Novo CPC

Comentários ao Novo CPC – Art. 10º

“Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício”.

 

No atual CPC, o art. 128 dispõe que o juiz deve decidir a ação “nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a l ei exige a iniciativa das partes”.

 

Diante da restrição do atual art. 128, que se refere apenas às questões, a doutrina clássica invoca aqui o adágio iura novit curia, segundo o qual o juiz seria livre na escolha e na aplicação dos fundamentos jurídicos.

 

 

Nesse sentido, José Rogério Cruz e Tucci entende que não existe impedimento para que o juiz requalifique juridicamente a demanda, enquadrando-a em outros dispositivos legais. Assim, ao juiz seria concedida plena liberdade para aplicar o direito da maneira que entender pertinente, desde que respeitados os limites fáticos aportados no processo (A causa petendi no processo civil, 2. ed.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, pp. 160/161).

 

Fazendo uma excelente resenha dos autores que tratam do tema, Mario Gelli, em sua dissertação de Mestrado na UERJ, defendida em 2009, sob a orientação do Prof. Leonardo Greco, intitulada “A vinculação do juiz à causa de pedir no processo justo: limites de aplicação do iura novit curia no processo civil” colaciona diversos autores que tratam do tema.

 

Nesse contexto, Barbosa Moreira sustenta que a causa de pedir não é integrada pela norma jurídica aplicável à espécie, tampouco pela qualificação jurídica dada pelo autor da demanda ao conjunto de fatos em que apóia sua pretensão (O novo processo civil brasileiro, 25. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 17).

 

Ainda no mesmo sentido, José Roberto dos Santos Bedaque, sustenta que a alteração da fundamentação jurídica pelo juiz não implica em modificação da causa de pedir (“Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório”, in José Rogério Cruz e Tucci e José Roberto dos Santos Bedaque (coord.), Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 32).

 

Ocorre que, com o passar do tempo, parte da doutrina evoluiu para o entendimento de que tal discricionariedade ampla do juiz poderia, em alguma medida, gerar prejuízo para uma das partes.

 

Passou-se, então, a trabalhar com a idéia de que o princípio do contraditório deveria ser utilizado para limitar esta liberdade do juiz.

 

Nas palavras de Mario Gelli, na dissertação acima referida:

 

“afastando-se nesse tocante da doutrina que prevalece no Brasil, LEONARDO GRECO propõe u

ma orientação mais restritiva para a aplicação do iura novit curia, a qual nesta dissertação se considera ser a mais acertada. Preocupando-se com a liberdade das partes do processo e também com o princípio da demanda, que atribui ao autor o poder de fixar seus limites objetivos e subjetivos, adverte o citado doutrinador que a vontade do autor é fator essencial na definição dos limites objeto litigioso, devendo ser respeitada (Leonardo Greco, A teoria da ação no processo civil. São Paulo: Dialética, 2003, p. 59). GRECO faz uma ponderação fundamental ao correto entendimento da ação como demanda e das questões a ela atinentes, afirmando que o litígio levado a juízo não é o litígio real, in natura, estando limitado pelos elementos fáticos e jurídicos propostos pelo autor. Afinal, o objeto da jurisdição civil é o pedido, não os fatos. Acrescenta ainda que as disposições dos artigos 264 e 282, inciso III, do Código de Processo Civil brasileiro parecem ser suficientes para se exigir que a demanda se estabilize considerando-se os fundamentos de fato e os fundamentos jurídicos alegados pelo autor.”

 

Bem a propósito lembrar, como faz o autor, que esta idéia acabou corporificada na obra de Augusto Jardim, na qual sustenta o autor que, em verdade, o iura novit curia, permite que o magistrado altere a norma aplicável ao caso, mas isso não significa dizer que o juiz pode alterar, também, o fundamento jurídico que integra a causa de pedir próxima

 

(Augusto Tanger Jardim, A causa de pedir no direito processual civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 121).

 

Diante desses conceitos, podemos observar que o texto do novo CPC busca uma espécie de consenso.

 

Em minha visão, entre duas possíveis soluções extremadas, ou seja, (1) manter o sistema atual segundo o qual o juiz pode alterar a seu bel prazer os fundamentos jurídicos, ainda que o faça sob o disfarce de modificar a norma aplicável; ou (2) exigir que o juiz invoque apenas os fundamentos invocados pela parte, ainda que ele vislumbre um outro, mais adequado, andou muito bem a Comissão ao buscar uma solução intermediária, salomônica.

 

Pela leitura que faço do dispositivo, embora estejamos ainda em fase embrionária, o que significa que me reservo ao direito de mudar de opinião após um tempo maior de reflexão, me parece que o juiz pode invocar fundamento não alegado pelas partes, mas deve propiciar a manifestação destas antes de decidir.

 

Nessa hipótese, ou seja, quando o juiz traz para os autos um fundamento que não havia sido alegado, não está muito claro ainda quando, até que momento, e de que forma fará ele essa inserção.

 

 

Imagino que seja por simples despacho, do tipo “manifestem-se as partes sobre a possibilidade de utilização do fundamento X”, ou “manifestem-se as partes sobre a incidência do instituto Y”.

 

Por outro lado, é preciso se atentar para a enorme mudança que será ocasionada pela parte final do novel dispositivo, quando fica absolutamente claro que tal providência deverá ser tomada pelo juiz ainda que a matéria possa ser examinada de ofício por ele. Doutrina e jurisprudência vem caminhando no sentido de que tais matérias, hoje, a partir da interpretação do atual art. 267, § 3º do CPC seriam: condições para o regular exercício do direito de ação, pressupostos processuais e as hipóteses de nulidade absoluta. São, em verdade, os mesmos casos que autorizam a utilização da objeção de pré-executividade, na visão da orientação prevalecente no STJ (Entre tantos, pode ser referido o REsp 419.376-MS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 16/5/2002).

 

Me parece que esta redação prevista no art. 10 do PLS 166/10 está de acordo com os postulados de um processo justo, ou seja, fundado em garantias estruturais e individuais. Numa eventual colisão entre os princípios do livre convencimento do juiz e do contraditório, a solução preconizada exsurge como promissora ferramenta capaz de preservar a efetividade do processo, sem, contudo, lhe retirar o caráter democrático.

* Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Promotor de Justiça no RJ. Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ e na UNESA. Acesse: http://humbertodalla.blogspot.com/

 

 

Como citar e referenciar este artigo:
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Comentários ao Novo CPC – Art. 10º. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/novo-cpc/comentarios-ao-novo-cpc-art-10o/ Acesso em: 22 nov. 2024
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