Otávio Romano de Oliveira[1]
Sumario: 1 – Considerações filosóficas sobre justiça; 2 – Noção de Justiça segundo Kelsen; 3 – Direito e Justiça; 4 – Justiça – O que é fazer a coisa certa; 5 – A Justiça Teleológica de Aristóteles
1 – Considerações filosóficas sobre justiça:
Muitos pensadores e filósofos tentaram alcançar a essência da palavra Justiça. O que é a justiça? Um dos Diálogos socráticos escrito por Platão, A República, trata com propriedade a possível concepção da justiça.
No decorrer do diálogo são apresentados três conceitos de justiça: a de Céfalo, a de Polemarco e a de Trasímaco, todos filósofos e amigos de Sócrates.
Céfalo defende a justiça como a dos antepassados e da sociedade grega primordial, cuja corrupção não pode deixar de conduzir justamente à meditação filosófica sobre a justiça, para o qual consistiria em “dizer a verdade e em restituir aquilo que se tomou de alguém”.
Polemarco, filho de Céfalo, assevera que fazer o bem aos amigos e mal aos inimigos é justiça, conceituação que aproxima-se da proporção em que se dá a cada um aquilo que é devido.
Já a derradeira conceituação de justiça, a de Trasímaco, defende que a justiça é a imposta pelo mais forte, mesmo que tenha sido criada pelo arbítrio do governante, é “fazer o que é do interesse do mais forte”.
Sócrates, no entanto defende ser a justiça a superação de toda atitude egoísta, a maior de
todas as virtudes. Ela é alcançada quando cada qual reconhece a igualdade recíproca contra a reivindicação de tudo para si próprio. Defende que os que se encontram em posto de comando devem se submeter ao ordenamento, só assim será possível alcançar o estado ideal e estas leis devem ser organizadas e estipuladas segundo a expectativa social e por meio de pessoas justas.
Defende ainda que nós devemos nos submeter à lei, mesmo esta sendo injusta. Segundo Sócrates, a lei defeituosa deve ser modificada, mas não violada.
Discípulo de Sócrates, Platão também contribuiu com a busca do conceito de justiça. No
entanto, afasta-se da análise empírica socrática, apesar de sua filosofia estar intimamente ligada ao de seu mestre.
Sua filosofia parte para um plano mais elevado da razão, ao mundo das idéias. Delineia duas vertentes de justiça. A primeira, a justiça como idéia da razão: “o bem e o mal, o justo e o injusto são verdades racionais, essências eternas”. A segunda é a justiça sob o ponto de vista da virtude do cidadão ou do filósofo, como prática individual. Assim temos a afirmação platônica que “só conhece a justiça aquele que é justo” e “no ato injusto, o menor é sofrer a injustiça; o maior, cometê-la”.
Platão preocupa-se com a função política da ideia de justiça. Afirma que a justiça consiste na harmonia das classes do Estado, como a música que se produz pela combinação harmônica dos sons. No Estado platônico a justiça se dá com a harmonia das classes, cabendo a cada qual a responsabilidade com sua respectiva função, de modo que o guerreiro se aterá apenas aos exercícios militares, assim como o comerciante e o artesão se comprometerão exclusivamente com seus exercícios, não alargando suas atividades ao campo, por exemplo, dos governantes.
Aristóteles considera justo o que observa a lei. “Justiça é uma virtude pela qual cada um tem o que lhe pertence, e isto segundo a lei, enquanto que o injusto é vício pelo qual alguém se apodera do alheio, contrariamente à lei”.
Mas ele considera que não há apenas uma forma de justiça, pois esta varia conforme o destinatário ou ao critério que se adota. Há, então, o justo político, que se reporta à comunidade política; o justo doméstico, que se reporta à família; o justo privado, que é o relacionado à relação entre particulares ou entre o indivíduo e a comunidade; o justo geral, que engloba todo ato virtuoso; o estrito, relacionado à virtude específica da justiça; o justo legal, ou o positivado, que é a obediência à lei e o justo absoluto, que se reporta à igualdade proporcional em relação ao mérito.
Pode-se destacar a classificação da justiça em universal e particular. A universal é a referente às leis positivas, justiça em sentido amplo, que se dá na conduta de acordo com a lei. Já a particular se dá com o tratamento igual inter-subjetivo, que é a justiça em sentido estrito.
Como foi visto, a justiça, em Aristóteles, é colocada em função do Direito. São Tomás de Aquino, na mesma linha, também o faz, mas em definitivo. Ele parte do pressuposto de que, da análise do significado do direito, se terá a noção de justiça. O direito é objeto da justiça, mas esta não se confunde com a lei.
John Locke e Thomas Hobbes colocam a igualdade entre os indivíduos como pressuposto de toda ordem normativa, como a natural e a positiva. No primeiro filósofo temos que, no Estado natural, os homens nascem iguais e precisam da propriedade para sobreviver, que é conseguido pelo esforço próprio por meio do trabalho e da sua liberdade. Podendo ser esta liberdade natural ou social, sendo esta última por meio de um poder estabelecido segundo o consentimento da comunidade.
