INTRODUÇÃO:
A crise econômica sempre gera um abalo em toda a sociedade. E não é preciso um prévio conhecimento em economia pra perceber sua chegada e muito menos assistir a noticiários. Uma simples ida ao supermercado já revela seus impactos.
É em meio a essas crises que são criados mecanismos de restruturação da economia para que esse equilíbrio possa continuar mantido. No Brasil, em meio a crise sentida desde 2015 e, convenhamos, não só econômica, o mecanismo escolhido é a reformulação e criação de leis, algumas complementares outras modificativas da própria Constituição. Exatamente da Constituição que inaugura um ordenamento jurídico protecionista e tutelador dos direitos individuais e sociais e cria a implementação de políticas públicas essenciais para garantir esses direitos dando ao Estado a qualidade de principal responsável pelo equilíbrio econômico e social.
Nesse sentido, é importante destacarmos a polêmica PEC 241, que no senado tramita como PEC 55 para aprovação, como medida encontrada pelo governo do Presidente Temer para solucionar esse cenário de crise. No entanto o que essa Pec propõe tem dimensões muito maiores que uma reforma administrativa como meio solucionador. Tem impactos, inclusive, em uma das área mais carentes e problemáticas do nosso país: a saúde.
O que a PEC 241 muda na saúde?
A proposta de emenda em curso no Senado tem a intenção de frear os gastos públicos na tentativa de equilibrar o déficit e diminuir a inflação e como futura consequência da melhora da crise, dar maior credibilidade do país na busca de atrair capital estrangeiro. A grande questão está nos gastos que serão cortados. A PEC 241 propõe delimitar os gastos primários vinculando-os à inflação.
E o que são os gastos primários? Os gastos com saúde, educação, segurança, investimento, salário, combate à corrupção, que não são na verdade, os únicos gastos do governo, a exemplo dos gastos financeiros – pagamento da dívida, amortização, etc.
A principal crítica que se faz a essa proposta é: Estaríamos tentando instituir um Estado mínimo mesmo diante de uma Constituição tão prestativa e garantidora?
Esse é o principal embate entre aqueles que defendem a implementação dessa PEC como importante via de saída da crise e aqueles que acreditam que nos moldes em que ela foi criada e o que ela regula trará mais retrocessos do que superação.
Além do ponto de vista econômico, é importante que seja destacado também os efeitos do ponto de vista social. Em relação à saúde já se prevê uma enorme decadência dos serviços, políticas públicas e aparatos necessários à viabilização destes além do consequente sucateamento do SUS.
Vincular os gastos da saúde seria como congelar a crise atual sob os três aspectos básicos, quais sejam, a deficiência na estrutura física, a falta de disponibilidade de material-equipamento-medicamentos e a carência de recursos humanos.
Importante destacar que o Sistema Único de Saúde recebe recursos das três esferas de governo: estadual, municipal e federal nos termos da Emenda Constitucional de 86. Funciona assim: o governo federal arrecada impostos e contribuições. A Constituição estabelece que parte dessa arrecadação deve ser transferida para estados e municípios. O que resta é a Receita Líquida (RCL). A EC 86 estabelece que, entre 2016 e 2020, parcela crescente da RCL deverá ser destinada à Saúde: 13,2% em 2016 e 13,7% em 2017 – até chegar a 15% em 2020. Os estados e municípios também devem destinar uma parcela de suas receitas para financiar a saúde, os estados contribuem com, no mínimo, 12%; os municípios, com 15%, com base na Emenda Constitucional 29, em vigor desde 2005. Estes são os valores mínimos, caso os governos julgarem necessário podem destinar mais recursos.
O SUS não é apenas uma sigla. Não é um sistema com determinados recursos dirigidos a pessoas pobres, é um sistema universal público, para todos, inclusive aqueles com planos privados, tendo com uma de suas diretrizes tratar a todos de maneira equitativa, ou seja, podendo até tratar diferente mas na medida das desigualdades em relação a problemas e necessidades distintas. A saúde pública cuida das atividades de vigilância sanitária e epidemiológica, por exemplo. Se comparado a outros sistemas universais, no entanto, o brasileirorecebe pouco investimento. Em 2014, segundo os dados mais recentes daOrganização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastouUS$ 947,40 para custear a saúde de cada cidadão durante o ano todo. É pouco quando comparado aos US$ 3.934 que os britânicos destinaram ao setor no mesmo período. No caso brasileiro, há um agravante:menos da metade do investimento – 46% – foi financiado pela esfera pública.Os outros 54% correspondem a gasto privado. O investimento público do Brasil em Saúde é baixo mesmo quando comparado a outros países da América Latina: em 2014, o gasto público em Saúde no Brasil correspondeu a 3,8% do PIB.
