de mera conduta. Em suma, entre os atos de concentração – entre os quais se inserem os cartéis -, o bem maior é a concorrência e, mediatamente, o bem-estar do consumidor. Na concorrência desleal, o bem a ser resguardado é a ética entre concorrentes e, mediatamente, o próprio empresário. Daí o cartel delituoso demandar poder de mercado, sendo esse prescindível em matéria de concorrência desleal.

 

A condenação do cartel, além de demandar posição dominante, depende da inexistência de uma virtude redentora (redeeming virtue) que justifique ser a concorrência menos relevante que a manutenção daquela prática ou que demonstre que sua consecução seja condição necessária para a criação de ambiente concorrencial[2]. A apresentação da virtude redentora, contudo, cabe às empresas cartelizadas, haja vista que a comprovação do cartel inverte o ônus probatório.

 

Constatada a subsunção do cartel às regras do art. 54 da Lei Antitruste, justifica-se a sua apresentação ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência? A resposta deve ser positiva, sem exceções. Em se sabendo do hercúleo trabalho em que consiste a condenação de cartéis, a submissão voluntária do cartel ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, seja ele recente ou não, deve obstar a instauração de processo administrativo pelo SBDC, servindo, assim, de sanção premial. Por outro lado, a não submissão deve ser considerada forte indício contra eventuais virtudes redentoras a serem levantadas para justificar o cartel e, não obstante, deve ensejar a cominação da multa de que trata o art. 54, §5º da Lei Antitruste.

 

Com relação ao ônus probatório, indaga-se, então, até que ponto se deve provar a existência do cartel, haja vista que o paralelismo de conduta pode ser mesmo sintoma da concorrência perfeita. Delimitando o termo concertação, definimo-lo com o comportamento paralelo e intencional entre dois ou mais agentes. Do paralelismo intencional decorre a tipificação como ato de concentração, pois é do comportamento unidirecional que se estabelece o propósito único, como vetores em mesmo sentido, que se somam.

 

Como é pacífico em matéria de Direito do Consumidor, a inversão do ônus probatório ocorre em função da hipossuficiência do consumidor, que não se confunde com sua situação financeira. Trata-se de convencionar que as informações disponíveis ao consumidor são insuficientes para contrastar com o conhecimento técnico e operacional do empresário. Em matéria de cartel, o Estado chega a condição análoga à de hipossuficiência, encontrando-se, em virtude da salutar liberdade de reunião constitucionalmente assegurada, permanentemente de mãos atadas por não conseguir provar, cabalmente, a existência do comportamento concertado.

 

Se o Direito Penal – que há de ser, por razões óbvias, o mais restritivo em termos de admissibilidade de provas -, acolhe a condenação por prova indiciária, certo é que ao Direito Concorrencial não caiba outra alternativa senão admiti-la. Em consonância com a doutrina do paralelismo plus, acredito que a alternativa mais viável tenha-se mostrado comprovar que, ademais do (1) comportamento paralelo investigado (v.g., aumento de preços), haja (2) fortes indícios de que as partes teriam arquitetado referido comportamento (v.g., recente reunião entre concorrentes). Finalmente, seria necessário provar que (3) não havia motivos plausíveis e legalmente amparados para que as partes adotassem o comportamento paralelo investigado.

 

Parece-me evidente que, mesmo com a admissão das provas indiciárias, a condenação dos cartéis permanece extremamente difícil – o que representa um claro ônus do Estado democrático de Direito. Maior abertura à prova indiciária e a própria sinalização aos agentes econômicos para que submetam ao SBDC acordos horizontais de natureza colaborativa, porém, parecem dois importantes instrumentos no combate aos cartéis ainda pouco explorados no sistema da concorrência.

 

Bibliografia

 

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DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1.991.

 

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MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 3.ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1.998.

 

NUNES, Luiz Antonio Rizzato. O Código de Defesa do Consumidor e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: Editora Saraiva, 1.997.

 

OLIVEIRA, José Carlos de. Código de Proteção e Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora de Direito: 1.998.

 

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SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial: as condutas. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003.

 

[1] We have recognized, for example, that there is often no bright line separating per se from Rule of Reason analysis, since considerable inquiry into market conditions may be required before the application of any so-called per se condemnation is justified. (Justice Souter, in California Dental Association v. Federal Trade Commission)

 

[2] This decision is not based on a lack of judicial experience with this type of arrangement, on the fact that the NCAA is organized as a nonprofit entity, or on our respect for the NCAA’s historic role in the preservation and encouragement of intercollegiate amateur athletics. Rather, what is critical is that this case involves an industry in which horizontal restraints on competition are essential if the product is to be available at all. (Justice Stevens, in National Collegiate Athletic Association v. Board of Regents of University of Oklahoma)

 

 

* Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/USP (2001). Atualmente é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e Assessor de Gabinete no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, cursando pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas (FGVLaw). Tem experiência em Administração Pública e Direito, com ênfase em Direito da Empresa – atuando, principalmente, em Direito da Concorrência. Como escritor literário, é cronista, ensaísta, contista e poeta, assinando seus trabalhos sob o pseudônimo R.D. Oliveira Lima Taufick, sendo membro honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/USP.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
TAUFICK, Roberto Domingos. Cartel, ilegalidade per se e ônus da prova: breves considerações. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/economia/cartel-ilegalidade-per-se-e-onus-da-prova-breves-consideracoes/ Acesso em: 01 jul. 2025
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