Então Locke defende que surge o Estado para proteção da propriedade dos indivíduos, pois, segundo este filósofo, se não haver propriedade não há Estado, não há justiça e muito menos injustiça, pois o injusto é a violação da propriedade.
Thomas Hobbes, apesar de partir do mesmo ponto que Locke, ou seja, a igualdade entre os homens, diverge de opinião quanto à justiça. Para Hobbes o homem é igual em vida e em espírito, mas sem norma coercitiva sobre todos há o caos social, por ser o homem ambicioso. Nas palavras utilizadas por Hobbes: “o homem é o lobo do homem”. Por isso há a necessidade de os indivíduos fazerem um pacto que criasse um poder soberano, acima de todos.
É a partir desse pacto que surge a justiça, pois Hobbes afirma ser a justiça a obediência à lei (ao pacto). Segundo ele, no Estado de natureza, ou na comunidade sem leis, todos os homens são livres para cometer qualquer ato, mesmo que seja imoral. Neste Estado todos os homens têm todos os direitos, pois não há regra sobre eles e por isso não há justo ou injusto. Apenas com o pacto, com os homens se submetendo ao soberano, renunciando à liberdade a fim de manter a ordem e assegurar direitos, pode haver justiça ou injustiça.
Ao contrário de Locke, Hobbes defende que a propriedade surge após o Estado, com o pacto, pois a igualdade natural permite ao homem usar de todos os meios para manter sua existência e perpetuar sua descendência. Não há propriedade privada, tudo é de todos.
A filosofia destes dois contribuiu para a formação da filosofia de Kant.
Por absorver o racionalismo, Kant defende um Direito racional, onde o homem sabe distinguir o certo do errado pela razão, inerente à humanidade. Por isso defende a possibilidade de uma lei imortal, universal e imutável, a lei moral universal. Distingue a lei positivada em heterônoma, independente da vontade subjetiva, da moral autônoma. Diz ele que o homem age segundo os imperativos éticos, mas a lei moral segundo o imperativo categórico.
Para entendermos a justiça conceituada por Kant, deve-se entender suas fórmulas do imperativo categórico. “Age apenas segundo a máxima, em virtude da qual possas querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal”. Esta é a fórmula geral que representa o imperativo categórico de Kant, na qual percebe-se que a justiça kantiniana é aquela universal, ou seja, as pessoas devem pautar suas ações de acordo com princípios éticos universalmente aceitos. “A partilha igual do bem maior do ser humano enquanto ser racional como tal, a liberdade”. Este é o conteúdo de justiça utilizado por Kant, preconizada na Revolução francesa.
2 – Noção de Justiça segundo Kelsen:
A ideia de Justiça vem arraigada com a existência das relações que perpetuam a sociedade ao longo do tempo, pois isso, muitos são os estudos para que se consiga compreender valores. Assim fez Hans Kelsen em sua obra “O problema da Justiça”, na qual tenta retratar a existência de um valor absoluto, considerando as teorias anteriores a ele indefinidas e incompletas de conteúdo.
Hans Kelsen explica que a Justiça é uma qualidade ou atributo que pode ser afirmado de diferentes aspectos. Em primeiro lugar do indivíduo. Diz-se que um indivíduo, especialmente um legislador ou um juiz, é justo ou injusto. Nesse sentido, a justiça é representada com uma virtude dos indivíduos.
Como todas as virtudes, também a virtude da Justiça é uma qualidade moral, e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral.
As normas da moral são normas sociais, isto é, normas que regulam a conduta de indivíduos e face de outros indivíduos, nesse sentido, a norma da justiça é uma norma no conceito da moral.
Kelsen aponta ser impossível generalizar a ideia de Justiça, traçando um elo entre razão e emoção para comprovar que não existe uma justiça universal e uniforme, apontando a relatividade como melhor caminho para que compreenda o conceito de justo.
A Justiça sempre representou um sonho irrenunciável da humanidade e no apêndice da segunda edição da Teoria Pura do Direito, Kelsen fez constar o título “ A Justiça e o Direito Natural”. Sustentou Kelsen que a justiça é valor constituído por uma norma jurídica que serve como esquema de interpretação de conduta: é justa a conduta que corresponde a essa norma, é será injusta a que a contrariar.
A diferenciação entre os campos da moralidade e da juridicidade, para Kelsen, decorre de uma preocupação excessiva com a autonomia da ciência jurídica. Argumenta Kelsen que, se se está diante de um determinado Direito Positivo, deve-se dizer que este pode ser um direito moral ou imoral. É certo que se prefere o Direito moral ao imoral, porém, há de se reconhecer que ambos são vinculativos da conduta.
Em poucas palavras, um direito positivo sempre pode contrariar algum mandamento de justiça, e nem por isso deixa de ser válido. Então, o direito positivo é o direito posto pela autoridade do legislador, dotado de validade, por obedecer a condições formais para tanto, pertencente a um determinado sistema jurídico.
