“Para comprender lo que somos y cómo actuamos, debemos comprender el cerebro y su funcionamiento”. P. Churchland
A organização social tem que ver com a forma com que o direito é capaz de controlar a conduta humana e regular as relações interpessoais que são geradas e estabelecidas em seu interior. Mas também tem que ver logicamente com um tipo de neurobiologia interpessoal[1] respeito aos cérebros dos homens que as constituem. Esse panorama social complexo, tão variado como diferente, é reflexo dos distintos, indeterminados e imprevisíveis que podem chegar a ser os cérebros das pessoas e do modo como está conectado com o mundo exterior e com as mentes de outros indivíduos ( isto é, com a interação entre cérebros humanos, de como o cérebro dirige o comportamento social e, por sua vez, de como nosso mundo social influi em nosso cérebro e em nossa biologia).
Nossas sociedades atuais, e inclusive as primitivas, estão constituídas por pessoas cujos cérebros e seu funcionamento corre um arco tão amplo e variado que alcança desde aquilo que entendemos por “normal” – sem saber propriamente o que isto significa – até todo um espectro de “defeitos” – desde os mais sutis e dissimulados até os mais grosseiros e aparentes[2].
Esta circunstância, somada aos avanços procedentes das investigações neurocientíficas, tem empurrado, cada vez com mais intensidade, a buscar redefinir o que devemos entender por natureza humana baseando-se, já agora, não tanto na conduta e na psicologia senão sobre parâmetros medíveis e objetivos do funcionamento do cérebro. E à medida que isso se vá alcançando, possivelmente com a disponibilidade de novas tecnologias de registro e imagem cerebral, como vamos operar juridicamente diante de todo esse amálgama de seres humanos que violam e desumanizam o humano? Que circuitos de nosso cérebro elaboram as condutas anti-sociais? E como estas podem ser modificadas ou controladas uma vez conhecidos quais são ditos circuitos? Há correlatos neuronais “responsáveis” tanto pela normalidade como pelos defeitos que emergem dos vínculos sociais relacionais (e das relações jurídicas) que o ser humano estabelece ao longo de sua existência? Com que sentido e como o cérebro dirige o comportamento moral e social e, a sua vez, como o mundo social influi em nosso cérebro e em nossa biologia? Nova medicina, nova política, nova jurisprudência, nova sociedade ou novo direito? Vejamos por parte.
O direito é um artefato cultural relacional, dinâmico e histórico, tendo um caráter essencialmente instrumental e pragmático. Está composto tanto pelas normas que o expressam como por sua interpretação e aplicação contextualizadas no seio de uma prática jurídica, humana, moral, política e social mais ampla da que toma seu sentido. Destina-se (pelo menos em teoria) à consecução da justiça mediante as diversas formas por meio das quais se articulam as formas de vínculos sociais relacionais arraigados na complexa estrutura da mente humana e irredutíveis entre si, articulação esta que tem por finalidade a solução de determinados problemas práticos relativos à conduta em interferência subjetiva dos indivíduos, isto é, às relações jurídicas (Kaufmann, 1999; Atienza, 2003; Atahualpa Fernandez, 2009).
Da mesma forma que até hoje se tem servido de múltiplas disciplinas científicas para alcançar esse objetivo, agora começa a fazê-lo com a neurociência. Neurociência e direito constituem, sem dúvida, um tema novo. Um tema com implicações sociais, ontológicas e metodológicas de uma dimensão não comparável com nenhum outro, pois se refere especificamente à relação entre os mecanismos que geram a conduta humana, o cérebro, e as consequências, em sociedade, dessa conduta.
E ainda quando a neurociência e o direito parecem ter distintos objetivos e interesses, no sentido de que a primeira busca entender a conduta humana (pensamento, emoção, etc.) e o segundo julgá-la (intencionalidade, culpabilidade, responsabilidade, etc.), resulta evidente que ambas as disciplinas também podem ajudar-se mutuamente. Apesar de que entender e julgar são atividades diferentes, os esforços por entender o comportamento humano, suas causas, motivações, limites e fatores condicionantes, podem ser de grande apoio, não somente nos juízos sobre culpabilidade ou inocência[3], senão também no próprio processo de realização prático-concreta (interpretação, justificação e aplicação) do direito (Atahualpa e Marly Fernandez, 2008).
Estes são tempos emocionantes porque os mistérios do cérebro começam a ser entendido. Para as ciências sociais, que criam modelos de comportamento humano, os resultados das investigações neurocientíficas têm um valor de enorme potencial teórico, metodológico e prático. Para os estudiosos do direito que tratam de encontrar uma forma de interpretar e aplicar a lei para maximizar os efeitos benéficos e/ou úteis do direito, a evolução da neurociência parece trazer consigo a promessa de resultados igualmente importantes.
Dito de outro modo, as ciências da conduta, em seu aspecto amplo, estão impactando de tal maneira nosso entendimento acerca da natureza humana que já parece urgente a necessidade de incorporar esses novos conhecimentos às disciplinas cujo correto desempenho requer uma adequada compreensão dos determinantes e condicionantes, inatos e adquiridos, do comportamento (humano). Por exemplo, já parece possível admitir que a neurociência pode vir a contribuir decididamente à tarefa de encontrar respostas mais certeiras sobre o problema do livre-arbítrio e da responsabilidade pessoal e, com isso, aproximar-se com mais justiça aos juízos acerca dos castigos, tratamentos e/ou a própria liberdade dos indivíduos suspeitos ou culpados da prática de um delito.
Neste particular, Morse (2004) é categórico ao afirmar que a neurociência pode vir a participar nas concepções mais básicas do direito, apresentando, entre outros,o seguinte argumento:“Que é a responsabilidade? A responsabilidade é o que lhe atribui uma pessoa a outra acerca de uma ação realizada. E quando digo ação o que quero dizer aqui é dar-lhes três critérios para apreciar a responsabilidade no Direito. Primeira, basicamente deve haver uma ação. Segundo deve haver um estado mental culpável que acompanhe a ação. E terceiro o culpável deve ser um agente moral responsável, sendo o critério básico para este último que o indivíduo tenha a capacidade para raciocinar e atuar livremente. Sem dúvida que a neurociência pode ajudar e muito acerca de estabelecer estes parâmetros no ser humano desde a perspectiva de nossos conhecimentos sobre como funciona o cérebro humano”[4].
