Valores e Princípios Constitucionais: A Dignidade Humana
Atahualpa Fernandez
Manuella Maria FernandezÆ
O ordenamento jurídico abarca uma multiplicidade de subsistemas legais que recebem da Constituição os critérios de validade jurídica, já não mais determinada exclusivamente pela legitimação do orgão produtor da norma e em função da correção no procedimento, senão que integrada necessariamente pela adequação material, a legitimidade substancial e a correção moral das normas que compõem esses subsistemas com o texto constitucional.
A consideração da Constituição como norma jurídica dotada de força normativa – norma invocável em juízo pelos cidadãos e não somente organizadora dos poderes superiores do Estado – fez com que, de pronto, o quadro dos direitos fundamentais, dos princípios e valores formulados pela norma constitucional deixassem de ser meros enunciados finalistas (que somente e quando os assumisse o legislador passariam a ter alguma eficácia e na medida em que o próprio legislador livremente assim o quisesse) e passassem a ser diretamente operativos, sem necessidade da intermediação legal e ainda por encima da própria intermediação, quando existente. Por outro lado, a superioridade normativa da Constituição, com todo o seu sistema de princípios e de valores, marca os limites e as condições de possibilidade da interpretação de todas as demais normas e estabelece para todos os níveis da ordem jurídica a obrigação de interpretar “de acordo” com as regras, princípios e valores que estabelece – os quais, diga-se de passo, costumam ser invocados com uma alta carga emotiva e cuja interpretação apresenta sempre uma maior complexidade , dá lugar a maiores disputas, que a das demais normas (entendida a expressão em seu sentido mais amplo) do resto do ordenamento jurídico.
A distinção entre as espécies de norma jurídica (gênero) já está deveras consolidada. E embora não se trate de oferecer aqui uma teoria acerca das regras, valores e princípios jurídicos, bastará por notar que, segundo Alexy (1997), os princípios são mandatos de otimização, que pertencem ao âmbito deontológico, enquanto que os valores estão incluídos em uma dimensão axiológica: o que no modelo dos valores é o melhor, no modelo dos princípios, é o devido. Para o que aquí nos interessa, os princípios, à diferança das regras, apenas nos proporcionam critérios para tomar posição ante situações concretas que a priori aparecem indeterminadas. Os princípios geram atitudes favoráveis ou contrárias, de adesão e apoio ou de discenso e repulsa a tudo o que pode estar implicado em sua salvaguarda em cada caso concreto.
E uma vez que carecem de “suposto de fato”, aos princípios, em maior grau do que sucede com as regras, somente se lhes pode atribuir algum significado operativo fazendo-lhes “reacionar” ante algum caso concreto; ou seja, de forma muito mais acentuada que as regras, seu significado não pode determinar-se em abstrato, senão somente nos casos concretos, e somente nos casos concretos se pode entender seu alcance (Zagrebelsky, 1995). Em resumo, aos “princípios” falta a determinabilidade dos casos de aplicação e apresentam uma dimensão que as “regras” não têm: uma dimensão de peso ou importância, que se revela a propósito do seu modo específico de colisão. Ademais disso, os “princípios” não são hierarquizáveis em abstrato, conseguindo cada um a prevalência face ao outro à luz das razões determinantes do caso concreto ou de determinado círculo (hermenêutico) problemático.
Pois bem, é precisamente com normas dessa natureza ( com princípios) que se inaugura a Constituição da República. Mais que uma mera justaposição de normas, trata-se de um conjunto normativo dotado, ainda que tendencialmente, de unidade e coerência entre seus preceitos ao responder a determinados valores e princípios comuns ordenadores ( basicamente os discriminados nos artigos 1º. ao 5º do texto constitucional) que, por sua vez, constituem as normas basilares de sua parte dogmática ou substantiva e expressam a ordem valorativa que há de presidir todo o ordenamento jurídico na organização, manutenção e controle dos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constróem sistemas aprovados de interação e estrutura social.