O direito não precisa respeitar um mínimo moral para ser definido e aceito como tal, pois a natureza do direito, para ser garantida em sua construção, não requer nada além do valor jurídico. Então, direito e moral se separam. Assim, é válida a ordem jurídica ainda que contrarie os alicerces morais.
Validade e justiça de uma norma jurídica são juízos de valor diversos, portanto (uma norma pode ser válida e justa; válida e injusta; inválida e justa; inválida e injusta).
O que de fato ocorre é que Kelsen quer expurgar do interior da teoria jurídica a preocupação com o que é justo e o que é injusto. Mesmo porque, o valor justiça é relativo, e não há concordância entre os teóricos e entre os povos e civilizações de qual o definitivo conceito de justiça. Discutir sobre a justiça, para Kelsen, é tarefa da Ética, ciência que se ocupa de estudar não normas jurídicas, mas sim normas morais, e que, portanto, se incumbe da missão de detectar o certo e o errado, o justo e o injusto. E muitas são as formas com as quais se concebem o justo e o injusto, o que abeira este estudo do terreno das investigações inconclusivas. Enfim, o que é justiça?
3 – Direito e Justiça
O entendimento da sociedade na busca da justiça é a finalidade do Direito. O dinamismo dos valores aliado à concretização de fatos inéditos implica numa readequação da norma. Esses elementos são indissociáveis, conforme pronuncia Miguel Reale (2003): “[…] o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor. ”O estudo da sociedade sob a ótica da norma jurídica e, também, da expectativa de direito de cada indivíduo da sociedade permite ao Direito evoluir.
Através desse estudo evidenciam-se as lacunas existentes entre a norma e a expectativa de direito da sociedade. O preenchimento dessas lacunas promoverá a harmonização entre a norma jurídica e os valores morais e culturais da sociedade.
Evoluindo, o Direito rumará, obrigatoriamente, para a efetivação da justiça. A busca de uma adequada sistematização jurisdicional é o caminho da justiça efetiva, concreta.
O entendimento da relação entre indivíduos, sociedade, norma, expectativa de direito e a justiça levará à adequação do sistema jurisdicional, levando todas as variáveis a convergir em para um mesmo ponto, a justiça.
Sendo todos os parâmetros mutáveis, a justiça tem por missão redistribuir, constantemente, os pesos de sua balança para se fazer presente. Na busca da justiça o Direito é o instrumento necessário. Sua capacidade de ajustar a relação entre a norma e a sociedade dá essa essência. Ter a justiça como finalidade dá ao Direito a responsabilidade de interferir na vida de todos, tornando-se, assim, uma ciência onipresente.
4 – Justiça – O que é fazer a coisa certa –
Aristóteles ensina que a justiça significa dar as pessoas o que elas merecem e para estabelecer quais virtudes são dignas de honra e recompensa e sustenta que não podemos imaginar o que é uma constituição justa sem antes refletir sobre a forma de vida mais desejável. Para ele, a lei não pode ser neutra no que tange a qualidade de vida.
Em contrapartida, filósofos políticos – de Immanuel Kant, no século XVIII, a John Rawls, no século XX, afirmam que o princípio de justiça que define nossos direitos não devem basear-se em nenhuma concepção particular de virtude ou da melhor forma de vida. Ao contrário, uma sociedade justa respeita a liberdade de cada indivíduo para escolher a própria concepção do que seja uma vida boa.
Pode-se então dizer que as teorias de justiça antigas partem da virtude, enquanto as modernas começam pela liberdade.
5 – A Justiça Teleológica de Aristóteles
Aristóteles ensina que a Justiça é teleológica, ou seja, para definir os direitos, é preciso saber qual é o “télos” (palavra grega que significa proposito, finalidade ou objetivo) da pratica em questão. Ele acredita que as discussões sobre Justiça, sejam, inevitavelmente, debates sobre a honra, a virtude e a natureza de uma vida boa.
A Justiça envolve dois fatores: “ As coisas e as pessoas a que elas são destinadas”. E geralmente dizemos que “pessoas iguais devem receber coisas iguais”.
No entanto, surge uma questão difícil: Iguais em que sentido? Isso depende do que está sendo distribuído e das virtudes relevantes em cada caso.
Ele traz o exemplo da flauta. Se você tem a melhor flauta do mundo, quem seria merecedor de se utilizar desta flauta ou ser seu dono? O melhor flautista seria o beneficiado por merecimento, por ser a pessoa mais qualificada e que melhor se utilizaria do objeto.
Assim, seu modo de raciocinar a partir do proposito de um bem para a devida alocação desse bem é um exemplo de raciocínio teleológico.
BIBIOGRAFIA
KELSEN, Hans. Teoria Pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998
KELSEN, Hans. O problema da Justiça. São Paulo, Martins Fontes, 2011
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, São Paulo, Saraiva, 2002
SANDEL, Michel, Justiça, – o que é fazer a coisa certa, Rio de Janeiro, 2011
[1] Advogado, especialista e mestrando em direito do trabalho pela PUC/SP