Agora: Pode a neurociência, ademais do já assinalado, ajudar na predição de um perigo ou risco potencial, o qual, entre outras coisas, pode significar declarar inocente a um indivíduo que intentou matar, mas que pode vir a cometer novos crimes no futuro? Pode a neurociência ajudar ao direito a entender estas “dificuldades” que muitas pessoas têm de controlar-se a si mesmas? Poderiam os scanners do cérebro, que medem determinadas características pessoais que se correlacionam, ainda que seja muito debilmente, com certa propensão à violência, influir na forma em como um jurado sentencia a um criminoso convicto? Se um cérebro estudado por técnicas de neuroimagem se considera anormal e isto se associa a uma personalidade violenta, poderá esta anormalidade ser considerada uma base adequada sobre a qual se possa estabelecer uma detenção preventiva com vistas a preservar e proteger o interesse público ou social?
Embora a maioria dos neurobiólogos esteja de acordo com que estas são perguntas (interessantes e intrigantes) com que os juristas deverão enfrentar-se em um futuro não tão distante, a verdade é que a evidência neurocientífica atual está ainda muito longe de alcançar esses objetivos, entre outras coisas porque a violência pode ser muitas vezes e, salvo casos de claras lesões cerebrais ou psicopatia, uma combinação de “normalidade” (ou “anormalidade”) e circunstâncias do meio ambiente e social. Mas a realidade é que a neurociência está entrando rapidamente nos sistemas legais do mundo ocidental. E o resultado dessa interferência é que, ao menos desde uma perspectiva teórica, o trabalho dos neurocientistas está sendo cada vez mais valorado, discutido e aplicado em vários contextos jurídicos (Garland e Glimcher, 2006).
Por exemplo, em 2004, o jornal de Munich Süddeutsche Zeitung convidou ao fórum “Meio Ambiente-Ciência”, entre outros, ao neurocientífico Gerhard Roth, ao professor de direito penal da Universidade Goethe de Frankfurt, Klaus Lüderssen, ao historiador Johannes Fried e ao filósofo Wilhelm Vossenkuhl. Nesta discussão, Roth manteve que dois fundamentos essenciais do conceito de liberdade já haviam sido rebatidos. O primeiro é a crença de que “eu sou o que atua”; o segundo, a sensação subjetiva da possibilidade de eleição: “eu poderia haver atuado de outra maneira se houvesse querido”. O “eu” não se encontrou em nenhum lugar no cérebro, mas sim os mecanismos inconscientes que determinam os supostos atos de vontade livre.
O filósofo Vossenkuhl, apesar de não haver discutido os resultados experimentais procedentes da neurociência, assinalou, contudo, que os mesmos são limitados porque investigam ações mínimas, mas não decisões complexas. Por sua parte, Lüderssen ponderou que os resultados da investigação cerebral eram dramáticos, já que não somente o direito penal se fundamenta na culpabilidade do sujeito e, portanto, em sua capacidade e responsabilidade na tomada de decisões, senão que o próprio ordenamento jurídico como um todo se veria igualmente afetado. Lüderssen comparou este câmbio, que deve ser seriamente considerado pelo sistema jurídico, com a revolução copernicana, e confessou não saber quando deveriam modificar-se os códigos penais, uma vez que ainda nos falta muito por investigar a respeito.
Em resumo, se não existe liberdade, se a liberdade é uma ilusão, não se concebe a culpabilidade nem a imputabilidade, de maneira que não se devem castigar aqueles membros da sociedade que transgridem as leis que nós mesmos criamos para permitir uma convivência pacífica. E embora pareça razoável supor que nenhum novo conhecimento poderá modificar esse fato (pois cairiam os pilares de nossa civilização: a responsabilidade, a culpabilidade, a imputabilidade, o pecado…), seguramente alterará a imagem que temos do mundo e de nós mesmos, depois de rebaixar uma vez mais o orgulho humano que nos fez (e ainda nos faz) confiar e “ter fé” em tantas falsidades a respeito da condição humana. Voltaremos a este tema mais adiante.
Não obstante, conquanto as novas tecnologias que estão aportando as ciências do cérebro ainda não sirvam para exculpar a ninguém em juízo, já estão, contudo, ajudando a distinguir claramente os danos sutis do cérebro ocorridos durante o nascimento ou durante o desenvolvimento por traumatismo ou por drogas e com isso ajudando, na mesma medida, a encontrar a causa de suas condutas. O que também já está fazendo a neurociência é ajudar a detectar aspectos funcionais do cérebro antes impossíveis de detectar, que bem podem ser a “causa” de certas condutas anti-sociais (Kiehl et. al., 2004; Rorie e Newsome, 2005; Gazzaniga, 2005…).
Apesar disso, parece certo que em determinados momentos os conhecimentos que aporta a neurociência não se podem colocar sobre a mesa de uma forma contundente e com eles influir nas decisões judiciais; mas sim é certo que podem proporcionar valiosa informação a ser devidamente considerada no ato de julgar e decidir. A consideração e a adequada avaliação desses dados científicos bem podem levar os tribunais a alcançar uma conclusão mais próxima da justiça concreta, como, por exemplo, de que os adolescentes funcionam de modo essencialmente diferente aos adultos e que isto se deve a seus cérebros. Em qualquer caso, tudo indica que estamos adentrando em uma senda que está nos conduzindo, mais rápido do que o imaginado, a uma reviravolta do direito, com câmbios profundos em sua estrutura e no processo de realização prático-concreta das normas jurídicas. Afinal, conhecer os estados mentais de indivíduos suspeitosos de haver praticado uma atividade criminosa seria de grande valor em um juízo penal, nomeadamente no que se refere à aplicação de castigos mais objetivos, seguros e justos com relação aos que violam as normas estabelecidas pela sociedade.
Também teria um inestimável valor para as atuais teorias da interpretação e argumentação jurídica saber onde termina a cognição e começa a emoção no processo de realização do direito levado a cabo pelos juízes. Com efeito, existe uma demanda cada vez mais imperiosa por parte dos sistemas de justiça e operadores do direito no sentido de encontrar métodos capazes de aportar um modelo de argumentação jurídica o suficientemente adequado para limitar (racional e objetivamente) a atividade interpretativa, sem dissimular, ignorar ou jugular a iniludível subjetividade que a caracteriza.