Há, assim, uma evidente conexão sistemática entre princípios e normas constitucionais e infra-constitucionais, pois não parece razoável conceber a dignidade humana sem liberdade, justiça, igualdade e pluralismo jurídico, e estes valores, por sua vez, seriam indignos se não redundassem em favor da dignidade humana. Isto quer dizer que os princípios fundantes da ordem constitucional proclamam um valor humano na medida em que concreta os valores que devem presidir a interpretação e aplicação de todas as demais normas contidas no ordenamento jurídico, inclusive as próprias normas constitucionais.
Estes critérios inspiradores do sistema jurídico constituem a base inteira e o fundamento do próprio ordenamento, o qual há de prestar a estes princípios seu sentido próprio em todo e qualquer processo de sua realização prático-concreta. Já não se trata de proclamações enfáticas e retóricas reduzidas a princípios programáticos sem nenhum valor normativo, senão de autênticas normas jurídicas, que representam os ideais de uma comunidade e que não esgotam sua virtualidade em seu estrito conteúdo normativo: constituem parâmetros condicionantes e vinculantes para a interpretação e aplicação do direito e, ao mesmo tempo, um limite para o próprio ordenamento jurídico.
E como princípio, também o conceito de dignidade humana não se esgota em uma mera funcionalidade constitucional, porque a idéia da livre constituição e pleno desenvolvimento do indivíduo sob o manto de instituições justas (igualitária e fraterna) caracteriza-se por ser um elemento axiológico objetivo de caráter indisponível que, junto com os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o respeito à lei e aos direitos dos demais, configuram o fundamento último da ordem política e da paz social. A dignidade da pessoa humana não é, portanto, mais uma idéia valorativa ( o melhor) dentro do esquema constitucional, senão que expressa um dos fundamentos da ordem estabelecida. A sua colocação na Constituição como princípio normativo fundante (o devido) dota-o de um significado especialmente relevante: como princípio constitucional fundamental, inviolável e indisponível e, como tal, como critério axiológico, normativo , vinculante e irrenunciável da práxis jurídico-interpretativa.
Mas, em que consiste este princípio fundamental ? Qual o fundamento que subjaz à idéia da dignidade humana? Qual a relação entre dignidade, liberdade e autonomia? Por que se insiste em situar o problema da dignidade em função do homem singular, encerrado em sua esfera individual e exclusivamente moral? Ou, já que estamos, continua sendo razoável conceber um conceito de dignidade humana, que pretenda ser digno de crédito na atualidade, desvinculado ou que não esteja sustentado em um modelo darwiniano sensato acerca da naturaleza humana?
Não parece que seja assim.A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma – portanto, digna -, é coisa muito mais complexa, processual e de grau que a simples e óbvia assunção do princípio da dignidade enquanto valor constitucional fundante. E como a caracterização da dignidade humana ao largo do tempo é uma empresa filosófica particularmente árdua , que já derramou rios de tinta durante os últimos anos – e seguramente nos levaria a derrocar outro tanto- , limitaremo-nos a dizer aquí que temos bons motivos para supor no essencial correta a afirmação de que não podemos inferir nada acerca da dignidade humana a partir de nossos meros ideais políticos ou de vagas elocubrações acadêmico- filosóficas. A investigação da dignidade está estritamente vinculada com a noção de natureza humana, a qual, por sua vez, é uma questão tão fática como a medida do perihélio de Mercúrio.
Trata-se de uma postura que tende a conceber a dignidade como um epifenômeno da própria natureza humana, a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido às caracterizações deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva ( relacional, co-existencial ) da dignidade, fundada na natureza humana, é de suma trancendência para calibrar o sentido e o alcance atual dos princípios constitucionais, dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu fundamento primeiro. De fato, nunca é demasiado insistir que resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da liberdade.
