Na sociedade brasileira, a mulher ainda é discriminada e oprimida. Se há discriminações e opressões atingindo o negro, o migrante, o trabalhador modesto, o pobre, essas discriminações avultam quando estão encarnadas na pessoa de uma mulher – a negra, a mulher migrante, a trabalhadora modesta, a mulher pobre.
Na minha vida de juiz creio ter tido um olhar de ternura para com as mulheres que, oprimidas, tiveram de sentar-se no banco dos réus.
Vou começar pelo caso da empregada doméstica que estava presa sob a acusação de que cometera crime de furto na casa onde trabalhava. Tinha tirado de uma caixa onde havia mais dinheiro apenas o valor de uma passagem de trem para regressar à casa da mãe em Governador Valadares. Agiu assim depois que os patrões se recusaram a lhe pagar pelo menos os dias trabalhados alegando que ela só teria direito de receber salário depois que completasse um mês de casa.
No dia desse julgamento, a sala de audiências estava cheia. Alguém tomou a iniciativa e recolheu a quantia suficiente para comprar a passagem de que a moça precisava.
Terminei minha decisão com estas palavras:
“Lamento que a Justiça não esteja equipada para que o caso fosse entregue a uma assistente social que acompanhasse esta moça e a ajudasse a retomar o curso de sua jovem vida. Se assistente social não tenho, tenho o verbo e acredito no poder do verbo porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Invoco o poder deste verbo, dirijo a Deus este verbo e peço ao Cristo, que está presente nesta sala, por Neuza. Que sua lágrima, derramada nesta audiência, como a lágrima de Madalena, seja recolhida pelo Nazareno.”
Numa outra decisão, mandei libertar Marislei e Telma, que foram presas como vadias, num dia de sábado. Lembrei Vinícius de Moraes que consagrou o sábado como dia de ócio. Nessa mesma decisão observei que, curiosamente, nenhum rico preguiçoso é processado por vadiagem.
Numa terceira decisão, libertei Maria Lúcia, meretriz, acusada de suposta tentativa de homicídio contra um “cliente” que quis dela abusar, desrespeitando sua dignidade de pessoa humana.
Numa quarta decisão absolvi uma jovem acusada da prática do crime de aborto. Segundo as testemunhas, toda noite embalava um berço vazio, como se nele houvesse uma criança. Percebi que não era suficiente eximi-la do processo penal mas libertá-la também do sentimento de culpa que a atormentava. Disse-lhe então: “Você é muito jovem, sua vida não acabou. Esta criança, que ia nascer, não existe mais. Você poderá ter outras crianças que alegrem sua vida. Eu a absolvo mas você vai prometer não mais embalar um berço vazio.”
Numa quinta decisão, absolvi mãe adotiva que registrou filho alheio como próprio, ferindo artigo expresso do Código Penal. Ponderei, na sentença, que o ato da acusada não ferira direito de terceiros. Ela apenas pretendeu fazer uma “adoção” por caminhos transversos.
* João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha e escritor. E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.jbherkenhoff.com.br