Processo Penal

Debate sobre a prisão em Segunda Instância

O acirrado debate que se prolonga por quase trinta anos se encerrou em outubro de 2019, provendo o julgamento de ações que contestam a prisão após condenação em Segunda Instância, o que aliás propiciou a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Num ambiente de embate entre os ministros, tendo inclusive o atual presidente do STF, Dias Toffoli pedindo respeito ao Ministro Luís Roberto Barroso.

Aproximadamente 4,8 mil presos podem ser beneficiados com essa mudança jurisprudencial do STF sobre o tema.

O julgamento tem motivação pois desde 2016 para o presente momento, o mesmo STF entendeu em quatro ocasiões diferentes, que é possível a prisão após a condenação em Segunda Instância e, a derradeira destas, foi na análise de um Habeas Corpus do ex-presidente Lula, que acabou sendo negado por um placar apertado de 6 a 5.

Porém, faltavam o julgamento das ações ADC[1]s de 43,44 e 54 do Partido Nacional Ecológico (PEN), do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil e do PC do B, respectivamente.

Todo debate orbita em torno da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal brasileiro que in litteris estabelece:

     “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito, ou, por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência da sentença condenatória transitada em julgado, ou no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”

Em verdade, a OAB e dois partidos políticos requereram que o STF condicione o início do cumprimento da pena ao esgotamento de todas as possibilidades de recursos criminal, ou seja, de trânsito em julgado.

A decisão do STF afeta apenas aos casos em que fora determinado o início da execução provisória da pena, após a condenação de Segunda Instância. Portanto, essa virada histórica da jurisprudência da Suprema Corte não alcança os presos preventivamente conforme prevê os termos do artigo 312 do CPP.

No fundo, a ordem do busilis não é recente, pois a discussão sobre o artigo 5º da Constituição Federal brasileira de 1988, porém, começou em 1991, pois na época, a Suprema Corte entendera que o princípio da presunção de inocência não impedia a execução antecipada da pena, antes do trânsito em julgado.

Isso mudou em 2009, quando STF passou então a permitir a prisão apenas (grifo nosso) depois do esgotamento de todos os recursos. Em 2016, a mesma Corte Suprema voltou a admitir a medida, considerada como sendo fundamental por Procuradores e magistrados na punição de criminosos do “colarinho branco”.

O debate envolve a matéria constitucional que versa sobre qual seria o momento de privação da liberdade de quem está em julgamento no sistema judiciário. O debate envolve diretamente sobre os Direitos Humanos do acusado.

Registre-se desde o advento da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal já mudou por duas vezes o seu posicionamento.

Em 2009, determinou que o réu só poderia ser preso após o trânsito em julgado, ou seja, após de recurso à todas as instâncias. Já em fevereiro de 2016, o STF decidiu que um réu condenado em Segunda Instância já pode começar a cumprir a sua pena.

Já no corrente ano, voltou à baila o debate sobre a constitucionalidade da prisão em Segunda Instância Apesar de que o tema representa um dos pilares da Operação Lava Jato que totaliza cerca de cem condenados em Segunda Instância, mas o presidente do STF, Dias Toffoli afirmou que o “julgamento não se refere a nenhuma situação particular.”

Num certo período, mais precisamente compreendido de outubro a novembro do corrente ano, veio o STF analisar as três ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), que colocaram a prova a própria lei principalmente em razão do alcance da presunção de inocência. Lembrando-se que a presunção de inocência[2] é considerada cláusula pétrea.

Analisaremos os argumentos dois juristas que são contrários a prisão de Segunda instância. O principal argumento é que viola o princípio da presunção de Inocência do réu.

Conforme a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, in litteris:

   “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma Norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade conforme o escalão do princípio atingido, porque representa a insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e correção de sua estrutura mestra. Isso porque com ofendê-lo abatem-se as vigas que a sustém e alui-se toda a estrutura nelas esforçada”. (In: De Mello, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 12° edição. Malheiros 2000, p 748).

Considerando-se ainda que não vige hierarquia entre as diversas normas constitucionais e, que o sistema jurídico representa um todo harmônico, o conflito entre aquelas é apenas aparente.

O principal argumento dos cinco ministros contrários à prisão em Segunda Instância foi que a Constituição de 1988 relaciona a presunção de inocência ao trânsito em julgado.