E este é, precisamente, o ponto central a partir do qual se deve estabelecer o debate entre a tendência naturalista da melhor ciência contemporânea e a tradição dos filósofos e teóricos do direito que, não obstante, insistem em sustentar que é possível entender a dignidade humana sem qualquer consideração mais séria à parte que corresponde à natureza humana e, dessa forma, em não admitir a continuidade entre o reino animal e o mundo humano, entre o universo da natureza e o da cultura, isto é, essa parte de animalidade que há em nós e que toda uma tradição religiosa e filosófica pretendeu (e continua pretendendo) ocultar. Em resumo, deixando de falar do que realmente importa e que tanto gosta de ocultar-se sob o manto perverso de eufemismos e abstrações. O real é sempre mais importante que os devaneios, as idiossincrasias e as ficções filosóficas : somos o resultado de uma mescla entre o biológico (a soma de mutações, recombinações e seleção natural pelo que o Homo sapiens se distingue das espécies de que descende) e o cultural (pelo que se acrescenta outros traços diferentes aos puramente biológicos: regras, moral, linguagem, cultura, civilização…). E nenhuma referência à dignidade humana pode silenciar estas raízes.
O problema da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito (ainda predominantes) é o de que trabalham muitas vezes como se os humanos só tivessem cultura, uma variedade significativa e nenhuma história evolutiva. No âmbito do jurídico quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se desconsidera – a devida atenção à evolução da natureza humana e à estrutura e ao funcionamento material do cérebro humano como fonte dos instintos e predisposições que permitem criar e explorar os vínculos sociais relacionais que parecem estar arraigados na complexa estrutura da mente humana (Fiske, 1993) e que, desde uma perspectiva intersubjetiva da dignidade, a caracterizam e condicionam a sua constituição. Não há que estranhar-se, pois, que o processo de caracterização da dignidade humana seja um dos mais problemáticos e contestados publicamente de todas as empresas jusfilosóficas. E uma vez que tanto o direito como a ética carecem das bases de conhecimento verificável da natureza humana necessários para obter uma definição mais precisa de dignidade e juízos justos baseados nelas, necessitamos, para compor seu conteúdo, tratar de descobrir como podemos ou devemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana.
Aliás, neste particular, um dos problemas mais comuns é o de insistir e tentar assegurar uma concepção de dignidade humana que reside, em última instância, em “algo” determinado (ou vinculado de forma absoluta) por uma indefinida e indecifrável “natureza” considerada sempre igual, por um sistema universal e imutável de princípios e valores ou, com mais atualidade, pela expressão da juridicidade oferecida por um corpo de normas constitucionais. E não somente isso. Os operadores do direito, quando abordam o estudo da dignidade humana, têm o costume de falar de diversos tipos de explicações: sociológicas, antropológicas, normativas, axiológicas e outras, apropriadas às perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento, quer dizer, sem sequer considerarem a (real) possibilidade de que exista somente uma classe de explicação para a compreensão da dignidade na sua projeção normativa, fática e axiológica.
Mas tal explicação unitária de base existe. Desde o ponto de vista teórico é possível imaginar uma explicação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade unindo os fatos aparentemente inconciliáveis do social e do natural, sempre e quando se parta de um cenário mais credível da emergência da dignidade humana devidamente sustentada em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana – que não é uma construção social pós-moderna, senão uma construção natural muito antiga que recapitula a história filogenética da linhagem humana.
E não se trata, depois de tudo, de um problema de pouca importância, de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição de uma das duas formas de abordar o problema da dignidade humana supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a direção e o sentido do discurso prático ético-jurídico-político[1].
Me explico: os teóricos do direito parecem estar, na atualidade, submetidos a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista, anti-científica e anti-racionalista, e uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada sobretudo por um positivismo, um sociologismo, um jusnaturalismo substancial ontológico e/ou pelo modismo das recentes teorias dos direitos humanos e fundamentais: enquanto os pós-modernos fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas (“tudo é texto” e truanices parecidas), os outros, os “científicos”, os “filósofos dos direitos humanos” fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério, senão carentes da menor autoconsciência respeito da realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria com traços de seriedade e coerência acerca da dignidade humana. Enfim, por uma completa falta de precisão relativa a adesão de seus respectivos discursos à natureza humana.
