A Inseminação Artificial Heterológa e os Filhos de Michael Jackson
Ravênia Márcia de Oliveira Leite*
Em razão da morte do mundialmente conhecido cantor Michael Jackson surgem uma série de dúvidas sobre os direitos sucessórios de seus filhos, já que, aparentemente, os dois filhos mais velhos, concebidos durante seu segundo casamento, foram fruto de inseminação heteróloga. O terceiro filho, de mãe desconhecida, e, supostamente sem contato com o astro, não foi fruto de uma relação matrimonial ou de união estável, todavia, aqui trabalhar-se-á com a tese de que tal inseminação também foi heteróloga, todavia ausente o vínculo conjugal ou de conviência.
Importante mencionar que, obviamente, o presente estudo não tem qualquer caráter sensacionalista ou especulativo, tão somente, buscou-se, como caráter de estudo de caso, um tema em voga.
Além disso, no presente estudo de caso, hipoteticamente os fatos teria ocorrido no Brasil, já que, as leis americanas são diversas e, ainda, considerando que o genitor não deixou testamento válido.
Segundo o art. 1.596 do Código Civil Brasileiro “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Continua o art. 1.597 do codex: “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido” (grifei).
Os dispositivos acima cuidam dos filhos nascidos da reprodução medicamente assistida, abordando as técnicas de reprodução medicamente assistida homóloga, heteróloga e dos embriões excedentários. Pode-se dizer que o Código Civil omitiu-se a respeito de diversos outros aspectos civis essenciais à proteção da pessoa humana, logo no seu início.
A inseminação artificial heteróloga (IAD – Inseminação Artificial com Doador) é aquela que recebe a contribuição genética de um doador que não faz parte do casal, ocorre principalmente quando o marido é estéril, ou em decorrência de doenças hereditárias. A esterilidade referida geralmente é definitiva (impotência generandi). A lei legitimou a inseminação artificial heteróloga, desde que haja autorização do marido.
Para Sílvio de Salvo Venosa, “a inseminação heteróloga é aquela cujo sêmen é de outro doador que não o marido. Aplica-se principalmente nos casos de esterilidade do marido, incompatibilidade do fator Rh, moléstias graves transmissíveis pelo marido, etc. Com freqüência, recorre-se aos bancos de esperma, nos quais, em tese, os doadores não são e não devem ser conhecidos.
A doação de material genético com fins de inseminação artificial heteróloga ou outro tipo de reprodução assistida é espontânea, nenhuma lei poderia constranger tal ato, pelo qual um casal fértil auxilia uma casal infértil.
A doação de gametas ou pré-embriões não tem fim comercial ou lucrativo, estando revestida sempre de gratuidade. Nossa Constituição Federal veda todo tipo de comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas no art. 199, § 4o.
Para que haja a inseminação artificial heteróloga, a lei determina que haja prévia autorização do marido, e, se não houver, acarretará conseqüências jurídicas, uma delas é apontada por Maria Helena Diniz nos seguintes termos: “Se a mulher se submeter a uma inseminação artificial heteróloga não consentida, poder-se-á ter uma causa para separação judicial por injúria grave, pois a paternidade forçada atinge a integridade moral e a honra do marido”. Vemos, assim, que, neste tipo de inseminação artificial, o embrião implantado na mulher não é do marido e se este não concordou com o implante ou desconhecia tal fato e vem a conhecer posteriormente, poderá ajuizar a separação judicial do casal.