Conclui-se, portanto, que o processo judicial e, particularmente, o criminal deveria se esgotar antes da prisão do réu; nesse sentido, segundo alguns doutrinadores, esse é um direito constitucional que estaria sendo desrespeitado pelo novo entendimento do STF.

O segundo argumento aponta para a relativização dos direitos fundamentais que se ocorrente no processo penal irá também permitir a relativização de outros direitos fundamentais, o que afeta a situação carcerária nacional[3] cuja exposição majoritária é de negros e pobres. E, são esses que em grande medida possuem seus direitos violados a partir da decisão do STF.

De acordo com dados oficiais, trazidos pelo ministro Ricardo Lewandowski, um preço dos pedidos de habeas corpus de condenados em Segunda instância que chegam ao STJ tem suas penas revistas dá o volume revelaria a importância dos recursos aos tribunais superiores, que corrigem penas injustas.

Ademais, ao inobservar o princípio da presunção de inocência viola seu princípio do devido processo legal.

Conforme bem leciona Guilherme de Souza Nucci, in litteris:

“As pessoas nascem inocentes, sendo este o seu estado natural razão pela qual para quebrar tal regra, torna-se indispensável ao Estado-acusação, evidenciar, com provas suficientes, do Estado-juiz a culpa do réu. (In: Nucci, G.D.S. Princípios do Processo Penal. (In: Manual de Processo Penal e Execução penal.12ª ed. Rio de Janeiro: forense,2015, capítulo IV, p.33)”.

O devido processo legal abarca uma série de normas ou garantias constitucionais tais como a ampla defesa, contraditório, publicidade, juiz natural, celeridade processual, dignidade humana, integridade física, liberdade, entre outros.

O STF garantiu em 06.02. 2009 ao condenado o direito de recorrer em liberdade através do HC 84078 para permitir ao mar Coelho Vitor condenado pelo TJMG da Comarca de Passos a pena de sete anos e seis meses de reclusão em regime inicialmente fechado que recorra dessa condenação aos tribunais superiores, em liberdade. Ele foi julgado por tentativa de homicídio duplamente qualificado (art. 121, parágrafos 2º, inciso IV e Artigo 14 inciso II do Código Penal)

O referido processo provocou prolongados debates tendo de um lado, além de Eros Grau, os ministros Celso de Mello, Cézar Peluso, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio que votaram pela concessão do HC.

Foram vencidos os seguintes ministros Menezes de Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Joaquim Barbosa e Elle Grace que o negaram.

Análise do voto do Ministro Marco Aurélio

O Ministro frisou da necessidade de o STF pronunciar-se a respeito da constitucionalidade da Norma contida no artigo 283 CPP. Destacou ainda que a decisão proferida no habeas corpus não possui efeito vinculante, nem firma regra geral quanto ao tema, mas vem repercutindo no sistema judicial brasileiro.

Quanto ao mérito do artigo 283 CPP revela o alcance do princípio constitucional da não culpabilidade.

A plausibilidade da tese positivada pelo mesmo dispositivo legal quando apreciou o habeas corpus 84078, relator o Ministro Eros Grau, acórdão publicado no Diário da Justiça de 26.02.2010.

A liberdade de atuação do legislador, deve ocorrer dentro dos parâmetros esculpidos pela Lei Maior, a ensejar a referência do Poder Judiciário. O ministro asseverou a presunção de constitucionalidade reforçada de normas tutelares da liberdade.

É inviável o cumprimento antecipado da pena, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, consubstancia prisão não prevista na legislação pátria.

Além do que a antecipação de cumprimento de pena constitui agravamento da condição das unidades carcerárias. Não é proclamada compatibilidade do artigo 283 do CPP com a Constituição Federal vigente.

Aduziu ainda aqui, em situações de prisão provisória hão de ser adotadas as medidas alternativas à custódia, até que suplantado o atual estado dos estabelecimentos prisionais brasileiros.

Anotou que o eventual reconhecimento de inconstitucionalidade do preceito não pode retroagir, sob pena de desrespeito ao princípio da irretroatividade da norma penal mais severa, vide o artigo 5°, inciso XL da Constituição Federal de 1988.