De fato, a atenção que hoje se está prestando à personalidade individual do juiz é consequência necessária do abandono do dogma da sujeição mecânica do julgador à lei e da aceitação da presença de interferências na relação entre um (o juiz) e outra (a norma). Na pessoa do juiz concorrem informações procedentes do caso concreto e das normas, princípios e valores, mas também de determinados impulsos internos (seu modo de pensar, suas crenças, seus prejuízos e seus [curto-] circuitos neuronais cognitivos e afetivos com todas as limitações que isto implica), que são os que, como qualquer ser humano, cabalmente integram sua personalidade e se prestam naturalmente a cínicas manipulações. Em outras palavras, a função do juiz vai perdendo abstração e automatismo em benefício da singularidade (cerebral) e humanidade. Quem decide não é uma máquina senão um homem e, ademais, um homem singular distinto dos demais humanos.
É que não basta com estabelecer estas afirmações, que qualquer profissional com experiência percebe de imediato. O que sucedeu como novo nas últimas décadas foi o intentar estudar cientificamente este fenômeno, situando-o na arquitetura cerebral humana (nas atividades que transcorrem no cérebro de uma pessoa quando esta está interpretando e formulando juízos de valor) e objetivando-o o máximo possível com os seguintes propósitos: a) para estabelecer uma metodologia o mais amigável para com as limitações próprias da capacidade cognitiva do sujeito-intérprete; b) para analisar as causas reais de cada decisão; e c) para limitar e predizer o conteúdo e as consequências das decisões futuras.
E precisamente neste particular, a neurociência, ainda quando vá unida a um programa reducionista (Churchland, 2006), pode efetuar contribuições ricas e esclarecedoras à compreensão das emoções, de sua intencionalidade e intensidade, e do papel que efetivamente desempenham na ativa e comprometida tarefa interpretativa levada a cabo nos processos de tomada de decisão jurídica; quer dizer, podemos tentar ser terrivelmente objetivos, mas o que não podemos é olvidar de algo muito importante acerca do que é ser um ser humano. Como seres humanos, todos sabemos que se sente de certo modo e desde dentro. E o juiz, como qualquer primata ou besta biológica de nossa espécie, tem sensações, pensamentos e sentimentos privados e por vezes inefáveis que têm lugar de algum modo em seu cérebro.
O fato é que à medida que avançam as técnicas neurocientíficas somos capazes de obter melhores resultados mediante imagem cerebral, com o que se há incrementado o número de correlatos neuronais conhecidos de uma grande quantidade de traços e estados psicológicos. Ademais, a crescente demanda de informação acerca de medidas “científicas” da personalidade, atitudes e disposições de conduta em nossa sociedade, de técnicas capazes de assegurar a veracidade das declarações, a objetividade na interpretação/aplicação das normas jurídicas e de conhecimento a respeito de determinados comportamentos de alguns indivíduos, uma demanda com finalidades diversas, garante que o número e o interesse por estes estudos e medidas não deixará de incrementar-se. Também o fará o rol de suas possíveis aplicações.
Mas, se como vimos, o direito pode usar determinados avanços neurocientíficos, assimilando suas conclusões ou admitindo algumas técnicas como meio de prova, pode a neurociência exercer alguma influência perdurável no direito ou no sistema judicial?
Suponha – seguindo o raciocínio de Gazzaniga (2005) – que um determinado indivíduo forme parte de um tribunal do júri em um caso de assassinato. Como membro do jurado este hipotético indivíduo sabe, ou deve saber, certas coisas sobre a estrutura e o funcionamento do sistema judicial. Pois bem, quando ocupa um lugar no tribunal do júri, este indivíduo sabe também que terá que dirimir o caso junto com alguns companheiros, que provavelmente não estarão informados acerca dos últimos descobrimentos científicos sobre o cérebro, a mente e a conduta humana. Sabe que a maior parte dos jurados não está ali voluntariamente e que não aceitam escusas, dados exculpatórios para o acusado. Os membros do jurado são pessoas práticas e pouco transigentes.
De uma maneira geral, tal parece ser o perfil do sistema do tribunal do júri: nada fora do comum, somente alguns indivíduos que intentam compreender um acontecimento terrível. A maioria dos membros provavelmente nunca ouviu falar da palavra neurociência e certamente nunca parou para refletir sobre o conceito de livre-arbítrio. Estão ali para averiguar se o acusado cometeu o crime e, se decidem que é culpado, seguramente o castigarão com dureza. Raras vezes se exige ao jurado que contemple a possibilidade de exculpar ao acusado por motivos de saúde mental, e quando ouvem esse argumento da defesa, não costumam aceitá-lo.
Frente a este telão de fundo que é o sistema judicial, aparece um novo problema em forma de perene questão: nossa espécie possui “livre-arbítrio”? O acusado cometeu aquele crime horrível livremente e por eleição, ou foi algo inevitável a causa da natureza de seu cérebro e suas experiências passadas? Como sucede em muitos âmbitos donde o pensamento científico moderno contrasta com as realidades cotidianas, os membros do tribunal do júri não costumam levantar, propor ou colocar esta questão em discussão. Ainda assim, não parece irrazoável sustentar que até os jurados mais estritos acabarão cedendo, porque algum dia este assunto acabará por dominar todo o sistema judicial.
Já se estão explorando, como vimos antes, os mecanismos cerebrais que nos ajudam a entender a função dos genes na configuração do cérebro, os correlatos neuronais responsáveis por nossos juízos morais e ético-jurídicos, o papel dos sistemas neuronais na percepção do entorno e a relevância da experiência como princípio de orientação nas ações futuras. Agora sabemos que os câmbios do cérebro são necessários e suficientes para induzir câmbios na mente – nos últimos anos surgiu um ramo da neurociência, chamada neurociência cognitiva, que estuda precisamente os mecanismos desta relação. (Gazzaniga, 2005).
Ademais, ante as novas perspectivas que se abre com a neurociência do século XXI, muita gente começou a preocupar-se pelas velhas questões do livre-arbítrio e a responsabilidade pessoal. A lógica é a seguinte: o cérebro determina a mente e é uma entidade física, sujeita a todas as regras do mundo físico. O mundo físico está determinado, de modo que o cérebro também o está. Se o cérebro está determinado, e é o órgão necessário e suficiente para desenvolver a mente, se nos colocam as seguintes questões: estão determinados também os pensamentos que surgem da mente? O livre-arbítrio que acreditamos ter é somente uma ilusão? E, se é uma ilusão, devemos revisar os conceitos relativos à responsabilidade pessoal nas ações?
