Suévylla Byanca Amorim Pereira
RESUMO
O presente trabalho aborda estudos e pesquisas referentes à proteção do direito à saúde como direito fundamental, sua base norteadora do direito à vida como prisma do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como sua evolução histórica elencado nos textos das Constituições Federais brasileiras até adquirir a roupagem atual. Ressalta-se que apesar de sua característica basilar e indispensável à vida, ainda é cercado de diversos entraves no tocante à sua efetivação enquanto direito de caráter universal a ser prestado à sociedade através do Estado, mostrando que o caminho para uma prestação efetiva e razoável é longo. E por fim, traz à tona a explanação acerca da importância do papel desempenhado pelo Poder Público como órgão incumbido de executar o referido dever do direito à saúde e assegurar sua correta proteção. A abordagem foi feita basicamente por meio de pesquisa bibliográfica e documental, com a utilização do método dedutivo e procedimento técnico de análise textual, temática e interpretativa, além da análise de conteúdo das leis existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chaves: Direito à saúde. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Poder Público.
I. INTRODUÇÃO
É indiscutível a essencialidade que o direito à saúde ostenta como premissa fundamental na vida dos indivíduos. Desse modo, de forma concatenada, é possível observar, consequentemente, a desenvoltura dos demais direitos, pois liga-se a aspectos essenciais, tais como bem-estar e dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), sob a qual visa a garantia da vida digna e com qualidade. Uma vez que, não há como discutir proteção à saúde se ausente as premissas de dignidade ao ser humano.
Contudo, nos últimos anos, diversos estudos e pesquisas nessa seara, apontam para alguns entraves no que diz respeito à sua concretude de sua efetivação, onde, apesar de ter previsão constitucional e competência comum dos entes: “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (art. 23, inciso II da CF/88), há empecilhos vinculados à escassez de recurso e a escolha de prioridade por parte dos poder público, a serem combatidos como forma de assegurar o justo, igualitário e universal acesso a esse direito através da regulamentação, fiscalização e controle das ações e dos serviços públicos de saúde de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro vigente.
Entretanto, nos dias atuais, ante toda a gama de direitos previstos, ainda que com diversos percalços, os cidadãos – em parte – passam a ter consciência de seus direitos e suas garantias, o que possibilita-os buscar a tutela jurisdicional mediante propositura de ações para ver atendida suas necessidades de saúde.
Dessa maneira, objetiva-se, em primeiro momento, analisar as peculiaridades do direito, traçando toda sua evolução histórica e constitucional até adquirir a característica de direto fundamental, evidencia-se as prerrogativas, fazendo paralelo ao princípio da Reserva do Possível e dos direitos humanos frente aos direitos básicos.
Para tal, examina-se os conceitos e suas especificidades como caráter positivado atribuído aos textos constitucionais, e, sobretudo, pela Constituição Federal de 1988 como pioneira a estruturar e dar contornos à saúde pública e privada no Brasil, adentrando-se nas funções atribuídas ao Poder Público como garantidor da ordem social, elencando tal direito no rol de direitos sociais, art. 6º, caput e nos artigos 196 a 200, onde ao tratar da Seguridade Social, destinou uma seção à saúde. Nessa senda, é traçada a relação entre o direito à saúde, a obrigação de prestação do Estado e as inferências jurisdicionais diante da escassez de recursos e da (im)possibilidade de atendimento universal.
II. ANÁLISE HISTÓRICA DIREITO À SAÚDE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
O caminho constitucional percorrido pela saúde nos moldes de direito fundamental foi longo. Tendo em vista que, o reconhecimento enquanto categoria de direito subjetivo público, tendo o sujeito como detento do direito e o Estado enquanto garantidor, foi estatuído apenas no seio da Constituição de 1988, onde houve a inserção de forma inovadora e inaugural no rol dos direitos sociais. (SILVA, 2016, p. 06)
Importante destacar que, a distinção da forma de como o direito era tratado nos textos constitucionais anteriores corroborava de maneira direta com a “violação’ ao princípio da igualdade, uma vez que havia restrição, e um “descaso”, pois, somente os trabalhadores que contribuíam com a Previdência Social teriam direito ao acesso à saúde pública.
Nesse prisma, cumpre a análise detalhada do texto esculpido em cada constituição até o desvencilhar do panorama atual. Nessa senda, inicia-se pelos dispositivos oriundos do século XIX, especificamente pela Constituição Imperial de 1824, a qual não trazia previsão do direito à saúde, apenas conferia a garantia dos socorros públicos, conforme art. 179, XXXI):
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
XXXI. A Constituição tambem garante os socorros publicos.
No campo de avanço dos textos, a Constituição de 1891, por sua vez, não trouxe menção aos “socorros públicos”, já elencando partindo de uma outra vertente. No seu art. 72, caput, apresentou de forma indireta proteção aos direitos concernentes à “segurança individual”: “Art.72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade (…)”.
