Mariza de Oliveira Pinheiro[1]
Igor Max Pinheiro de Oliveira[2]
“10 lições sobre Maquiavel” (5.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, 127p.) de Vinicius Soares de Campos Barros compõe a coletânea da Coleção 10 lições. O livro tece considerações das ideias principais e desmistifica a visão mal interpretada do historiador florentino, evidenciando-o como defensor das liberdades republicanas. Especialista sobre o pensamento maquiaveliano, Barros é professor de Ciência Política e Filosofia do Direito na Universidade Estadual da Paraíba e no Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Segundo vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos Sociais e Políticos (Cebesp). Mestre em Ciência Política e Doutor em Filosofia, é autor de livros e artigos nas áreas de Ciência Política e Filosofia Política, dentre os quais se destacam: Introdução a Maquiavel – uma teoria do Estado ou uma teoria do poder? da Edicamp; Novo Manual de Ciência Política: autores modernos e contemporâneos (org) da Ed. Malheiro; Preparando a República: Maquiavel e a Ditadura de Transição, em fase final de elaboração.
Em as 10 Lições sobre Maquiavel, Barros tem como referência o republicanismo moderno, enfocando os aspectos: metodológico e as estratégias políticas de sucesso na Itália na época da Renascença. A estrutura do livro divide-se em: Sob a luz da Renascença, a verdade efetiva, o pessimismo antropológico, a concepção histórica de Maquiavel, a íntima relação entre fortuna e virtú, a autonomia da política, a religião como instrumento do Estado, Maquiavel e a arte da guerra, a teoria maquiaveliana das formas de governo, e, por último, o amor à pátria, a opção republicana e a ditadura transitória.
Na introdução, o autor justifica a influência histórica e as consequências negativas que causou o livro de Maurice Joly, intitulado Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, de 1864. Joly apropriou-se do realismo maquiaveliano e teceu uma crítica engenhosa em relação às artimanhas políticas de Napoleão III. O livro chegou à França através de contrabandistas, mas foi confiscado e impedido de circular. Contudo, um exemplar caiu nas mãos de Ochrana[3] que, plagiando-o, confeccionou um dos documentos falsos mais famoso de todos os tempos: os Protocolos dos Sábios de Sion[4].
A autoria foi concebida aos dirigentes da Aliança Israelita Internacional que urdiam estratégias para dominar o mundo. Mesmo sendo atestada a falsidade em 1921, o livro antissemita foi traduzido para várias línguas. Deste modo, o episódio disseminou a ideia de opressão e de dominação como originária de Maquiavel. Esse pensamento ainda permanece entre os leigos que desconhecem a verdade dos fatos e a essência dos valores na defesa da liberdade republicana.
Na Primeira Lição, o autor aborda o pensador perscrutado e inserido na sociedade florentina do século XIV e XVI, assentado em bases humanistas e antropocêntricas em um dos períodos mais notáveis da história mundial: a Renascença[5]. O movimento renascentista engloba pensadores e artistas com visões discordantes sobre o conhecimento humano em diversas áreas. Uma realidade antagônica àquilo que se convencionou chamar de Idade das Trevas (isto é, Idade Média). O caráter multifário apontou, conforme teses sobre o assunto, o realismo e o individualismo como específicos da época. Iniciado na Itália, especialmente em Florença, pensadores e artistas assemelharam-se no gosto pela Antiguidade Clássica que inspirou a literatura, a filosofia e as artes. No aspecto econômico, emerge o capitalismo, as descobertas científicas e o desenvolvimento das ciências indutivas e experimentais.
Para o autor, Maquiavel foi o intérprete político dessa época ao revelar, em suas obras, o conflituoso cenário político da Itália, e descrevendo o panorama de lutas entre os Estados e o forte controle da Igreja. Maquiavel classifica cinco polos de poder articulados com outras potências, que almejavam estabelecer o domínio político na região, sendo divididos entre: ao Sul, o reino de Nápoles, no centro o papado, os Anjou e, em 1492, os aragoneses; a República de Florença, na Toscana, com a família dos Médici; o ducado de Milão, na Lombardia, com os Visconti e depois pelos Sforza; e, no Vêneto, Veneza, a República com estrutura constitucional estável.
Neste contexto conturbado, de golpes e contragolpes, de instabilidade e crise de legitimidade nasce Maquiavel em, 1469 de família bem sucedida na cidade de Val Di Pesa, os Machiavelli Villani. Obteve boa educação, sendo versado em retórica. O poeta preferido foi Virgilio, tendo travado diálogos com os historiadores clássicos, Tucídides, Tácito e Tito Lívio. Dedicava-se à leitura de Dante, Petrarca e Boccacio. Em, 1498, Maquiavel é nomeado secretário da Segunda Chancelaria, que, posteriormente, fundiu-se com a Comissão dos Dez, encarregada dos assuntos ligados à guerra, passando a dedicar-se intensamente aos temas políticos. Com a invasão do rei da França, Francisco I, em 1527, e a instauração de uma nova República, e a expulsão dos Medici, o florentino é considerado um traidor, ocasionando seu afastamento do poder, o que pô-lo-á no ostracismo. Doente e na pobreza, falece no mesmo ano. No entanto, consagra-se um escritor imortal e fundador do pensamento político moderno na posteridade.