Estes dilemas tem sido objeto de estudo e reflexão por parte dos filósofos durante décadas. Mas com o surgimento dos sistemas de imagem cerebral, os neurocientistas começaram a explorar estas questões e, cada vez de modo mais urgente, o mundo jurídico começa a exigir respostas[5]. Há indícios, por exemplo, de que alguns cérebros são mais agressivos que outros. Tanto por desequilíbrios neuroquímicos como por lesões, a função cerebral pode ver-se distorcida, o qual explica certas condutas violentas ou criminosas.
A neurociência nos diz também que, no momento em que o indivíduo experimenta algo conscientemente, o cérebro já fez seu trabalho. Quando somos conscientes de que tomamos uma decisão, o cérebro já induziu esse processo. Tudo isso levanta a questão de se as ações escapam a nosso controle. Uma coisa é preocupar-se pelos atenuantes da responsabilidade a causa de uma demência senil ou enfermidade cerebral, e algo muito distinto é que a conduta de toda pessoa normal esteja também determinada. Devemos, então, abandonar o conceito de responsabilidade pessoal?[6] Não cremos. Considero que devemos distinguir entre cérebro, mente e personalidade: as pessoas são livres e, portanto, responsáveis de suas ações; os cérebros não são responsáveis.
E aqui é preciso aclarar um ponto importante. As explicações evolutivas e neurocientíficas sobre o comportamento humano seguem tendo uma compreensão equivocada e desvirtuada. Muitos críticos contemporâneos parecem pensar que as explicações evolutivas e neurocientíficas são explicações expressadas em termos de determinação genética do comportamento. Desafortunadamente, aqueles que apóiam este ponto de vista, sem dar-se conta, confundem dois tipos muito distintos das explicações que por vezes dão os biólogos. Estes últimos costumam marcar uma clara distinção entre as questões relativas à função ( por que sucede algo, o propósito ao que serve na vida do indivíduo), ao mecanismo ( que maquinária corporal, incluídos os sistemas motivacionais, produzem o efeito), à ontogenia ( como se produz o efeito durante o processo de desenvolvimento) e à história ( quando se dá o efeito na história evolutiva da espécie). Estas questões (agora conhecidas como “os quatro interrogantes de Timbergen”, chamadas assim pelo etólogo e prêmio Nobel Niko Timbergen) são bastantes independentes umas das outras. Confundi-las conduz a equívocos que podem levar a conclusões gravemente enganosas. (Dunbar, 2004).
E a confusão mais comum (da qual temos que servir-nos aqui) é a que se produz entre a função e a ontogenia, quer dizer, entre o objetivo que tem que alcançar o animal ( na análise biológica, este objetivo é sempre a saúde genética, a contribuição genética que deixará às gerações futuras) e a razão pela qual pode comportar-se como o faz ( o qual é resultado da combinação da herança genética, os efeitos meio ambientais e o aprendizado da experiência, incluindo, no caso dos humanos, a transmissão cultural). A diferença crucial se encontra entre o desenvolvimento das causas de comportamento e suas consequências evolutivas.
Que o objetivo do comportamento seja maximizar o estado de saúde genética não quer dizer que as origens desse comportamento ( em termos de seu desenvolvimento no indivíduo ) sejam genéticas. A capacidade de poder tomar a decisão de comportar-se de uma determinada maneira pode ser genética , mas isso não significa que a decisão de atuar de certo modo esteja em si mesmo determinada geneticamente. É a capacidade (enquanto a todas as intenções e os objetivos, o cérebro) a que permite que o organismo avalie os custos e os benefícios de comportamentos alternativos e a que faz possível a eleição sobre uma decisão livre depois de sopesar as opções – quer dizer, uma vez que constantemente tomamos decisões, fazer eleições é algo que deve estar no núcleo de qualquer definição de livre-arbítrio.
O essencial é entender o fato de que o comportamento esteja determinado completamente pelos genes pode estar bem para uma ameba, mas não funciona assim para um organismo muito mais complicado e complexo: como a estratégia ótima dependerá do equilíbrio de custos e benefícios criados pelas circunstâncias concretas, os resultados sempre serão contingentes. Nunca há uma maneira absolutamente “correta” e “determinada” de comportar-se, senão meras eleições entre alternativas que serão mais ou menos proveitosas (se as avaliamos em função da liberdade de eleição e de suas consequências – nomeadamente no que se refere à saúde genética) para um indivíduo particular em umas circunstâncias particulares[7].
A neurociência nos aportará novos modos de entender a conduta, mas em última instância devemos compreender que, ainda que a causa de um ato (criminoso ou de outra ordem) seja explicável em termos de funções cerebrais, isto não significa que a pessoa que leva a cabo a ação não seja responsável pelo mesmo. A partir dos conhecimentos atuais da neurociência e os princípios em que se baseiam os conceitos legais e os postulados da ciência jurídica, acredito – seguindo ainda a Gazzaniga (2005) – no seguinte axioma: os cérebros são mecanismos automáticos, regulados, determinados, enquanto que os indivíduos são agentes com responsabilidade pessoal por seus atos, livres para tomar suas próprias decisões – isto é, com a faculdade de criar e recriar os seus mundos, embora sob determinadas circunstâncias e condições que não são de sua escolha .
À diferença das células que nos compõem, os seres humanos não estão situados em trajetórias balísticas; somos mísseis dirigíveis, capazes de alterar o curso em qualquer ponto de nossa trajetória, abandonando objetivos, cambiando lealdades, formando facções, conspirando, admirando (e, por vezes, invejando) e assim sucessivamente. Para nós, sempre é tempo de eleição e decisão; e devido a que vivemos em um mundo de vínculos relacionais e representações culturais, estamos constantemente enfrentados com oportunidades sociais e dilemas, mas nunca com uma solução sacada de antemão (Dennett, 1995).
Não há dúvida de que certo determinismo parece ameaçar assim as intuições de livre-arbítrio e responsabilidade. A neurociência, iluminando o conteúdo do que anteriormente se teve por uma “caixa negra”, converte ao cérebro em “algo” cada vez mais transparente e em que confluem desde os genes até nossas circunstâncias particulares e as influências recebidas pela experiência. No entanto – e nunca é demais insistir neste ponto-, a neurociência jamais encontrará o correlato cerebral da responsabilidade, porque é algo que atribuímos aos humanos – às pessoas -, não aos cérebros. Os psiquiatras e neurocientistas podem descrever um determinado estado mental ou cerebral, mas não podem dizer-nos (sem arbitrariedade) em que momento se deve exonerar a alguém de uma responsabilidade porque não tem controle suficiente de seus atos.