Dentro da linha cronológica dos textos constitucionais é dado um destaque para a Constituição de 1934, a qual no tocante ao eixo das competências criou normas programáticas e atribui competência concorrente à União e aos Estados para cuidarem da saúde e da assistência públicas, além de ampliar o rol dos direitos individuais e políticos, garantindo também assistência médica e sanitária aos trabalhadores e gestantes:
Art 10 – Compete concorrentemente à União e aos Estados:
II – cuidar da saúde e assistência públicas;
Art 121 – A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País.
§ 1º – A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:
h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte;
Assim, nota-se que, de certo modo, em comparação com os textos anteriores, houve um avanço significativo no tratamento dado ao direito à saúde.
A Constituição de 1937, por sua vez, reafirmou a proteção à saúde dos trabalhadores. Todavia, no que diz respeito à competência legislativa referente à matéria, acabou por restringir a atribuição apenas à União, contudo, trouxe hipóteses de delegação para os Estados:
Art 16 – Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias:
XXVII – normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança.
Art 17 – Nas matérias de competência exclusiva da União, a lei poderá delegar aos Estados a faculdade de legislar, seja para regular a matéria, seja para suprir as lacunas da legislação federal, quando se trate de questão que interesse, de maneira predominante, a um ou alguns Estados. Nesse caso, a lei votada pela Assembléia estadual só entrará em vigor mediante aprovação do Governo federal.
Art 18 – Independentemente de autorização, os Estados podem legislar, no caso de haver lei federal sobre a matéria, para suprir-lhes as deficiências ou atender às peculiaridades locais, desde que não dispensem ou diminuam es exigências da lei federal, ou, em não havendo lei federal e até que esta regule, sobre os seguintes assuntos:
c) assistência pública, obras de higiene popular, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais.
Dentro da análise atinente ao campo da Constituição de 1946, constata-se que o texto percorreu um viés intermediário entre as duas últimas constituições, a saber a de 1934 e a 1937, permanecendo inalterada a competência privativa da União para legislar sobre saúde. Cumpre destacar a positivação do direito à vida com expressa menção do direito fundamental, sendo, pois, uma inovação legal no âmbito jurídico, como observa-se:
Art 5º – Compete à União:
XV – legislar sobre:
b) normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; e de regime penitenciário;
Art 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes (…)
De igual modo, percebe-se os textos constitucionais posteriores ao de 1934 mantiveram a competência privativa da União para legislar sobre saúde, aqui menciona a Constituição de 1967, que além de manter a previsão, assegurou no seu bojo assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva aos trabalhadores e suas famílias:
Art 8º – Compete à União:
XIV – estabelecer planos nacionais de educação e de saúde;
Art 158 – A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à melhoria, de sua condição social:
XV – assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva;
Nesse escopo, tendo compreendido a trajetória de tal direito no bojo dos textos constitucionais, não se pode deixar de enfatizar a importância do texto constitucional vigente e que possibilitou muitos avanços. A Constituição de 1988 inovou de uma forma geral em diversos aspectos, apesar da ênfase no direito à saúde, o qual adquiriu uma roupagem significativa, sendo inserido no rol dos direitos fundamentais da pessoa humana, recebendo o status de cláusula pétrea.
Para além da previsão expressa no art. 6º, caput da CF/88 que, de maneira explícita menciona os direitos sociais incluindo o direto à saúde, há menção à competência concorrente entre os entes para legislar, fiscalizar e controlar ações e serviço de saúde (art. 24, XII, CF/88), bem como competência comum para implementar ações que visem sua prestação e proteção, conforme art. 23, II, CF/88):
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;
No âmbito de todo o arcabouço de previsões, é necessário destacar os artigos 194 a 198, inserido no Título VII – Da ordem social, Capítulo II – Da seguridade social, onde é possível estabelecer ligação direta entre o direito à saúde e a seguridade, tal direito objeto a ser amparado pelo eixo da seguridade. Sendo permeado pela universalidade, igualdade e assegurado a proteção sob a baliza do Estado, constatando a grande relevância de suas ações e serviços relacionados à saúde.
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
VI – diversidade da base de financiamento, identificando-se, em rubricas contábeis específicas para cada área, as receitas e as despesas vinculadas a ações de saúde, previdência e assistência social, preservado o caráter contributivo da previdência social;
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (Vide ADPF 672)
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.
