A Medida Provisória nº 881/2019 (MP) conhecida como “MP da Liberdade Econômica”, vai além de declarar direitos dos particulares para exercer atividades econômicas, reduzir restrições àquelas de baixo risco ou condicionar o exercício da função normativa estatal a critérios. Mesmo com suas imperfeições, temos um importante debate para o Brasil sobre o tema da regulação da economia.
Qual o debate que a MP proporciona ao Brasil?
A construção da burocracia brasileira como ela é tem origens nos governos de Getúlio Vargas e dos militares, ambos organizados em torno do paradigma do Estado desenvolvimentista. Nesse, nosso subdesenvolvimento foi concebido como um subproduto do capitalismo e, a fim de solucionar suas mazelas, o Estado haveria de criar mercados[1], capitaneando um rápido processo de industrialização. Além disso, seu protagonismo envolveu coordenar as atividades privadas, ordenando aquelas em que houvesse interesse público a partir de uma estrutura institucional centralizada e robusta.
No fim da década de 1980 e início dos anos 1990 essa lógica entrou em declínio e, sob a influência do paradigma neoliberal, o “Estado Empresário” é substituído pelo “Estado Regulador”. Com isso, as hipóteses de ação direta na economia são restritas (art. 173, CF) e reforçam-se atuações indiretas “menos intrusivas, normalmente baseadas em regras e padrões especificados previamente”[2].
Nessa linha de ação ocorrem desestatizações e a criação agências reguladoras, dialogando com a ideia dos teóricos da “velha” e “nova” economia institucional[3] de que as instituições é que determinariam o caminho do processo de desenvolvimento[4], e não uma definição dicotômica que escolhesse Estado ou mercado para a tarefa. Constroem-se ferramentas de interação público-privadas para regular tanto as atividades exercidas em regimes de delegação pública (art. 175, CF) quanto as exercidas por direito próprio do particular (art. 170, parágrafo único, e art. 174, CF).
O ponto a destacar é este: embora distintas, ambas as orientações partem da premissa de que o Estado, por ação direta ou pela via corretiva (indireta), seria capaz de nos conduzir ao caminho do desenvolvimento econômico, proporcionando melhores resultados em termos de eficiência ou equidade na alocação de recursos do que os atingidos pelo mercado livre. Utilizando-se a metáfora de Harold Demsetz, a crença nesse ideal nos levaria a uma espécie de “estado de nirvana”[5] que, se não perfeito, ao menos traria maior bem-estar do que aquele oferecido pela realidade capitalista.
A questão é que também o Estado regulador apresentou suas insuficiências para nos aproximar do “nirvana”. Assim, esse foi reformulado com a ascenção do paradigma do novo desenvolvimentismo estatal, que dominou o cenário brasileiro dos anos 2000 ao menos até o impeachment de 2015. A lógica dessa orientação foi desenvolver arranjos institucionais preocupados com participação social e com o aproveitamento de sinergias público-privadas, mas que devolvessem ao Estado um papel de protagonista[6] no processo de desenvolvimento Intensificou-se, a partir daí, a tradição histórica brasileira de intensa interação estatal face às atividades privadas, na busca do nirvana prometido.
Com o tempo, mais instituições passaram a deter jurisdição sobre as atividades privadas, tornando a ação pública mais burocrática; e mais incisiva, a depender da natureza “impacto social” da atividade[7]. Diversos são os exemplos dessas práticas, como a regulação do ensino, ao incluir a necessidade de se observar critérios de necessidade social para a implantação de cursos, bem como a previsão de preços máximos de venda ao consumidor para o setor de medicamentos.
A legitimidade dos propósitos redistributivos que tais medidas visam a tutelar contrasta com as prerrogativas da iniciativa privada em definir os elementos essenciais das atividades, intensificando conflitos normativos. Esses são acomodados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) casuisticamente, que, por meio da regra proposta por Robert Alexy, oferece a seguinte fórmula: “a liberdade de iniciativa” (…) “não impede a imposição, pelo Estado, de condições e limites para a exploração de atividades privadas tendo em vista sua compatibilização com os demais princípios, garantias, direitos fundamentais e proteções constitucionais, individuais ou sociais”[8].