Ao igual que o tráfego é o que ocorre quando interatuam os carros fisicamente determinados, a responsabilidade é o que ocorre quando interagem as pessoas. A questão da responsabilidade pessoal é uma decisão social e/ou um conceito público. Existe dentro de um grupo, não no contexto de um indivíduo. Se só houvesse uma única pessoa na Terra, não seria pertinente e sequer teria qualquer sentido o conceito de responsabilidade pessoal. A responsabilidade é um conceito que cada um se forma em torno às ações próprias e alheias. Os cérebros estão determinados; a gente (mais que um ser humano) se rege por um sistema de regras quando (con-) vive com outras pessoas, e dessa interação surge o conceito de liberdade de ação.
Em termos neurocientíficos, ninguém é mais ou menos responsável que outra pessoa de determinadas ações. Formamos parte de um sistema determinista que algum dia lograremos compreender plenamente em teoria. Mas a idéia da responsabilidade, constructo social que existe nas regras de uma sociedade, não existe nas estruturas neuronais do cérebro[8] (Gazzaniga, 2005).
Daí que, para a solução desse complicado problema, o melhor caminho parece ser o de entender que a noção de liberdade anda junto com a noção de responsabilidade, o que, desde logo, nos impede de erigir uma ou outra em absoluto. É como em um processo, onde a questão principal está em compreender como esses dois pontos de vista podem funcionar juntos. E é precisamente isso, parece-me, que a idéia de liberdade desnaturada e relativa (uma liberdade não subtraída ao espaço e ao tempo, a nossa história e a nossa natureza, como pretendia Kant, mas inscrita e oriunda deles, embora com uma margem – relativa – de jogo, de indeterminação, de iniciativa, possível) permite perceber. Essa idéia permite compreender que somos responsáveis por nossos atos (já que os escolhemos), mas não em absoluto (já que não temos a escolha de nós mesmos, isto é, não elegemos as consequências dos azares biológicos, da “loteria cortical” ou sócioeconômicos de que somos “vítimas”).
Nesse particular sentido, quem diz liberdade relativa diz responsabilidade relativa: que é por sermos todos relativamente culpados e relativamente inocentes que temos, todos, direito a um tratamento digno e que a sociedade tem o direito de castigar e a um sistema de justiça, sempre no contexto de instituições legítimas e justas. Ou, para dizer de outro modo: porque cada um é responsável por seus atos, mas inocente de si, que a justiça ( que tem por objeto a garantia e a realização da liberdade , da igualdade, do controle e paz social ) não exclui a dignidade ( que tem por fundamento e objeto todo e qualquer ser humano).
Como recorda H. Frankfurt (2004), porque não nos criamos completamente a nós mesmos, tem que haver algo em nós do qual não somos causa. Mas o problema central com respeito ao nosso interesse pela liberdade e nossas decisões não é se os acontecimentos em nossa vida volitiva estão determinados causalmente por condições externas ou internas a nós. O que realmente conta, no concernente à liberdade e decisão, não é a independência causal. É a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios.
Por outro lado, nosso cérebro deve, em seu constante fluir funcional, alocar e associar em contexto interno uma miríade de fatores externos em miríades de operações entre redes funcionais diversas e, a partir daí, convertê-los em fatores significativos para a constituição de atos. E esses processos de compaginação mundo-cérebro funcional se encontram tanto no fundamento do juízo (do tipo que seja) como no caminho ao comportamento que carregue consigo um juízo. A relação entre contexto e ato pode servir-nos para rastrear certos fatores que determinam a culpabilidade ou a responsabilidade que, por sua vez, fica em mãos da decisão jurídica (legal ou judicial) julgá-la ou aplicá-la. Afinal, sempre somos responsáveis moralmente de nossos atos.
Isto não significa, evidentemente, que sempre sejamos culpáveis, senão simplesmente que nosso cérebro está interatuando com o mundo. No entanto, a responsabilidade pessoal útil na constituição de um veredicto de culpabilidade não parece ser este tipo de responsabilidade descrito neurologicamente por Greene e Cohen (2004), senão que parece ser uma “responsabilidade moral” ancorada a um paradigma de análise muito mais pragmático e social. Constituem dois domínios explicativos, onde a idéia de agente moral autônomo é um constructo indispensável para o raciocínio jurídico e moral: permite-nos distinguir os atos voluntários dos involuntários, as consequências buscadas das não buscadas, e os atos praticados por indivíduos adultos racionais dos atos levados a cabo por menores, animais e pessoas manifestamente alienadas. E nada disso requer estritamente uma concepção abstrata de pessoa humana como alternativa a uma explicação causal em termos biológicos ou neuronais.
Em síntese: é inegável o potencial deste tipo de conhecimentos, sobretudo no que se refere à tarefa de realização do direito, ao livre-arbítrio, ao problema da responsabilidade pessoal… Em sede de interpretação e aplicação das leis, por exemplo, na medida em que o conhecimento da relação cérebro/moral, razão/emoção, inato/adquirido, avança, será possível o desenvolvimento de modelos metodológicos que permitam promover, através das aproximações neurocognitivas, discursos jurídicos mais ajustados ao bem estar individual e coletivo, à margem das antigas certezas equivocadas.
Somos objetos físicos (corpo e cérebro) dos quais as mentes emergem; e, de algum modo, de nossas mentes se formam as sociedades e as culturas. Para entender-nos completamente, temos que estudar e compreender todos esses três níveis: físico, psicológico e sociocultural. Há muito tempo existe uma divisão do trabalho acadêmico: os biólogos e neurocientistas estudam o cérebro como um objeto físico; os psicólogos estudam a mente; os sociólogos, filósofos, antropólogos e juristas estudam as normas de conduta e os movimentos construídos socialmente dentro dos quais as mentes se desenvolvem e funcionam. Mas a divisão de trabalho só é (e será realmente) produtiva quando as tarefas se tornem coerentes; quando todas as linhas do trabalho acabem se combinando para criar alguma coisa maior do que a soma de suas partes.
Durante quase todo o século XX isso não aconteceu – um campo ignorava os outros e se concentrava em suas próprias questões. No entanto, hoje em dia, afortunadamente, o trabalho interdisciplinar está florescendo e se espalhando. As ciências começam a estar associadas, o que gera a coerência em vários níveis cruzados. Como mágica, começam a surgir novas grandes idéias, particularmente no que diz respeito ao surgimento de uma nova visão das disciplinas humanísticas clássicas. E se a realização completa deste caminho empreendido se cumpre, o qual pode depender de muitos fatores aleatórios, não nos cabe nenhuma dúvida que daremos com câmbios importantes no conhecimento de nós mesmos – enquanto seres livres, separados e autônomos – e da sociedade em que nos caberá viver no futuro.