Nessa senda, não se pode olvidar da carga valorativa e indispensável do direito à saúde dentro dos contornos que permeiam o ser humano, tendo em vista que, por ser um desdobramento do princípio à vida, está conectado diretamente a todo e qualquer direito constitucionalmente previsto, em razão do seu caráter indispensável, uma vez que sem saúde não se pode exercer qualquer outro direito. (SILVA, 2016, p. 09).
III. ATRIBUIÇÃO DE DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Não obstante, conforme tecido, a análise do desenvolvimento histórico do direito à saúde perpassa por vários marcos históricos até atingir a concepção formal e material tal como se tem hoje, disciplinada pela Constituição Federal de 1998. Sendo, pois, fruto de uma importante conquista no que se refere aos valores atribuídos ao ser humano na era do Estado Democrático e Social de Direto. (FIGUEIREDO, 2010, p.221)
Como esculpido na Carta Magna, esses direitos estão inseridos no campo das segundas gerações – mas que assim, não deixam de estar diretamente relacionados aos da primeira geração – a qual impõe uma prestação positiva ao Estado com o intuito de desenvolver algo no campo social em favor do Homem. Nessa linha, a proteção do ser humano, dotada de valores éticos e morais como o direito à vida, princípio da igualdade, entre outros, tornou-se objeto e objetivo do constitucionalismo, percorrendo, respectivamente, os direitos do homem, os direitos humanos e, por sua vez, os direitos fundamentais. (BULOS, 2014, p.528).
O direito essencial à saúde é concebido por Cury (2005, p. 30), como o principal direito fundamental social encontrado na Lei Maior brasileira, sendo, ainda, estritamente ligado ao princípio basilar do ordenamento jurídico nacional, ou seja, fundamentado na dignidade da pessoa humana. Portanto, a noção de direito à saúde, que passou a ser objeto da OMS, remonta à qualidade de vida, de modo que prima pelo bem-estar físico, psíquico e social, não restringindo-se apenas à ausência de doenças.
Destarte, integrando um direito de cunho coletivo, seu primeiro conceito teórico-formal surge em 1946 com a Organização Mundial da Saúde (OMS), onde tal propositura foi elevada à categoria de um dos direitos fundamentais de todo ser humano, independentemente de variáveis sociais, econômicas, políticas e religiosas. Nesta perspectiva, Figueiredo (2007, p. 77) salienta, que: “A noção de que a saúde constitui um direito humano e fundamental, passível de proteção e tutela pelo Estado, é resultado de uma longa evolução na concepção não apenas do direito, mas da própria ideia do que seja a saúde”.
Desse modo, o direito à saúde que se insere no Título – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, resta erguido à posição de legítimo direito fundamental – além de ter seção exclusiva ao tema no título que trata da ordem social – diferenciando-se do texto provindo da Carta de 1934 e das seguintes, anteriores à de 1988, que o positivava apenas no Título da Ordem Econômica e Social. (SIMON, 2015, p. 03).
Em virtude disso, nas lições de José Afonso da Silva (2014, p. 311), são suscitadas questões que fazem refletir sobre a importância dada a esse direito apenas no poder constituinte originário, onde salienta que:
“É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem, haja vista que já vinha sendo tratada em constituições outrora, porém não com as mesmas características, onde restringiam-se apenas a atribuir/fixar competências legislativas e administrativas”.
Nesse diapasão, tendo feito um aparato do direito à saúde como essencial e a garantia de tutela pelo poder público, devidamente positivado, cumpre analisar um dos principais entraves atinentes a esse direito, que reside na eficácia da efetivação dessa tutela, bem como os mecanismos constitucionais que devem ser utilizados para assegurar tal garantia.
IV. EFICIÊNCIA DO DIREITO À SAÚDE
Convém explicar que a democracia é proporcional à eficiência dos direitos fundamentais, visto que, sem eficiência e efetividade destes, não há democracia. E sob a ótica do Estado Democrático de Direito, a saúde se insere dentro do direito público subjetivo exigível contra o Estado, pois seu exercício e sua efetividade dependem de das ações desencadeadas pelo poder público, que é considerada pela ótica doutrinária como sendo de eficácia plena e aplicabilidade imediata, conforme os ensinamentos de Herbeth Figueiredo:
No sistema sanitário brasileiro, a saúde é um direito fundamental formal por configurar-se em um bem jurídico tutelado através de um conjunto de regras e princípios destinados a darem eficácia imediata e auto aplicabilidade ao art. 196 da Constituição-dirigente, conforme o estatuído no art. 5°, § 1°, da CF/88 (Figueiredo, 2006, p. 20).