As bases do mundo prático e os alicerces de uma nova ciência política, além da discussão da metodologia adotada por Maquiavel, são temáticas que constam na Segunda Lição, a verdade efetiva. Em sua vasta experiência na Segunda Chancelaria, utilizando o método dedutivo e a contínua leitura dos historiadores greco-romanos, o secretário florentino instaura uma nova perspectiva para as abordagens do fenômeno político. Inverte o paradigma antes priorizado pelo dever ser político acima dos desígnios reais com interesse de manter o poder e realça a necessidade política como sendo, o que realmente sustenta os Estados, ou seja, diz ele: “os fenômenos políticos obedecem as suas próprias leis”. (BARROS, 2013, p. 39)
O pessimismo antropológico de Maquiavel acerca da natureza humana é delineado na Terceira Lição. De acordo com Barros, a análise feita por Maquiavel não é sob o viés metafísico, mas, sim, através de constatações empíricas. Neste sentido, para o pensador, o homem possui a natureza humana profundamente agressiva e egoísta, e busca a todo custo satisfazer suas próprias ambições, principalmente, o estadista para obter e manter-se no poder. De acordo com o autor, O Príncipe contém alto teor realista e segue uma linha diferente dos pensadores idealistas. Portanto, para o secretário florentino, o Estado e o poder fundam-se na essência perversa do homem. De modo paradoxal, Maquiavel ostenta uma profunda crença na edificação de uma sociedade virtuosa. Para ele, apesar do toda ambição, os homens são capazes de construir boas instituições. (BARROS, 2013, p. 43)
Na tessitura da Quarta Lição, o autor trata da concepção de história de Maquiavel. Em que ele traz à tona uma nova interpretação sobre a concepção cíclica, em que a política não se consubstancia como algo estático, sendo os governos dos Estados suscetíveis a constantes mudanças que o levam da ordem à corrupção de forma repetitiva. Para ele, a ambição desmedida do homem é a causa da variação das formas de governo e do caráter circular da História. Desviando-se da influência medieval, ressalta a importância da ação humana na edificação e destinos das cidades.
A íntima relação entre fortuna e virtú, em torno dos quais giram o sucesso e o insucesso das ações humanas são o eixo principal do pensamento maquiaveliano, exposto na Quinta Lição. Os dois conceitos, segundo Barros (2013) representam a luta inesgotável entre o homem de ação e os acontecimentos improváveis da política no tempo histórico. Segundo Maquiavel a fortuna irá favorecer somente os bravos. A virtú é uma necessidade política. Para este pensador, o interesse da pátria deve sobressair sobre todos os outros, “a ação do governante, que se adequa à necessidade do momento, visa ao fim maior de assegurar as liberdades do momento e a independência do Estado.” (BARROS, 2013, p. 58)
A autonomia da política do Estado com as interfases do fenômeno do poder são analisados na Sexta Lição. Maquiavel constrói suas ponderações alicerçando-se na realidade dos fatos políticos de forma empírica e objetiva. Confere ao universo político uma esfera de atuação sujeita à sua própria lógica e às suas próprias leis, compreendendo dois caminhos: o do bem, optando por uma existência tranquila e distante da vida pública, e o da manutenção do poder, em que o agente, precisa sufocar suas convicções morais para assegurar a estabilidade política e a integridade do Estado. Portanto, o governante não está sujeito a nenhuma normatividade ética, jurídica ou religiosa, guiando-se apenas pela necessidade política. Sendo, a Razão do Estado a primeira essência do maquiavelismo.
Segundo Barros (2013, p. 65-66), a concepção de indivíduo maquiavélico que age em seu próprio nome, usando de astúcia e de má-fé com o intuito de realizar seus objetivos, não condiz com a doutrina maquiavelista. Esse entendimento é consequência da vulgarização de seu pensamento distorcido pelos moralistas. Na realidade, o conceito científico de Maquiavel é congruente com a noção de Razão de Estado, ou seja, sem ter relação com o caráter. O fato é que o conceito está associado às práticas dos governantes envolvidos por um sistema ético diferente do que rege nossa vida privada, e que “empregará todas as estratégias necessárias à salvação pública”. Na atualidade, com os direitos fundamentais dos cidadãos, o governante não tem a mesma liberdade que os príncipes italianos da época.
A religião como instrumento do Estado e a visão anticlerical do pensador florentino são asseverados na Sétima Lição. Segundo o autor, a religiosidade era propulsora do sentimento popular de obediência, e a corrupção do clero cristã a principal causa da decadência italiana. A religião, para Maquiavel, não deve se contrapor ao Estado corrompendo-o, mas deve mantê-lo fiel ao interesse público. Para implantar a República era necessário a unificação da Itália sob o governo de um príncipe que, para obter êxito, deverá ser capaz de usar todas as armas possíveis, inclusive a religiosa, e, assim, conduzir os italianos à liberdade e à unidade.
