Neste 29º comentário, vamos analisar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto nos artigos 77 a 79 do NCPC.
A matéria agora prevista no NCPC já está positivada há algum tempo em nosso ordenamento jurídico. Com efeito, o art. 50 do Código Civil assim dispõe:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a
requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações
sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Esta redação é melhor do que o texto que consta no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, pois exige este a configuração de ilícito ou culpa para
que se aplique o instituto, como se pode ver a seguir:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de
poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver
falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provados por má administração.
§ 5o – Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores.
Para Rubens Requião, em clássico texto sobre a matéria, (Rubens Requião, “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, naRevista dos Tribunais, n. 410, p. 12, 1969) a desconsideração não representa “ a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito concreto”.
Nesse sentido, Fábio Konder Comparato lembra que na desconsideração o princípio da autonomia da pessoa jurídica é mantido como regra, sendo afastado,
excepcional e fundamentadamente, no caso concreto, em caráter provisório (Fabio Konder Comparato, O poder de controle na sociedade anônima, 3ª
ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1983, p. 283).
A redação utilizada nos dispositivos do NCPC é a seguinte:
CAPÍTULO II
DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Art. 77. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a
requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam
estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens de empresa do mesmo grupo econômico.
Parágrafo único. O incidente da desconsideração da personalidade jurídica:
I – pode ser suscitado nos casos de abuso de direito por parte do sócio;
II – é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada em título executivo
extrajudicial.
Art. 78. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão citados para, no prazo comum de
quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.
Art. 79. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento
Neste comentário não vamos abordar as questões de natureza civil ligadas ao instituto. Vamos nos ater ao procedimento e as questões que daí podem
surgir.
Nesse passo, chama a atenção o fato da Comissão ter enfatizado a necessidade do requerimento da parte ou do MP. É um dos raros casos em que não se
permitiu ao magistrado agir de ofício.
Com efeito, parece ser acertada esta opção, na medida em que há diversas questões de natureza patrimonial e financeira que precisam ser bem analisadas
antes de uma decisão como esta e nem todas são levadas ao conhecimento do magistrado.
Por outro lado, permanece o uso do conceito jurídico indeterminado – abuso da personalidade jurídica. Infelizmente, a Comissão, a meu ver, não tinha
outra alternativa já que a matéria tem raízes no direito civil e comercial e nesses ramos deve ser definida e dimensionada.
Não seria adequado que o direito processual alterasse os contornos de instituto que não tem sua gênese na relação processual. Temos diversos exemplos
de intromissões indevidas do legislador civil em normas de processo e muitas delas provocaram efeitos colaterais indesejados.
Elogiável, ainda, a opção pela natureza de incidente, o que torna a matéria compatível com as linhas mestras do Projeto e representa o pensamento atual
da jurisprudência do STJ, que vem admitindo a medida, por exemplo, incidentalmente na execução, independentemente do uso de ação própria (Resp
920.602/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27.05.2008, DJ 23.06.2008 p. 1).
Finalmente, uma palavra sobre a desconsideração inversa, ou seja, a possibilidade do ato judicial atingir o patrimônio da própria pessoa jurídica para,
assim, poder alcançar a pessoa física autora do ato abusivo. Desconsidera-se a personalidade para o alcance de bens da própria sociedade, pelos atos
praticados pelos sócios enquanto pessoas físicas.
Veja-se, a esse respeito, o
REsp 948.117-MS , Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/6/2010 (Informativo STJ nº 440):
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. Discute-se, no REsp, se a regra contida no art. 50 do CC/2002 autoriza a chamada
desconsideração da personalidade jurídica inversa. Destacou a Min. Relatora, em princípio, que, a par de divergências doutrinárias, este Superior
Tribunal sedimentou o entendimento de ser possível a desconstituição da personalidade jurídica dentro do processo de execução ou falimentar,
independentemente de ação própria. Por outro lado, expõe que, da análise do art. 50 do CC/2002, depreende-se que o ordenamento jurídico pátrio
adotou a chamada teoria maior da desconsideração, segundo a qual se exige, além da prova de insolvência, a demonstração ou de desvio de finalidade
(teoria subjetiva da desconsideração) ou de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). Também explica que a interpretação literal
do referido artigo, de que esse preceito de lei somente serviria para atingir bens dos sócios em razão de dívidas da sociedade e não o inverso, não
deve prevalecer. Anota, após essas considerações, que a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da
autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir, então, o
ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações de seus sócios ou administradores. Assim, observa
que o citado dispositivo, sob a ótica de uma interpretação teleológica, legitima a inferência de ser possível a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica em sua modalidade inversa, que encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos à própria disregard doctrine , que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores. Dessa forma, a finalidade maior da disregard doctrine contida no preceito legal em comento é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Ressalta que, diante da desconsideração
da personalidade jurídica inversa, com os efeitos sobre o patrimônio do ente societário, os sócios ou administradores possuem legitimidade para
defesa de seus direitos mediante a interposição dos recursos tidos por cabíveis, sem ofensa ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo
legal. No entanto, a Min. Relatora assinala que o juiz só poderá decidir por essa medida excepcional quando forem atendidos todos os pressupostos
relacionados à fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/2002. No caso dos autos, tanto o juiz como o tribunal a quo entenderam haver confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente. Nesse contexto, a Turma negou provimento ao recurso. Precedentes
citados: REsp 279.273-SP, DJ 29/3/2004; REsp 970.635-SP, DJe 1°/12/2009, e REsp 693.235-MT, DJe 30/11/2009.
* Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Promotor de Justiça no RJ. Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ e na UNESA. Acesse:
http://humbertodalla.blogspot.com