Para melhor compreensão acerca da efetividade e aplicabilidade dos direitos sociais, José Afonso da Silva (2004) pontifica que as normas constitucionais se fragmentam em três tipos: normas constitucionais de eficácia plena; de eficácia contida; e de eficácia limitada. Entende-se por normas de eficácia imediata aquelas que são concebidas pela doutrina clássica como normas constitucionais de eficácia plena, ou seja, independem de complementação de uma norma infraconstitucional pelo fato de possuírem todos os elementos necessários para a sua aplicação direta. Neste aspecto pauta-se o direito à saúde, o qual se estabelece no texto constitucional tanto no sentido formal quanto no material.
A autoaplicabilidade do direito à saúde não se confere apenas no texto constitucional, visto que se encontra o mesmo tipo de efetividade na legislação infraconstitucional, mais especificamente, na Lei Orgânica da Saúde (LOS) n° 8080/90, a qual consagra a saúde como um direito fundamental, além de atribuir ao Estado a função de promover parâmetros necessários para a vida saudável das pessoas. Assim dispõe o art. 2º, §1º dessa lei especial:
Art. 2º, § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
Ainda neste ângulo jurídico, no qual sugere efetividade do direito à saúde, Robert Alexy (1993) sustenta a tese de que a garantia de um padrão mínimo de segurança social ou de direitos sociais mínimos oriundos de prestações sociais só pode ser reconhecido enquanto houver uma ponderação de valores e bens face à limitação dos recursos disponíveis relativos à necessidade social. E, por esse lado, no âmbito jurídico, há uma grande resistência na efetividade do cumprimento desse direito por encontrar-se inteiramente ligado às reservas públicas. (DUARTE JÚNIOR, 2014, p.192)
Por conta disso, a efetivação desse direito liga-se diretamente à disponibilidade de orçamento, que requer recursos financeiros. E, não obstante, de acordo com a peculiaridade do tema, é válido mencionar os princípios que merecem destaque ao tratar da questão: como a cláusula de reserva financeiramente possível ou princípio da reserva do possível, a qual expõe a ideia que os recursos financeiros não são ilimitados e devem ser efetivados pelo poder público, na medida em que isso seja possível; e o princípio do mínimo existencial sob o qual sustenta-se na ideia de que haveria um núcleo básico constando direitos essenciais vinculados à dignidade da pessoa humana, devendo estes serem sempre tutelados. (SIMON, 2015, p. 05)
Diante disso, a tutela desses direitos fundamentais e a dos direitos humanos, são perceptíveis diante de uma obrigação. Nessa seara, Braga Filho (2002, p.66, apud Duarte Júnior, 2014, p.191) explana que o direito fundamental “é o mínimo necessário para a existência da vida humana”, asseverando que este mínimo deve atender à ideia de uma vida digna, que traz em seu bojo os direitos humanos, atrelado assim, ao princípio da dignidade humana.
E, no que tange à interpretação da obrigação do poder público, esta deve ser vista, não como um conjunto de boas intenções desempenhadas pela figura estatal, mas sim como obrigações a serem cumpridas, visto que se encontram impostas pela Constituição Federal de 1988.
Todavia, ainda que com previsão legal e uma gama de normas dotadas de eficácia jurídica, há alguns limites que servem de barreira na efetivação, pois, não direitos absolutos. Nesse esteio, a dificuldade reside na real aplicação do direito à saúde sem ultrapassar os limites que lhes são impostos, aqui cumpre mencionar a reserva do possível e o princípio da proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade nesse contexto vem com a finalidade de estabelecer critérios de aferição da validade de limitações dos direitos fundamentais. Há algumas dimensões que sustentam esse princípio como: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. (SILVA, 2017, p. 25) A proporcionalidade busca soluções adequadas e pertinentes a atingir os fins almejados. Esse mesmo posicionamento deve amparar as decisões judiciais.
O princípio da reserva do possível visa justamente regular a possibilidade e a extensão da atuação estatal no âmbito da efetivação dos direitos fundamentais, condicionando a sua prestação à existência de recurso públicos disponíveis. (SILVA, 2017, p. 26) De pronto, já se observa que há condicionantes no seu exercício.
Entretanto, frisa-se que não há limitação da atuação estatal na efetivação dos direitos sociais em razão da previsão orçamentária. Uma vez que, a necessidade de previsão orçamentária para realização de despesas públicas condiciona apenas o executivo, não afetando diretamente o judiciário, tendo em vista que sua atuação na concretude de direito, baliza-se pela ponderação de valores, haja vista que o judiciário não está impedido de ordenar o Poder Público de executar determina despesa para se fazer valer de um direito constitucional, dada a sua natureza axiológica em relação à regra orçamentária.
V. INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO PARA GARANTIR O DIREITO À SAÚDE
Como já mencionado, a efetivação do direito à saúde atendendo aos preceitos da universalidade é um dos desafios enfrentados, devido a finitude dos recursos, devendo na maioria das vezes, recorrer à inserção do Poder Judiciário, com o objetivo a garantia de tornar isonômico aquilo que é desigual, fazendo-se valer de ferramentas quando o garantidor da saúde do cidadão brasileiro não cumprir seu papel. E, devido a premissa da dignidade da pessoa humana, são criadas Políticas Públicas capazes de levar aos indivíduos o direito à uma vida digna, não de forma individual, mas atendendo à toda uma coletividade. (SIMON, 2015, p.06)
Há diversos posicionamentos no que diz respeito às questões envolvendo a judicialização da saúde. Partindo de uma visão negativa acerca da intervenção judiciária, tem-se aspectos voltado à desorganização do SUS com a interferência na ordem de atendimento, influência nas finanças, desvio de recurso, possíveis decisões jurídicas equivocadas e a “fragilização” da isonomia. Por outro lado, à luz da vertente positiva, tem-se o fomento de políticas públicas, o direito à saúde como pauta política e judiciária nacional e a contribuição para o fomento e aprimoramento legislativo de políticas públicas. (NETO, 2014, p. 25)
Na maioria das vezes, por haver essa atuação estatal, interpreta-se como um verdadeiro poder individual. Porém, essa visão está completamente distorcida, não obstante seu preceito encontra-se estatuído no Capítulo II da CF/88 que trata dos direitos coletivos, uma vez que o que se pretende, de fato é buscar-se um modelo de concretude de tal direito dentro das relações sociais, discutindo as formas de acesso que permitem o tratamento universal e igualitário para que se possa usufruir da saúde pública existente. (SIMON, 2015, p. 06)
Nessa senda, o Estado, tendo a característica de garantidor, não pode omitir-se em assegurar a efetivação constitucional desse acesso, que, em algumas situações, devido ao grau de amplitude e complexidade, deve ser combatido através da via judicial. Para tal pleito, Silva (2014, p.312) discorre que a concepção de direito à saúde como prestações exigível do Estado, decorre através de um especial direito subjetivo e tem um conteúdo de vertente dupla, capaz de estabelecer mecanismos e ações a serem impetradas, pois, por um lado, o não cumprimento das tarefas estatais com fins satisfativos dá cabimento à ação de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, a e 103, §2) e, por outro lado, a falta de regulamentação para com a concretização do atendimento, pode acarretar na impetração dos remédios constitucionais.
VI. CONCLUSÃO
Na linha de compreensão do tratamento dado à saúde, em termos constitucionais, tem-se a sua constante variação ao longo dos anos. O cenário anterior à Constituição de 1988 restringia o acesso à saúde pelas entidades públicas, a qual boa parte ficava dependente da iniciativa privada. A atuação estatal era executada de maneira simplória, uma vez que tal direito era restrito apenas aos trabalhadores que contribuíssem para a Previdência Social.
No cenário jurídico brasileiro, o direito à saúde, como analisado no ordenamento atual, é de natureza universal e integral, considerado de cunho fundamental, tendo enfrentado diversas barreiras até adquirir o status de direito público em favor de qualquer cidadão em face ao Estado. Não obstante, ainda que assegurado como direito, os entraves no campo da sua efetivação são constantes, haja vista a finitude dos recursos e a própria atuação do Poder Público. Pois, o Estado tenta utilizar uma certa limitação fática, pautada na falta de recursos financeiros e para o seu não cumprimento, fazendo valer-se desse viés argumentativo veiculado ao princípio da Reserva do Possível. Entretanto, insta salientar que a proteção a um mínimo social vinculada ao direito à saúde não pode ficar na dependência da aplicação dos orçamentos públicos, ainda que sejam finitos.
Em suma, observa-se que há uma necessidade de se explanar a respeito do argumento levantado sobre a falta de recursos para atender determinada demanda, pois a negativa de cumprimento, resulta no flagrante violação aos direitos essenciais e fundamentais para a existência do indivíduo. E, dessa forma, a competência para atuar e legislar, em alguns casos mostra-se inoperante e o que era para ser solucionado através do órgão incumbido para tal, acaba por seguir outros trilhos, acionando o Poder Judiciário como meio de alcançar o seu cumprimento real, ocasionando assim, em inúmeros processos judiciais referentes à temática.
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