Depois de tudo, um objetivo dessa natureza se fundamenta precisamente na premissa de que, se desejamos compreender como nos comportamos, pensamos e tomamos decisões, o conhecimento dos mecanismos neurobiológicos não é algo ornamental senão uma necessidade. Chegar a entender os fenômenos mentais no contexto da relação neurociência/direito não deixa de ser uma tarefa potencialmente revolucionária e estimulante. À medida que se descubram as propriedades dos circuitos e sistemas cerebrais e como estes logram seus macroefeitos, sem dúvida se reconfigurarão algumas das muito respeitáveis premissas tradicionais acerca de nossa própria natureza.
Em um sentido mais geral, é provável que as idéias comumente admitidas sobre a racionalidade, o livre-arbítrio, o self, a consciência, a percepção e a conduta humana, não conservem tanta identidade como as idéias pré-científicas sobre a substância, o fogo, o movimento, a vida, o espaço e o tempo. Ainda nos falta muito caminho que percorrer, mas a nova convergência investigativa entre a neurociência, a psicologia, a filosofia, a antropologia, o direito (…) e os modelos experimentais oferece a promessa de que, ao menos, se compreenderão alguns de seus princípios básicos (Churchland, 2006).
* Atahualpa Fernandez, Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT.
** Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, São Paulo: Ed. Imprensa Jurídica, 2009; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.
[1] Denominação utilizada por Siegel (2005) e cuja idéia básica se organiza ao redor de três princípios fundamentais: 1) a mente humana emerge a partir de padrões no fluxo de energia e informação dentro do cérebro e entre cérebros; 2) a mente se cria desde a interação dos processos neurofisiológicos internos e as experiências interpessoais; 3) a estrutura e a função do cérebro em desenvolvimento estão determinadas pelo modo em que as experiências, especialmente nas relações interpessoais, modelam a maduração geneticamente programada do sistema nervoso. Em síntese, que a mente surge da atividade cerebral, cuja estrutura e função estão diretamente modeladas pelo entorno (físico e cultural), pela experiência individual e pelas relações interpessoais.
[2] O cérebro é um sistema dinâmico não-linear e complexo, quer dizer, sistema regido pelas matemáticas do contínuo, e sua conduta é extremamente sensível a diferenças infinitamente pequenas. De modo que dois cérebros que estejam quase exatamente no mesmo estado pronto cambiarão a estados enormemente distintos. Isto significa que o cérebro de um ser humano, ou inclusive o de um rato, é um sistema cuja conduta é essencialmente imprevisível; quer dizer: como qualquer experiência afeta o cérebro alterando as forças das conexões sinápticas, pequenos câmbios nos micro-componentes do sistema cerebral podem gerar grandes câmbios na macro-conduta do organismo. Isto implica que somos enormemente imprevisíveis salvo no que se refere a tendências e pautas gerais. Vamo-nos à cama pela noite, nos levantamos pela manhã, costumamos estabelecer conversações (e relações) com pessoas de nosso entorno várias vezes ao dia, mas quando o faremos exatamente, com que intensidade ou que palavras saírão de nossa boca…, isso é absolutamente imprevisível (cf. Churchland, apud Blackmore, 2010: 75 e ss.; Linden, 2010 – nomeadamente no que se refere à constituição e ao funcionamento das sinapses no cérebro humano). Sobre o cérebro como sistema dinâmico não-linear e complexo, cf. Siegel, 2005: 297 e ss. Duas outras observações necessárias, de partida: no que cabe, ao usarmos o termo “desenho” ao longo deste artigo não nos referimos a qualquer tipo de postura “criacionista” ou de “desenho inteligente”, senão, e sempre, a algo desenhado pela seleção natural. De fato, as coisas viventes não estão desenhadas, embora a seleção natural darwinista autorize para elas uma versão da postura de desenho, isto é, de que é perfeitamente possível traduzir a postura de desenho aos termos darwinistas adequados (Dawkins, 2007; Dennett, 1987). A segunda observação refere-se ao uso do termo “complexo” ou “complexidade”: em que pese tratar-se de um termo do qual se abusa consideravelmente e que raramente se explicita de que modo se estabelece, há, contudo, ao menos dois aspectos sobre os que todos os especialistas em complexidade se mostram de acordo. O primeiro é que para que algo seja considerado complexo, deve estar composto por muitas partes que interatuem de forma heterogênea. Este aspecto corresponde ao uso comum do termo, ou seja, como um todo que compreende várias partes unidas ou conectadas entre si (Oxford English Dictionary). Em segundo lugar, costuma-se aceitar que o que é completamente aleatório não é complexo, como não o é algo que seja completamente regular. Por exemplo, nem um gás ideal nem um cristal perfeito se consideram complexos; da mesma forma, não se considera complexo o ato de jogar uma moeda para “cara ou coroa” (aleatoriedade absoluta) ou o funcionamento de um relógio (regularidade total). Somente aquilo que parece ser ao mesmo tempo ordenado e desordenado, regular e irregular, variável e invariável, constante e cambiante, estável e inestável merecem o qualificativo de complexo. Os sistemas biológicos, das células aos cérebros e dos organismos às sociedades, são, portanto, exemplos paradigmáticos de organizações complexas (Edelman e Tononi, 2000).