Nisso se constata que saúde, mesmo sem delimitação, nunca foi de fato prioridade nos governos que se passaram mesmo sendo tratada como gasto primário e sob a ótica da Constituição de 88 nos termos do Artigo 196 como direito de todos e dever do Estado.
A proposta do governo muda como é calculado o investimento federal mínimo em Saúde. A regra vigente diz que, em 2017, o governo deveria destinar à Saúde 13,7% de suas receitas líquidas. A PEC 241 muda essa lógica: em 2017, a Saúde receberá, no mínimo, 15% desse total. A partir do ano seguinte – e pelo menos até 2026, talvez até 2036 – o valor vai variar de acordo com a inflação. A aplicação mínima em 2018 será a mesma feita em 2017, acrescida da inflação registrada no período. Se julgar necessário, e se tiver recursos, o governo terá margem para aumentar o orçamento da Saúde – desde que não ultrapasse o teto geral de gastos.
Sobre esse ponto o que a PEC estabelece é que não haverá ganho real. Ou seja, ganho acima da inflação. Se alguma área tiver será em detrimento de outra. Pois o gasto global será aquele estabelecido pelo teto. Mas como já supracitado, a realidade dos governos anteriores e se manter a tendência, dos governos seguintes, não é de priorizar a saúde. Inclusive o que já se polemiza dessa proposta é que é tida como uma das principais razões da aliança entre PMDB e PSDB, garante governabilidade ao presidente Temer no Congresso. O interesse do PSDB pela aprovação da pauta explicita o caráter da proposta, afinada com a política de austeridade defendida pelo partido. Nos bastidores, a PEC 241 é tratada como uma espécie de teste. Se o governo não for capaz de aprová-la, também não conseguirá aprovar a reforma da Previdência, tampouco mudanças na legislação trabalhista. O que se vê mais uma vez é a politização de uma questão tão delicada versus um possível real interesse em melhorias para o país.
Em 2017, o investimento mínimo será realmente maior do que aquele originalmente pretendido: ao aplicar 15% da RCL, e não os 13,7% planejados pela regra que hoje vigora, o governo garantirá cerca de R$ 10 bilhões a mais para a Saúde – R$ 113,7 bilhões em comparação a R$ 103,9 bilhões. Os críticos da medida veem dois problemas nessa retórica: o valor originalmente planejado para 2017 era baixo. Em 2014 e 2015, o governo destinou cerca de 15% das receitas líquidas à Saúde. A aplicação regrediu em 2016 – para 13,2%. E continuaria baixa no ano seguinte, se fossem mantidas as regras atuais. Em 2017, mesmo com a aplicação de 15% prevista pela PEC, averba destinada à Saúde será inferior àquela aplicada em 2014. Tendo em vista que está se congelando gastos de um ano de crise. O ano 2016 trouxe de volta sentimento amargo da recessão vivida nos anos de 1929/1930. Isso quer dizer que por causa da crise econômica, a arrecadação do governo caiu. Aplicar 15% da receita em 2017 não é o mesmo que aplicar 15% das receitas de 2014 em que, em termos de comparação há uma enorme diferença na arrecadação. Em termos técnicos para manter o padrão que se teve em 2014, e que nem foi um dos mais elevados, “teria que se destinar R$ 119 bilhões parea a Saúde em 2017”, segundoFrancisco Funcia,economista e consultor técnico doConselho Nacional da Saúde. E não os R$ 113,7 bilhões que serão aplicados caso a PEC seja aprovada.