Essa proposição reflete a tradição brasileira de que ao Estado é dado perseguir o “nirvana”, condicionando a livre iniciativa quando julgar apropriado. Essa ação será legítima a priori, pois instituída por ato administrativo com presunção de legitimidade, veracidade e auto executoriedade, podendo ser discutida no Judiciário se e quando o particular se sentir lesado, a sua conta e risco.
A MP oferece uma proposta para mudar esse paradigma. E faz isso criando a presunção de que a regra é a liberdade de iniciativa e que o empreendedor age de boa-fé, devendo sofrer limitações mínimas (art. 2º), que respeitem direitos e sejam pautadas por regras (art. 4º). A ação pública é que se justificará apenas se for criada com a observância de procedimentos (art. 5º) baseados no exame de consequências que, por isso, hão de levar em consideração aquilo que adere à realidade.
A iniciativa nasce na esteira de reformar o novo desenvolvimentismo. Entretanto, seu debate, penso, não envolve a dicotomia de regular ou “liberar geral”, hipótese até mesmo impraticável à vista do teor do art. 170, parágrafo único, e art. 174 da CF. Se trata de discutir como, no contexto das capacidades institucionais brasileiras, a função de regular pode ser exercida de uma maneira útil para promover o desenvolvimento, considerando nossa experiência e as limitações em confiar na construção de estruturas burocráticas que prometem, mas não cumprem, nos conduzir ao nirvana.
Motivações e mudanças para a regulação de atividades econômicas
As motivações para essa mudança nascem de uma realidade empírica. Nossa experiência com a expansão de canais burocráticos e monopólios decisórios sobre acesso ou permanência no mercado se revelou um incentivo à corrupção[9], além de elevar os custos para empreendedores atenderem a exigências discricionárias e, por vezes, contraditórias, de entes com competências superpostas[10].
Diante desse cenário, alguns advogam pelo esvaziamento das prerrogativas estatais face às ativides econômicas e, muitos, sustentam ser esse o propósito de atos como a MP. Entretanto, um olhar minimamente criterioso sobre o texto sugere que não houve uma escolha pela abstenção do Estado. Ao contrário. Ao que tudo indica, o debate proposto supera o preconceito de haver mercados ou Estados totalmente perfeitos, projetando a discussão sobre como a regulação estatal deva ocorrer.
Com efeito, o art. 3º eliminou a necessidade de qualquer “ato de liberação econômica” para um grupo de atividades caracterizadas como de “baixo risco”, além das chamadas startups, que estão tacitamente no texto. Ocorre que o enquadramento nesse conceito caberá aos municípios, estados ou, na falta de regras desses, à União, de modo que haverá regulamentação do tema. Da mesma forma, a regra determina a definição de prazo para o exame de requerimentos desses atos, cuja inobservância implicará aprovação tácita, também pressupõem a existência de regulamentos.
Não se pode negar que haja riscos. É possível, por exemplo, que ao não exigir um alvará de localização e funcionamento prévio, algum empreendimento de “baixo risco” se instale em local vedado pelo plano diretor. Entretanto, a julgar pelo texto da MP, não parece que inadequações dessa natureza serão toleradas, pois fiscalização haverá e, consequentemente, adequações ou, ainda, sanções. Nesse cenário, fica difícil sustentar a leitura de que “liberou geral”, pois mais parece que ideia seja a Administração se reinventar, focando em estratégias para induzir pessoas a fazer escolhas corretas; no exemplo, orientando onde cada empreendimento possa se instalar.