[3] Por exemplo, sabe-se que cada tribunal é um laboratório da natureza humana, onde juristas, clinicamente, questionam a nossa memória, comportamento, sanidade e senso de responsabilidade. Explorando a anatomia da justiça, no entanto, pesquisadores já começam a tomar o testemunho do cérebro propriamente dito para compreender melhor a origem de uma decisão justa. Ninguém realmente sabe como milhões de microscópicas células cerebrais podem sopesar noções objetivas jurídicas do que é certo e do que é errado. Neste particular, pesquisadores da Vanderbilt University, dirigidos por Owen Jones (Neuron, 12/2008), identificaram variedades distintas do tecido neural que ficam ativas quando, estando no lugar de juiz ou jurado, pensamos sobre crime e castigo. Em um experimento na fronteira entre o direito e a filosofia, os pesquisadores usaram um scanner cerebral para analisar as decisões imparciais que estão no cerne do nosso sistema jurídico, gravando como as células cerebrais se comportam quando avaliam a responsabilidade penal e determinam sentenças no processo de tomada de decisões jurídicas. Partindo da idéia de que desejar um mundo em que as decisões judiciais sejam justas, imparciais, sensatas e razoáveis implica compreender como isso realmente acontece, os investigadores mediram, em um primeiro momento, como as células do nosso cérebro se comportam quando temos que decidir punir alguém acusado de um crime se não temos interesse pessoal na condenação. Os pesquisadores testaram 16 voluntários em uma máquina de ressonância magnética funcional. A fMRI monitorou o fluxo sanguíneo e de oxigênio associados à atividade neural quando cada indivíduo tomou duas decisões judiciais diferentes sobre culpa e punição, em 50 cenários hipotéticos que vão desde um simples furto de um CD de música a estupro e assassinato. Descobriram que nenhuma região do cérebro sozinha faz o julgamento de terceiros. Em vez disso, pelo menos duas áreas do cérebro avaliam e atribuem uma sanção adequada. Um espaço associado ao raciocínio analítico, o chamado córtex pré-frontal dorsolateral direito, tornou-se muito ativo. Mas o processo de decisão também ativou os circuitos emocionais ( amígdala, córtex pré-frontal medial e o córtex cingulado posterior; acusadamente nos casos em que havia uma dúvida razoável ou em que as provas não eram concludentes). Em resumo, de que parecem ser distintas as áreas ativadas no cérebro no momento da decisão tomada pelo juiz: as áreas ativadas à hora de condenar alguém, quando o delito está provado mais além de toda dúvida razoável, são distintas das empregadas para condenar alguém baseando-se em provas débeis ou quando há uma dúvida razoável de que o indivíduo seja culpado; ou seja, de que parece existir uma diferença em condenar uma pessoa por puro impulso emocional ou por um verdadeiro processo racional apoiado em provas sólidas. O que de fato surpreendeu os investigadores foi a grande e acentuada quantidade de atividade emocional durante uma decisão judicial “imparcial”, muito especialmente nos casos de provas débeis ou de dúvida razoável. O raciocínio analítico, concluíram, não pode ser separado da parte emocional.
[4] Note-se que Morse refere-se à neurociência partindo da premissa de que esta já possui conhecimentos suficientes acerca de como, no cérebro, se organizam as ações, como certas áreas cerebrais operam para organizar as emoções, os raciocínios e os pensamentos éticos e como, ademais, se adentra em conhecer a dinâmica cerebral em relação com a culpabilidade, o controle cognitivo e a intencionalidade (Miller, 2000; Eagleman, 2004; Churchland, 2002).
[5] Para uma interessante defesa do livre-arbítrio como uma ilusão – uma mais de todas as ilusões que o cérebro gera, e em que sempre estamos dispostos a crer – a partir dos dados da revolução neurocientífica, cf. Rubia, 2009; Blackmore, 2010; Searle, 2005; Dennett, 2004.
[6] Suponhamos por um momento que em um determinado tempo e lugar um grupo de cientistas foi capaz de criar um indivíduo ao que lhe hão chamado Charles e quem, devido a seu “desenho”, cometeu certos atos criminais sangrentos pelos quais está sendo julgado. Imaginemos que o chefe da equipe de cientistas que o desenhou é chamado a declarar por parte da defesa e que este pronuncia um discurso como o seguinte: “… se trata de algo muito simples: minha equipe desenhou a Charles selecionando os genes mais apropriados para a conduta que buscávamos nele. Ademais, ajustamos o meio ambiente em que cresceu para que os estímulos que recebera estivessem em consonância com nossos objetivos. Como consequência, conseguimos obter um 95% de fiabilidade nas previsões sobre seu comportamento e, por suposto, dentro destas previsões se encontra o ato pelo qual se lhe julga agora”. Deixando de lado as possibilidades concretas de um caso assim, que deveríamos fazer com Charles? Segundo a lei, com toda probabilidade cumpre com os requisitos mínimos de racionalidade para ser julgado como responsável de seus atos, mas, por outro lado, intuitivamente podemos apreciar que não é de todo justo que se lhe atribua a responsabilidade de seus atos, posto que Charles é em grande medida “vítima de suas circunstâncias”. Forças mais além de seu controle hão jogado um peso absolutamente relevante na produção de sua conduta. Mas avançando por este caminho: qual é a diferença entre Charles e muitos outros acusados de crimes similares? Segundo o discurso Greene e Cohen (2004):“Eu o projetei. Cuidadosamente selecionei cada gene em seu corpo e projetei cada evento significante em sua vida, de forma a torná-lo, exatamente, o que ele é hoje. Selecionei sua mãe, sabendo que ela o deixaria chorar por horas, antes de pegá-lo no colo. Selecionei, cuidadosamente, cada um dos parentes, professores, amigos, inimigos etc., e os disse, exatamente, o que dizer a ele e como tratá-lo. As coisas, de um modo geral, aconteceram como o planejado, mas não sempre. Por exemplo, as cartas iradas escritas ao seu falecido pai não estavam planejadas até que ele tivesse catorze anos, mas antes do seu décimo terceiro ano de vida, ele já tinha escrito quatro delas. Em retrospecto, penso que isso é devido a algumas poucas substituições que fiz em seu oitavo cromossomo.”E a conclusão a que chegam é a seguinte: “Qual é a diferença entre o Sr. Marionete e qualquer acusado de um crime? Afinal, temos poucas razões para duvidar que (i) o estado do universo 10.000 anos atrás, (ii) as leis físicas e (iii) os resultados dos eventos quânticos aleatórios são, juntos, suficientes para determinar tudo que acontece hoje, incluindo nossas próprias ações. Essas coisas estão, claramente, além de nosso controle. Então, qual é a real diferença entre nós e o Sr. Marionete? … num sentido muito real, somos todos marionetes. Os efeitos combinados dos genes e do ambiente determinam todas as nossas ações. O Sr. Marionete é excepcional apenas na medida em que as intenções de outros seres humanos estão por trás de seus genes e de seu ambiente. Mas, isso não importa, uma vez que seus genes e seu ambiente são, intrinsecamente, comparáveis àqueles das pessoas comuns. Não somos mais livres que ele.” (Greene e Cohen, 2004). Um interessante exemplo (possível de argumentação jurídica e válido ao menos enquanto ao seu espírito ou potencial argumentativo), proposto por Ledoux ( in Brockman, 2004), refere-se ao que ele denomina “a defesa da amígdala” que, ao igual que muitas outras regiões cerebrais, realiza sua função à margem de nossa consciência. Segundo Ledoux (para quem, registre-se, a reconsideração da natureza e os limites da responsabilidade humana dependerá dos futuros descobrimentos acerca do equilíbrio entre controle consciente e inconsciente do comportamento pelo cérebro), “a defesa da amígdala”, diferentemente da defesa fundamentada em alguma patologia cerebral ( argumento que consiste em que uma pessoa há cometido um crime devido a determinada alteração física presente em seu cérebro), se baseia na idéia de que a amígdala pelo geral controla o comportamento emocional de uma maneira inconsciente, em consequência do qual é possível a comissão de um crime por parte da amígdala com total independência do pensamento consciente, isto é, de que é muito provável que a amígdala controle um ato agressivo à margem do controle consciente em certas circunstâncias especialmente provocadoras: nesses casos, surge a possibilidade de que a amígdala possa cometer inconscientemente um delito que uma pessoa consciente, que se encontra em uma situação em que perde a cordura, jamais cometeria de bom grado – ou seja, um crime provocado por uma resposta cerebral relativamente simples, exclusivamente emocional, inata, estereotipada, executada ao instante e sem premeditação ( por exemplo, faz algum tempo que o sistema legal reconhece os chamados “crimes passionais”).