O outro problema está na forma de vinculação dos gastos dessa proposta, sendo à inflação e não ao PIB, medida muito incomum diante de tantos outros países que já tentaram superar suas crises através da reforma fiscal e administrativa mas reajustavam seus gastos conforme o crescimento do país. Num cenário de crescimento sustentável do país, e caso o sistema seja mantido por 20 anos, as perdas se acumularão: R$ 433,52 bilhões a menos, na projeção do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ou R$ 743 bilhões, nas previsões doInstituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Corrigir o valor mínimo pela inflação será insuficiente para garantir o nível de investimento adequado, também por outro motivo: “A inflação médica é superior à inflação comum” (Arthur Chioro, 2016).
Em relação a gastos na saúde é importante destacar as tendências epidemiológicas que a própria sociedade brasileira tem que estar atenta, sobretudo se essa Pec for apovada.
É notória a previsão de uma epidemia anunciada de diabete e hipertensão para essa geração que vive em sobrepeso e obesidade. Esta situação é provável e vão ser necessários sistemas de saúde adequados para os devidos cuidados.
Outra epidemia crescente é a de acidentes em motocicletas onde as pessoas lesadas precisarão de um atendimento contínuo de reparação e reabilitação nos casos mais gravosos.
Existe uma geração de crianças com síndrome neurológica decorrentes da Zika e por mais deficiente que ainda seja, o BPC (benefício de proteção continuada) que ampara essas crianças e suas famílias corre o risco de ser grandemente freado segundo as exigências da PEC 241.
Além de todas as situações já citadas, há ainda a possibilidade de agravamento de doenças crônicas reumáticas decorrentes de complicações da chikungunya. Doenças que são resolvidas e precisam de tecnologias que não são atendidas só do ponto de vista da atenção básica.
E sem falar que a população está envelhecendo, a medida em que se envelhece os gastos com saúde tornam-se mais caros. Precisará de uma saúde ainda mais especializada.
Em relação ao tipo de financiamento já existente, ou seja, em como é destinado os recurso para saúde funciona da seguinte forma: cerca de dois terços do orçamento federal para a saúde é composto de transferências destinadas a estados e municípios. Menos recurso federal significa maior exigência sobre essas outras esferas de governo, que também estão em situação financeira frágil. Por lei, os municípios brasileiros deveriam destinar, no mínimo, 15% de suas receitas para a Saúde. Em média,as cidades aplicam 24%. Se aumentarem esse valor, correrão o risco de comprometer os orçamentos municipais.
Com orçamentos apertados, os municípios brasileiros terão de escolher entre tratar doentes ou investir na prevenção de enfermidades, função da chamada atenção básica. É um dilema que a maioria deles já enfrenta. E a tradição brasileira dá precedência ao tratamento: “As secretarias de Saúde não têm saída. Elas têm de atender primeiro os casos graves e os casos urgentes”, dizNelson Rodrigues dos Santos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas. “Eles vivem esse drama porque sabem que, quanto menos resolverem os problemas da atenção básica, mais casos graves e urgentes surgirão.”
Desse modo, é perceptível que a PEC é dura com gastos primários, mas não com gastos financeiros. Aquilo que o Brasil acrescer em termos de receita terá que ser gasto obrigatoriamente com gastos financeiros. Valendo lembrar que em termos de século XXI e Constituição de 88 qual o papel do Estado? Promover o equilíbrio nas condições sociais e promover o desenvolvimento? Ou única e exclusivamente ajustar a situação financeira? Ao que parece a Constituição deixa bem claro a inviolabilidade de direitos como à vida, segurança e outros direitos e princípios fundamentais que não podem ser tratados como segundo plano. Não se podem tratar os gastos primários como um gasto qualquer.
Por um outro lado para que essa crise seja reparada alguma reforma precisa ser feita. Algumas mudanças são inevitáveis e necessárias. Em qualquer dos cenários, com ou sem a aprovação da PEC 241, evitar que se escolha entre tratar e prevenir exigirá que os parlamentares, responsáveis pela elaboração do Orçamento, tomem decisões difíceis, mas necessárias – escolham tirar recursos de certos setores, para priorizar o investimento em áreas essenciais, como Saúde e Educação – sabendo que contam com recursos limitados: seja por força da lei ou das circunstâncias. E vai exigir que os cidadãos, que os elegeram, trabalhem como fiscais capazes de dizer quais as necessidades prioritárias para o país.
Por Sara Letícia
Graduanda em Direito na Universidade Estadual do Maranhão.