Observando dessa forma, privilegiou-se uma postura diferente sobre como regular, dificultando o uso de regras e técnicas de regulação proibitivas, na fórmula tradicional de condicionar o exercício da atividade às bênçãos estatais, sob pena de sanção. Essas restrições é que devem ser subsidiárias (art. 2º), o que não significa que não haja ações, interações ou o emprego de técnicas criativas que não obstaculizem a atividade de antemão. Se houver dúvidas, a aposta foi em eliminar a incerteza ou riscos de sanções ao empreendedor, sem prescindir de fiscalizações, adequações e sanções.
No âmbito regulatório, o art. 4º cria algumas regras gerais, como a vedação para que a ordenação da atividade econômica particular dificulte a inovação, crie barreiras à entrada de competidores, reservas de mercado ou mesmo privilégios a segmentos profissionais. E vêm em boa hora. Basta verificar recentes atos de conselhos profissionais nessa linha, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que é incansável para impedir a criação de novos cursos de direito, para manter privilégios de não prestar contas ao Tribunal de Contas da União (TCU) ou, ainda, para impedir o surgimento de novos serviços, como os cursos de tecnólogo e técnico em serviços jurídicos.
Há também impedimentos a que a regulação crie demanda compulsória por uso de serviços, como os reconhecimentos de firmas por cartórios, assim como impede que se vede a adoção de modelos de negócio e livre formação de sociedades. Tais medidas tendem a oferecer desafios práticos, como para regular atividades exercidas por joint ventures, que não possuem personalidade jurídica. Entretanto, abre-se o espaço à criatividade empresarial para moldar alternativas de tornar produtos e serviços mais atrativos ao cidadão que os consome, o que tende a ser positivo à coletividade.
Aquela que mais chama a atenção é a indicada no inciso VI do art. 4º, que veda a aprovação de medidas que aumentem “os custos de transação sem demonstração de benefícios”. Essa há de ser lida em conjunto o art. 5º, que impõe a obrigatoriedade da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR) antes da edição do ato normativo por toda a administração, a fim de verificar “os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico”.
No Brasil, a AIR não é assunto novo. Há uma orientação do governo federal sobre uma metodologia recomendável e a maioria das agências reguladoras empregam suas próprias AIR. Ainda assim, a MP previu regulamento sobre o método e as particularidades que a AIR há de ter, permitindo o debate e sua renovação periódica, à vista da flexibilidade dos decretos em detrimento da lei.
Daí se reforça a percepção inicial de que a MP proporciona um deslocamento do debate da regulação no Brasil da dicotomia regular ou não regular para como regular. E faz opções, ao indicar que a regulação deva ocorrer a partir de uma lógica mais conectada com a realidade e menos com o nirvana – alinhada às mudanças do Decreto-Lei nº 4.657/1942 a partir da Lei nº 13.655/2018.
Nos Estados Unidos, onde esse debate nasceu, vigora desde 1980 a metodologia da análise de custos e benefícios, segundo a qual medidas podem ser elaboradas apenas se os benefícios excederem seus custos[11], o que traz consigo novos problemas associados a o que quantificar[12], à inviabilidade de quantificar bens imateriais e o que fazer nesses casos. Os desdobramentos mais recentes dessa metodologia são amplamente debatidos em uma perspectiva multidisciplinar, envolvendo inclusive o emprego de técnicas de regulação derivadas da economia comportamental[13].
É impossível prever, agora, qual será o conteúdo dos diversos atos que regulamentarão a MP caso venha a ser aprovada. Entretanto, parece haver poucas dúvidas que se dá um passo adiante para repensar da qualidade da regulação produzida no País, que indiscutivelmente permanecerá existindo e, espera-se, cada vez mais longe do nirvana e mais perto da realidade. Discutir técnicas de regulação efetivas para solucionar nossos desafios práticos nos distancia da anacrônica dicotomia Estado-Mercado, focando nossas energias para superar os desafios do desenvolvimento.