[7] Recorde-se que os genes codificam estruturas neuronais e não comportamentos: uma disposição cognitiva geneticamente determinada pode expressar-se de muitas maneiras, ou inclusive não expressar-se de nenhuma, de acordo com as condições ambientais. A afirmação de que determinados traços de nossa natureza têm um componente inato/hereditário significa não somente que os genes (ou mais propriamente o “quando” e “como” se expressam esses genes) influem no desenvolvimento do cérebro e dos circuitos neuronais implicados nos sistemas cerebrais, senão que também a experiência pode modificar a expressão de certos genes que são capazes de alterar a estrutura e o próprio funcionamento do cérebro ( isto é, de que são múltiplos os fatores que regulam e modificam a expressão de nossos genes e, consequentemente, que configuram as características da conduta humana complexa). Como explica Linden (2010): “Ahora sabemos que el entorno, considerado en sentido amplio, puede afectar también a la función de los genes en las células del cerebro. Dicho con otras palabras, la educación influye en la naturaleza y viceversa. La causalidad, en lo que al cerebro respecta, es siempre una calle de doble sentido”. A grande diversidade de condutas, habilidades e temperamentos que caracterizam cada indivíduo procedem das diferenças genéticas e os processos de impressão devidos às influências ambientais, por necessidades individuais e seguindo um sistema individual de valores, os quais, por sua vez, geram e configuram o caráter particular que possui o cérebro de cada pessoa (o que ilustra as maravilhas da plasticidade cerebral – neuronal ou sináptica). Dito de outro modo, as experiências vividas alteram o uso que fazemos da informação genética e produz particulares modificações da estrutura e do funcionamento cerebral (ao cambiar e reorganizar os circuitos e as conexões neuronais ou sinápticas presentes no cérebro, capacidade de câmbio esta denominada de neuroplasticidade). A formação e construção do cérebro (que subjaz a nossas emoções e condutas, à resolução de problemas, aos processos de tomada de decisão, à inteligência, ao pensamento, a capacidades tão humanas como a linguagem, a atenção ou os mecanismos de aprendizagem e memória, etc.) é larga, maleável, custosa e complexa. Tal como expressa Norman Doidge (2009), a evolução nos dotou de “un cerebro que sobrevive en un mundo cambiante cambiándose a sí mismo”.
[8] E este parece ser o ponto crucial: a responsabilidade é um constructo humano que existe somente no mundo social, donde há mais de uma pessoa; é uma regra, construída socialmente, que existe somente no contexto da interação humana. Aqui é donde começa a pendente resvaladiça, porque, para dizer a verdade, a neurociência tem pouco que aportar à compreensão da responsabilidade: nenhum píxel de uma imagem cerebral poderá manifestar culpabilidade ou não culpabilidade. Dito de outro modo, a neurociência nunca encontrará o correlato cerebral da responsabilidade, porque é algo que atribuímos aos humanos – às pessoas -, não aos cérebros. É um valor moral que exigimos às pessoas de nosso entorno, os seres humanos que se regem por regras.(Gazzaniga, 2005). Se a presença de uma variante particularmente anormal do gene MAOA predispõe uma pessoa a um temperamento violento e a atos agressivos, é possível admitir que a posse desse gene por um indivíduo condenado por homicídio possa ser usada como um argumento da defesa para a atenuação da pena? Se Adrian Raine (1993) tiver razão, e as imagens do cérebro podem predizer a psicopatia, é possível admitir que uma pessoa que mostre um padrão cerebral desses possa alegar em sua defesa não ser responsável por seus atos? É possível que um sujeito que cometa um homicídio sob a influência de uma droga legalmente receitada, como o Prozac, possa alegar que não foi ele mas a droga a responsável pela sua conduta? ( Rose, 2006; note-se que defesas desse tipo podem ter sido tentadas e até mesmo usadas nos Estados Unidos, e no mínimo admitidas como discutíveis por algum tribunal norte americano, mas, pelo que temos notícia, não ainda em outros países). Pois bem, são argumentos como esses (genéticos e bioquímicos) que parecem ir ao cerne do entendimento acerca da responsabilidade humana. Se somos seres neuroquímicos, se todos os nossos atos e nossas intenções estão inscritos em nossos genes, nas nossas conexões neuronais e neuromoduladores circulantes, como podemos ser livres? Onde fica nossa atuação? E aqui, neste particular, parece-nos deveras instrutivo o outro lado do argumento apresentado por Rose (2006): nos anos 1950 ficou de moda argumentar que muitos atos criminosos eram consequências de uma infância sofrida e empobrecida. Existe alguma diferença lógica – pondera Rose – entre argumentar “não era eu, eram os meus genes” e “não era eu, era meu ambiente”? Se achamos que existe, é porque temos um compromisso (ou prejuízo) não declarado com a opinião de que causas “biológicas” são mais importantes, de algum modo mais determinantes, em um sentido, que as “sociais”. Essa é a armadilha do determinismo biológico que, de alguma maneira, torna pouco inteligível o fato de que nós, seres humanos, somos radicalmente indeterminados no que se refere a nossa liberdade.