Filosofia do Direito

Impasse entre a ética pública e o direito processual

 

 

Há poucos dias chegou ao Congresso, um abaixo-assinado movido por mais de um milhão de pessoas, inclusive por entidades como a CNBB, reivindicando que seja impedida a candidatura de políticos que estejam respondendo a processos na Justiça.

 

O espírito da campanha é, sem dúvida nenhuma, extremamente louvável, haja vista os sucessivos escândalos envolvendo tanto a Câmara como o Senado nos últimos tempos, coisa que tem manchado a reputação dessas instituições e deixado boa parte dos eleitores indignados com as condutas de um grande número de seus representantes.

 

Há até mesmo políticos condenados em primeira instância geralmente por abuso do poder econômico, corrupção ativa e passiva, entre outras infrações da lei intoleráveis, principalmente em membros do Poder Legislativo cuja função precípua é fazer e revogar leis, não violar as mesmas que fizeram e fazem.

 

Recebido o abaixo-assinado pelo Presidente da Câmara, deputado Michel Temer (PMDB-SP), ele fez um breve comentário em que sua atividade como político ávido por conciliações parece ter esquecido sua atividade anterior como membro do Ministério Público:

 

Disse ele que não achava justo que fosse rejeitada a candidatura de políticos já condenados em primeira instância julgados por um juiz singular, mas sim a daqueles condenados em segunda instância por um colegiado de magistrados.

 

Ora, ainda que assim fosse, poderia caber recurso, e supondo que coubesse, não se poderia considerar culpado aquele cidadão, político ou não, que não tivesse sido condenado em última instância pelo STJ ou STF.

 

É justamente aqui que reside o nó da questão. De acordo com o princípio de presunção de inocência, todo cidadão tem que ser considerado inocente até prova em contrário.

 

Enquanto forem cabíveis recursos, mesmo que ele tenha sido condenado em instâncias inferiores, ele continua sendo beneficiado, justa ou injustamente, pelo princípio de presunção de inocência, e só poderá ser considerado culpado quando esgotados todos os recursos e ficar configurada a coisa julgada.

 

Depreende-se do que foi estabelecido acima que, caso se rejeite a candidatura de um candidato condenado, mas não em última instância, estar-se-á violando um princípio jurídico basilar cuja violação abalará a ordem jurídica, acarretando conseqüências desastrosas capazes de afetar gravemente a vida de cidadãos honestos e cumpridores da lei.

 

Segue-se daí que, embora seja extremamente louvável, do ponto de vista da ética pública a iniciativa tomada pelos signatários do referido abaixo-assinado, e embora o Poder Legislativo venha a acatá-la entendendo que a mesma visa à moralização de uma combalida instituição, penso que o STF ou o STJ receberão a apelação de todo e qualquer candidato que se sinta impedido de se candidatar por ter sido condenado em instâncias inferiores.

 

Tempos atrás, tendo sido provocado a se manifestar a respeito do assunto, o STF  tomou uma decisão exatamente nos termos em que nos expressamos aceitando a candidatura de candidatos nas já mencionadas condições.

 

Para a maioria da opinião pública, o STF estava sendo condescendente com políticos corruptos e infratores da lei, mas na realidade ele estava preocupado em preservar o princípio de presunção de inocência, cumprindo assim seu dever enquanto guardião da Lei Maior.

 

De qualquer modo, não resta dúvida que está configurado um impasse entre, de um lado, um princípio jurídico fundamental, tendo que ser preservado a qualquer custo, e de outro, uma exigência de caráter ético lidimamente reivindicada  por mais de um milhão de cidadãos brasileiros. Como resolver o impasse criado?

 

Tenho razões para pensar que o busílis da questão consiste numa incongruência entre a aposentadoria especial dos representantes do povo – bastante diferente da do resto do povo que representam – e uma exorbitância do direito processual.

 

Explico-me. O direito processual contém uma exagerada quantidade de recursos que – com a finalidade aparente de favorecer o réu com o benefício da dúvida e protegê-lo de possíveis equívocos das cortes – tem como conseqüência facilmente previsível a esperteza de chicaneiros, bem como a supostamente não-pretendida conseqüência da grande e assaz indesejável morosidade do Poder Judiciário.

 

Por outro lado, nossos privilegiados representantes políticos se aposentam apenas com o cumprimento de duas legislaturas e aposentadoria integral, enquanto a maioria dos seus representados se aposentam com 35 anos de trabalho – 30 se forem mulheres – e diminuição drástica do salário de ambos os sexos, caso tenham trabalhado em empresas privadas.

 

Decorrência inevitável: quando um político é finalmente condenado em última instância ele já está de pijama deitado numa rede tomando uma deliciosa água de côco.

 

Obviamente, ele não deixará de sofrer os indesejáveis efeitos da sua condenação, mas os malefícios públicos feitos por ele em sua vida ativa, que poderiam ter sido evitados ou ao menos inibidos, são, por suas peculiares naturezas, tão irrevogáveis quanto a coisa julgada.

 

 

* Mario Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br, www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mario. Impasse entre a ética pública e o direito processual. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/impasse-entre-a-etica-publica-e-o-direito-processual/ Acesso em: 18 jul. 2025
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