Todavia, é certo que a manifestação livre e consciente da vontade do marido substitui o critério biológico o qual, de fato, apontaria para outra paternidade se analisado isoladamente. Debatendo este pormenor da prevalência do consentimento sobre o patrimônio genético, o Conselho de Justiça Federal, por iniciativa do Superior Tribunal de Justiça (CJF/STJ), elaborou o Enunciado nº. 104. Senão vejamos:
“Enunciado 104 – art. 1597: no âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) da vontade no curso do casamento.” Forte na clareza da letra do inciso V do artigo 1597 do Código Civil e diante da lição dos doutrinadores congregados pelo Conselho de Justiça Federal, conclui-se que a paternidade deve ser atribuída ao marido anuente de forma “prévia”, ainda que verbalmente, e não ao doador do material genético. Sobre a forma de consentimento do marido, qualificada na lei como prévia somente, ensina o preclaro civilista Paulo Luiz Netto Lobo 1: “Ocorre tal modalidade de inseminação quando é utilizado sêmen de outro homem, normalmente doador anônimo, e não o do marido, para a fecundação do óvulo da mulher. A lei não exige que o marido seja estéril ou, por qualquer razão física ou psíquica, não possa procriar. A única exigência é que tenha o marido previamente autorizado a utilização de sêmen estranho ao seu. A lei não exige que haja autorização escrita, apenas que seja prévia, razão por que pode ser verbal e comprovada em juízo como tal.” Destarte, resta saber, ainda, se é possível ao marido, mesmo depois de ter manifestado sua concordância, o ajuizamento de negatória de paternidade, invocando direito constitucional à ação para desconstituir o vínculo de filiação (CF: art. 5.º XXXV: princípio da inafastabilidade da jurisdição). Essa é uma questão controvertida na doutrina. Tanto assim que o professor Carlos Celso Orcesi da Costa pontua a problemática com maestria: “Esta a fundamental diretriz que deve o Direito adotar diante de tão novo problema jurídico: o prestígio da vontade das partes. Seria razoável supor que, por exemplo, doador e pai biológico, consciente de sua doação impessoal, pudesse reclamar futuramente a paternidade do filho? Eis porque é recomendável que o Direito tome partido, isto é, que fixe claramente sua diretriz positiva”.2 Realmente, como a lei não enfrentou essas indagações levantadas pelo mestre Carlos Celso Orcesi da Costa, coube à doutrina produzir um norte aos intérpretes do Direito, inclusive para auxiliar o Poder Judiciário caso este se depare com caso concreto desta natureza – discutindo a admissibilidade da ação negatória em comento. Na opinião do insigne Mário Aguiar Moura é válida a negatória de paternidade, aventando: “que sempre é possível o uso da ação pelo marido, a despeito de sua prévia concordância”.3 Entretanto, ao contrário disso, as legislações estrangeiras mais modernas, afirma Gláucia Savin: “impedem ao cônjuge que ofereceu seu consentimento à prática de inseminação heteróloga a obtenção de provimento negativo da paternidade”.4 Nesse mesmo diapasão se posiciona a eminente civilista Maria Helena Diniz, para quem: “Se anuiu na inseminação artificial heteróloga, será o pai legal da criança assim concebida, não podendo voltar atrás, salvo se provar que, na verdade, aquele bebê adveio da infidelidade de sua mulher (CC, arts. 1.600 e 1.602).” Do mesmo modo coloca-se o conspícuo professor Zeno Veloso, salientando: “é princípio universalmente seguido o de que o marido que teve conhecimento e consentiu na inseminação artificial com esperma de um terceiro não pode, depois, impugnar a paternidade…Seria antijurídico, injusto, além de imoral e torpe, que o marido pudesse desdizer-se e, por sua vontade, ao seu arbítrio, desfazer um vínculo tão significativo, para o qual aderiu, consciente e voluntariamente.” De fato, em que pesem respeitáveis posições em contrário, não parece razoável permitir o arrependimento jurídico do marido capaz de invalidar vínculo de filiação para o qual consentiu livremente. Ora, uma vez nascida criança – por inseminação artificial heteróloga – a paternidade do marido remonta ao ato preciso da vontade, exarada por meio de assentimento expresso e inequívoco dele nesse sentido. Conseqüentemente, os efeitos de formação do vínculo de filiação – um dos mais importantes efeitos do direito civil, diga-se de passagem – tornam o ato jurídico anterior de consentimento do marido de natureza irrevogável (pelo menos depois do início do procedimento clínico de inseminação artificial heteróloga de sua esposa), pelo que não há de se cogitar na possibilidade da ação negatória de paternidade. Importa aduzir, ainda, que o artigo 20 do Projeto de Lei do Senado n.º 90/1999 (o qual, se aprovado, cuidará da ““Procriação Medicamente Assistida”) confere irrevogabilidade às conseqüências jurídicas do uso da Procriação Mecanicamente Assistida no que tange à filiação, desde o momento em que houver embriões originados in vitro ou quando for constatada a gravidez decorrente de inseminação artificial. Aqui o consentimento dos beneficiários das técnicas de reprodução assistida, qualificado pelo Projeto de “livre e esclarecido”, será suficiente para impor o vínculo de filiação natural a eles, sem possibilidade de esquivas. Note-se: o dispositivo se refere a embriões gerados in vitro, independentemente da fecundação ter sido homóloga ou heteróloga. Ademais, relevante colocar que o Projeto de Lei em testilha excluiu qualquer responsabilidade dos doadores e seus parentes biológicos, quanto à paternidade ou maternidade das crianças nascidas “a partir do emprego de Técnicas de Procriação Mecanicamente Assistida, salvo os impedimentos matrimoniais” (art. 19 do Projeto de Lei do Senado n.º 90/1999). Portanto, interpretando os artigos 19 e 20 do Projeto de Lei nº. 90/1999 chegar-se-á a conclusão de que eventual ação de investigação de paternidade, aforada por pessoa nascida mediante técnica de reprodução assistida, com o escopo de estabelecer vínculo de filiação com o doador, deverá ser rejeitada, in limine, porque o pedido é juridicamente impossível. Ou seja, a petição inicial deste jaez será considerada inepta, a teor do que preleciona o artigo 295, parágrafo único, inciso III, do Código de Processo Civil. Realmente, essa orientação – que por enquanto se trata apenas de tendência legislativa – parece ser a mais acertada, pois trará segurança jurídica a usuários das técnicas de reprodução humana assistida, estimulando sua utilização. Por todo o exposto, verifica-se que o tema da inseminação artificial suscita uma miríade de dúvidas jurídicas, ainda mais diante da ínfima contribuição legislativa sobre o tema. Contudo, é de rigor a definição de uma diretriz segura a ser seguida, dada a importância social da paternidade decorrente de reprodução humana assistida, a qual propicia aos casais com problemas de procriação o milagre de gerar uma vida” (grifei).