É nessa paisagem cognitivamente hostil à realidade que os juristas fiéis à “pureza do direito” parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu sistema de crenças, um tipo de resistência construída durante anos de adoutrinamento universitário. Não há dúvida de que a sabedoria herdada é assombrosa, fascinante e inteligente. Mas está baseada principalmente em suposições, como sabemos pela informação científica e histórica atual. Ao longo da história humana, vários foram os autores que elaboraram teorias morais e jurídicas, interpretações e histórias sobre o que significa ser humano, sobre o que significa existir e sobre como devemos viver. Tudo isso forma parte de nosso rico passado.
Não obstante, a crua e dura realidade é que essas idéias férteis, metafóricas e atrativas – perfeitas para conseguir livros de “grandes sucessos” – são meros relatos, se bem alguns mais demonstráveis que outros. O que realmente resulta insólito é que se siga questionando a existência da natureza humana, quando os novos dados proporcionam bases científicas e históricas para fundamentar novos modos de entender a natureza e nosso passado evolutivo. Sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades físicas e manifestações inatas e inevitáveis em muitas e diversas situações. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. E hoje sabemos que somos o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Somos animais éticos. O resto das histórias acerca de nossas origens, de nossa natureza e de nossa dignidade não são mais que isso: histórias que consolam, enganam e até motivam, mas histórias ao fim e ao cabo.
Essa a razão pela qual defendemos a idéia de que já é chegada a hora de voltar a definir o que é um ser humano, de recuperar e redefinir em que consiste a dignidade humana ou simplesmente de aceitar que os humanos são muito mais do que um mero produto de fatores sócio-culturais. E ainda que muitas perguntas sigam sem resposta – e dada a resistência a aceitar que as respostas a certas perguntas de uma disciplina possam vir de outros campos de investigação -, podemos pelo menos aduzir novas razões para sustentar ou refutar explicações acerca da dignidade humana que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito. O que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de perceber. Talvez por isso não resulte ser uma tarefa fácil transcender as fronteiras e as limitações dos “dogmas do momento” aos quais, de uma maneira ou outra, continuamos atrapados. Afinal, as idéias que soem prosperar são as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.
O problema é que vivemos sempre graças a uma atividade fisiológica que podemos dirigir mediante conteúdos que vão mais além da fisiologia ou da cultura. Pertencemos a dois mundos: o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem. Isso somos. A natureza do homem e, conseqüentemente, todas as suas ações, sejam ou não conscientes, é o resultado combinado de uma mescla complicadíssima de genes e neurônios e de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa igualmente complicada vida sócio-cultural. Uma complexa interação de dois processos diferentes: um processo biológico de hominização e um processo histórico de humanização[2].
A existência secular e o intercâmbio recíproco com nossos congêneres produzem indivíduos. É com o outro e por meio do outro que o indivíduo se constitui: o reconhecimento do outro implica o reconhecimento do “eu”. A capacidade para autointerpretar-nos está direta e indissociavelmente vinculada à aquisição da capacidade para interpretar os outros, para “ler” suas mentes, para entendê-los, e para entender-nos a nós mesmos, como seres intencionais: é inata a nossa necessidade de atrair o olhar e o reconhecimento do outro que, nessa condição, já não ocupa uma posição comparável à nossa, senão contígua e complementária. Marcados por uma incompletude constitutiva da espécie, devemos ao outro nossa própria existência, individualidade e dignidade. Em verdade, é somente no trato de uns com outros quando temos que pensar, sentir, recordar, calcular e sopesar as coisas, ou seja, em que a percepção de ser digno de algo flui com maior naturalidade.
A própria idéia de liberdade – condicio sine qua non para a constituição da dignidade humana[3] – não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do homem e da qual brota a possibilidade de obrar livremente e de forma digna, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo. Daí a razão pela qual E. Levinas – para quem a ética é a philosophia prima – adverte para o fato de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro[4]. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. E desde o momento em que o outro aparece como outro livre e autônomo, nasce também a dimensão ético-jurídica da dignidade, essencialmente co-existencial.