O Senado brasileiro aponta a constitucionalidade do dispositivo legal. Argumentou o ministro vedar a Constituição à execução de pena anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Salientou ainda que o princípio da não culpabilidade também está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e no Pacto de São José da Costa Rica.

Trata-se de questão que extrapola o âmbito penal, aludindo ao decidido pelo STF no Recurso Extraordinário nº 482006, relator o Ministro Lewandowski, acórdão publicado no Diário da Justiça de 14.12.2007.

A garantia do artigo 5º, LVII da CF/1988 não viabiliza, nem mesmo por intermediação legislativa, uma associação inflexível entre execução antecipada da pena e prisão arbitrária. Fosse assim, o conceito de crime inafiançável[4] não faria sentido.

Afinal deve-se conferir a interpretação hipergarantista à presunção de inocência equivale a embotar os direitos fundamentais de vítimas e o valor do sistema de justiça para a coesão social.

A custódia provisória concebe-se cautelarmente, associada ao flagrante, a temporária ou à preventiva, e não a título de sanção antecipada.

Autores:

Gisele Leite

Arthur Riboo da Costa



[1] Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional 3/1993 com a alteração da redação do artigo 102, inciso I, alínea a e acréscimo do segundo ao referido artigo, bem como o quarto parágrafo no artigo 103, todos dispositivos da vigente Constituição Federal brasileira, tendo sua disciplina processual regulamentada pela Lei 9.868/1999. Visa através desta ação, declarar a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Em outras palavras, a Ação Direta de Constitucionalidade é meio processual de garantia da constitucionalidade da lei ou ato normativo federal, consubstanciada no controle jurisdicional concentrado, por via de ação direta. Foi instituída pela Emenda Constitucional nº 03/93 à Constituição Federal de 1988, com sede na competência originária da Corte Constitucional. O pedido só é procedente se demonstrada objetivamente a existência de controvérsia judicial em torno da constitucionalidade da norma. É necessário, ainda, que o autor refute as razões alinhavadas como fundamento à tese da inconstitucionalidade e pleiteie a declaração de sua constitucionalidade.

[2] A presunção de inocência é reconhecida também como princípio do estado de inocência ou da não culpabilidade, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de direito, constituindo-se em relevante garantia constitucional, de cunho humanitário na proteção do indivíduo em face do poder punitivo e repressivo do Estado, além, naturalmente de ser um dos corolários do devido processo legal. No Brasil, em termos jurisprudenciais recentes, o Supremo Tribunal Federal (STF), retomando entendimento que vigorou até o ano de 2009, passou a entender, a partir do Habeas Corpus n. 126.292, julgado em 2016, que a presunção de inocência, embora exerça destacado papel garantista na tutela da liberdade, não é dotada de caráter absoluto e sobrelevado grau de abstração capaz de anular a incidência dos demais princípios constitucionais e convencionais no processo penal.

[3] Por meio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), o CNJ desenvolve ações relacionadas ao sistema carcerário, execução penal e medidas socioeducativas. Em parceria com o Ministério da Justiça, o CNJ trabalha para consolidar uma política para o Sistema Nacional de Penas e Medidas Alternativas, principalmente com ações relacionadas ao desencarceramento. As superlotações, os envolvimentos de presos em organizações criminosas e a falha de pessoal, são os principais problemas enfrentados pelas penitenciárias brasileiras. Outro fator que estamos acostumados a ver nos noticiários é a questão das rebeliões em presídios, sempre com resultados lastimáveis de sentenciados que são mortos por outros condenados, funcionários e familiares de detentos transformados em reféns, resgates e fugas audaciosas e espetaculares realizadas por criminosos, e por fim, a incapacidade das autoridades em face de organizações de criminosos, cada vez mais presente nos Estados brasileiros.

[4] No Brasil, a constituição federal, em seu artigo 5º, nos incisos XLII a XLIV, considera cinco tipos de crimes como tal: racismo (inciso XLII); prática de tortura (inciso XLIII);tráfico de entorpecentes e drogas afins (inciso XLIII);crimes hediondos (inciso XLIII); terrorismo (inciso XLIII); ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o estado democrático (inciso XLIV).

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele; COSTA, Arthur Riboo da. Debate sobre a prisão em Segunda Instância. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/debate-sobre-a-prisao-em-segunda-instancia/ Acesso em: 26 dez. 2024
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