A este respeito acrescenta Sílvio de Salvo Venosa: “[…] advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por um estatuto ou microssistema” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, v. 6, p. 256).
Outra conseqüência jurídica decorrente da não-autorização prévia é apontada por José Celso de Camargo Sampaio quando assevera: “Caso o marido não tenha dado autorização para a inseminação artificial, já, então, parece que lhe assistirá o direito de negar a paternidade”.
Além dos requisitos previstos no novo Código Civil para a ocorrência da inseminação artificial heteróloga, a prévia autorização deve ser dada pelo marido, entendemos então que o casal que pratique este tipo de inseminação tenha contraído núpcias ou sejam conviventes em regime de união estável. A esse respeito Sérgio Ferraz faz as seguintes considerações: “É constitucionalmente insustentável, no Brasil, pretender que só o casal casado possa beneficiar-se da inseminação artificial. Qualquer união estável de homem e mulher, convivendo como se casados fossem, legitima o par à pretensão da fecundação artificial”.
Álvaro Villaça Azevedo, através dos seguintes dizeres, comenta o disposto na Resolução nº 1.358 de 1992 editada pelo Conselho Federal de Medicina: “Tais normas violam o direito da personalidade do futuro filho, que não tendo participado dessa relação jurídica, de que resultou seu nascimento, fica inibido de saber sobre sua filiação. É-lhe negado o direito à identidade. (…) O estado de filiação, como direito da personalidade, está vinculado à própria natureza do homem, que, descendendo, ex iure sanguinis, existe, nesse estado, desde sua concepção até sua morte, como um fato natural, independentemente de lei, que há de respeitá-lo, por inserir-se no âmbito do Direito Natural”. Ainda sobre o mesmo assunto, o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente estipula: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”. Este dispositivo goza de amparo na Constituição Federal através do princípio da dignidade da pessoa disposto no art. 1o, III.
Nesse sentido, Christine Boutin apresenta os seguintes argumentos: “a) a satisfação do desejo da criança de esclarecer a identidade de seus genitores ultrapassa o interesse de outras pessoas envolvidas; b) o segredo sobre a sua origem natural exerce, com freqüência, efeitos patológicos sobre a criança; e c) a revogação do anonimato guarda conformidade com a Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989, que dispõe, em seu artigo 7o, que a criança tem o direito de conhecer seus pais e de ser criada por eles.
Assim, em caráter de estudo de caso, como já afirmado em primeiro plano, se Michael Jackson tivesse vivido no Brasil e os filhos tivessem sido concebidos em território nacional, os dois primeiros filhos, já que, concebidos por meio de inseminação artificial heteróloga, terem direito ao direito sucessório.
Todavia, com relação ao terceiro filho, nascido fora de uma relação conjugal ou de união estável, pelas leis brasileiras, não estaria protegido pela legislação pátria, todavia, esposamos a aplicação analógica do dispositivo aplicado àqueles filhos concebidos no âmbito de uma relação considerada familiar, seja o casamento ou a união estável.
Em suma, os três filhos teriam direito sucessório aos bens do genitor, entretanto, face à lacuna existente na legislação pátria, defende se, no presente, a aplicação dos preceitos constitucionais e com base na legislação internacional que a qualquer os filhos de Michael Jackson poderiam a qualquer tempo conhecer sua origem gen.
* Delegada de Polícia Civil em Minas Gerais. Bacharel em Direito e Administração – Universidade Federal de Uberlândia. Pós graduada em Direito Público – Universidade Potiguar. Pós-graduanda em Direito Penal – Universidade Gama Filho