Na Oitava Lição o autor situa a concepção de Maquiavel e a arte da guerra. O florentino inspira-se nos romanos e seus modos militares, sendo a guerra a chama que mantém a luta pela liberdade para futuras gerações, “a guerra é o meio político extremo utilizado, em determinadas situações, para fazer o inimigo retroceder em relação a seus objetivos políticos iniciais”. (BARROS, 2013, p. 79). Neste sentido, conforme o secretário florentino é dever dos governantes italianos adotar exércitos próprios, compostos por cidadãos, e não por tropas de mercenários, no sentido de que o cidadão mais virtuoso é também o melhor guerreiro. Já o mercenário não é confiável, pois se guia por interesse próprio. Para o bom êxito do poder, a prática militar deve ser monopolizada pelo Estado.
A teoria maquiaveliana das formas de governo é o estudo da Nona Lição. Maquiavel apropria-se da proposta teórica aristotélica com formato descritivo e realista e forte conotação normativa e prescritiva. Substitui a tripartição (monarquia, aristocracia e democracia) por modelo dicotômico em que se opõem monarquia e a república. Utiliza do conceito de Estado com sentido de comunidade política soberana, e “República” deixa de significar a ordem estatal, enquadrando-se em forma de governo, que ele divide em repúblicas e principados. Segundo Barros, essa concepção inova o pensamento político. Pela primeira vez, utiliza-se a palavra “Estado” em seu sentido moderno de comunidade política soberana. Antes de Maquiavel o termo usado era o vocábulo “república”. A partir dele, “república” passa a ser forma de governo.
E, finalmente, na Décima Lição, intitulada o amor à pátria, a opção republicana e a ditadura transitória, considerada, pelo autor, a mais importante por nos oferecer um arremate interpretativo, situando-o ideologicamente como um fervoroso patriota e exaltador do republicanismo. Barros justifica as estratégias maquiavelianas como mensagens para o governante com a difícil missão de unificar a Itália. Para o autor, o realismo político de Maquiavel está em consonância com o seu amor à pátria. O pensador que pugna pelo ideal republicano, inspirado na Roma antiga com um governo com respeito às leis do povo. Portanto, um humanista com grandes ideais republicanos, um crítico das repúblicas aristocráticas e que expressa uma clara opção popular, “seria ele um cultor do governo da lei, não de um governo da lei de modelo aristocrático, como em Florença ou, na já citada Veneza, mas de uma forma quase que revolucionária, de um modelo democrático, o que fica patente em sua teoria do conflito de classes”. (BARROS, 2013, p. 103).
Concluindo de forma romanceada, e relacionando com o movimento romântico na música da época, o autor termina enaltecendo o sonho de Maquiavel: ver a península unificada sob a égide de um governo republicano e a sua crença inabalável no povo que outrora havia dominado o mundo. De forma apaixonante, Barros nos traz um olhar mais cuidadoso sobre a contribuição de Maquiavel para Política. Remete-nos à metodologia elisiana[6] quando destaca a importância de entender o sujeito histórico atrelado à sua época e, sobretudo, compreendendo como ele está de forma interdependente atrelado nele. De linguagem agradável e acessível, desmascara os mitos e preconceitos que pairam sobre esse pensador que, através de seu legado, impulsionou o surgimento da Ciência Política. Indicamos como importante livro de introdução ao pensamento maquiaveliano.
REFERÊNCIAS
BARROS, Vinicius Soares de Campos. 10 Lições sobre Maquiavel. 5 ed.- Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2003.
[1] Professora e coordenadora do curso de graduação em Artes Visuais, do Centro de Comunicação, Turismo e Artes da UFPB. Mestre em Educação (UFRN). Graduada em Comunicação Social- Jornalismo (UFPB). Graduanda do Curso de Direito (UNIPÊ). E-mail: mariza_pinheirop@gmail.com.
[2] Graduando do Curso de Direito (UNIPÊ). Monitor e Palestrante da disciplina de Português Jurídico. E-mail: igor.work@live.com
[3] Polícia secreta Russa.
[4] Publicação antissemita contendo mentiras sobre os povos semitas com o intuito de incitar o ódio contra os judeus e o estado de Israel.
[5] Ou Renascimento ou Renascentismo, termo usado para designar o período entre os séculos XIV e fins do XVI na Europa. Sem o consenso sobre a cronologia é basicamente marcado entre o final da Idade Média e inicio da Moderna. Tendo como berço a região italiana da Toscana (Florença e Siena). É norteado por um ideal humanista e naturalista de concepções do: Neoplatonismo, Antropocentrismo, Racionalismo, Otimismo e Individualismo.
[6] Norbert Elias – Sociólogo e filósofo Alemão. Desenvolveu abordagem, sociologia figuracional que examina as figurações sociais como consequência inesperadas da interação social. Autor de: O processo civilizador; sociedade dos indivíduos; sociedade da corte, entre outros.