Mas é mais que isso. O debate que a MP proporciona vai além da qualidade da regulação estatal, pois discutir se as pessoas hão de capitanear o processo de desenvolvimento, individual e coletivo, é essencial para refletirmos sobre a responsabilidade por nossos próprios sucessos ou fracassos, frequentemente atribuída exclusivamente a terceiros, em especial ao Estado ou às instituições.
[1] SCHNAIDER, Ben Ross. O Estado Desenvolvimentista no Brasil: Perspectivas Históricas e Comparadas. Textos para Discussão nº 1871. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA: Rio de Janeiro, 2013.
[2]YEUNG, Karen. The Regulatory State. In BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. The Oxford Handbook of Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2010.
[3] Segundo Oliver Williamson, a grande diferença entre a “velha” economia institucional e a “nova” é que essa buscou “incluir conteúdo operacional ao estudo das instituições”. WILLIAMSON, Oliver. Foreword. In BROUSSEAU, Éric; GLACHANT, Jean-Michel. New Institutional Economics: A Guidebook. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. xxiii.
[4] ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James A. Why Nations Fail: The origins of power, prosperity and poverty. New York: Crown Publishers, 2013.
[5] DEMSETZ, Harold. Information and Efficiency: Another Viewpoint. Journal of Law and Economics, v. 12, 1969. p.1 – 12.
[6] FIANI, Ronaldo. Arranjos institucionais e desenvolvimento: o papel da coordenação em estruturas híbridas. Textos para Discussão nº 1815. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA: Rio de Janeiro, 2013.
[7] Mesmo reconhecendo que setores como educação, saúde, cultura, ciência e teconologia e inovação são “livres à iniciativa privada”, que neles atua por direito próprio “sem que para tanto seja necessária a delegação pelo poder público, de forma que não incide, in casu, o art. 175, caput, da Constituição”, o STF reconhece que o interesse público subjacente à atividade justifica um regime regulatório mais incisivo e mais rígido, com maiores restrições à livre iniciativa (STF, ADI nº 1.923/DF, Rel.: Min. Ayres Britto, Rel. p/ acórdão: Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 16.12.2015).
[8] STF, ADI nº4.874/DF, Rel.:Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe 31.1.2019.
[9] ROSE-ACKERMAN, Susan; PALIFKA, Bonnie J. Corruption and Government: Causes, Consequences, and Reform. Cambridge: Cambridge University Press, 2016 [Kindle Edition].
[10] Indicadores internacionais refletem essa realidade, posicionando o Brasil entre os países com menores índices de liberdade econômica, como o Heritage (150 de 180), e entre os que oferecem mais dificuldades para fazer negócios, como o Doing Business, do Banco Mundial (109 de 190). Em tempos de crise econômica e dificuldades orçamentárias para elevar investimentos públicos diretos, repensar essa realidade passa a ser essencial para perseguir o desenvolvimento.
[11]A necessidade de uma AIR já era prevista desde o New Deal, com a adoção da Executive Order nº 12.291/1981 pelo então Presidente Ronald Reagan. O método para a realização dessa análise foi alterado ao longo do tempo e, atualmente, é regido pela Executive Order nº 13.563/2011, alterada pela Executive Order nº 13.610/12.
[12] ADLER, Matthew. Well-Being and Fair Distribution: Beyond Cost-Benefit Analysis. Oxford: Oxford University Press, 2012.
[13] Provavelmente o Autor mais relevante desse tema é Cass Sunstein, de cuja produção merecem referência: Empirically Informed Regulation. University of Chicago Law Review, 2011, Vol.78(4), p.1349-1429. The Limits of Quantification. California Law Review, v. 102, n. 6, p. 1369-1442 (2014). Cost-benefit Analysis and The Knowledge Problem. Regulatory Policy Program Working Paper RPP-2015-03. Cambridge: Mossavar-Rahmani Center for Business and Government, Harvard Kennedy School, Harvard University, 2015. Autonomy by Default. American Journal of Bioethics, Vol. 16, No. 11 (2016).