Por certo que se não nos criamos completamente a nós mesmos, tem que haver algo em nós do qual não somos causa. Mas o problema central com respeito a nosso interesse pela liberdade e dignidade humana não é se os acontecimentos em nossa vida volitiva estão determinados causalmente por condições externas a nós. O que realmente conta, no concernente à liberdade e dignidade, não é a independência causal. É a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios. (Frankfurt, 2004). O sujeito autônomo, entanto que sujeito livre, não se encontra subposto nem superposto ao – nem por debaixo nem por encima do – sujeito de carne e osso ( genes, mente e cérebro) que somos cada um e nem requer, para salvar a liberdade e a dignidade, estritamente um “agente moral autônomo” como alternativa a uma explicação causal em termos biológicos/evolutivos. Ser fiel à natureza não é, portanto, recusar em seu nome a liberdade ( elemento constitutivo da dignidade e que é um efeito da natureza); é, ao contrário, prolongar esse gesto, indissociavelmente natural e histórico, pelo qual nossa espécie, biológica e social, se ergue contra a natureza que a produz e a contém.
Em resumo, a natureza humana se plasma em um cérebro plástico e complexo, que coordena e controla a conduta do indivíduo em função da informação que recebe do entorno, orientando-se tanto por seus próprios sentimentos e preferências congênitas como pelas normas culturais adquiridas. Todos estes fatores restringem, mas não pré-fixam em todos os seus detalhes, o que vamos fazer ou a forma como vamos comportar-nos; tão pouco determinam nossa capacidade para resitir à interferência arbitrária dos demais em nossos planos de vida. Nisso consiste nossa liberdade e que a evolução por seleção natural também pode explicar[5]. Longe de ser um princípio separado ou oposto à nossa natureza, é precisamente nossa natureza a que determina a construção de um cérebro plástico geneticamente programado para a liberdade (Mosterín, 2006). Somos livres, nesse sentido, não apesar da natureza, mas graças a ela.
Desde esta perspectiva, o interesse humano pela verdadeira dignidade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da liberdade humana, em um convite a viver humanamente nossa existência a partir do reconhecimento do “outro” como um legítimo outro na realização do ser social, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo. Um convite de tal magnitude requer seu espaço não somente em nossa vida pessoal como também em nossa cotidiana vida comunitária, em nosso Lebensraum, porque supõe um compromisso com o justo em uma sociedade democrática: o compromisso de ter no respeito pela dignidade do “outro” o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais com o outro e no qual sua presença é (e deve ser) sempre livre e igual. Com efeito, a responsabilidade para com o próximo, que emana de sua mera existencia, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, da liberdade e da dignidade humana.
Mas há algo mais: a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo. Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada.
De todos modos, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, provoca secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica. De fato, resulta inclusive muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele ( Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade). O fundamento do direito, já vimos, não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.
Dito de outro modo, a idéia de dignidade humana adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). Somente por esta via será possível compreender o princípio da dignidade humana sem desligá-lo de suas origens e, sobretudo, sem hipostasiá-lo como um elemento essencial de nossa descontinuidade com o mundo animal. As descobertas provenientes de outras áreas do conhecimento oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da dignidade humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual modelo constitucional.
Ademais, uma idéia de dignidade fundada em uma teoria robusta da natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito alicerçado e sustentado, entre outras coisas, numa moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos nós mesmos quem outorgamos direitos morais a todo o homem, com vistas a viabilizar a constituição, coesão e manutenção dos vínculos sociais relacionais para os quais estamos desenhados a estabelecer[6] e, assim, a vida social mesma. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não foram outorgados se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos, inclusive os fundamentais, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados em função de premissas religiosas e/ou metafísicas senão por nós mesmos ao conceber-nos baixo uma moral de respeito recíproco e universal.
Não há, pois, direito que não seja outorgado para resolver os problemas adaptativos a ele relacionados. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo – que implica ter em conta as necessidades, desejos e direitos dos demais – destina-se a prover as bases mínimas de uma vida boa e plena, que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, precisamente, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar sob a assunção implícita de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.
Por conseguinte, parece ser que o melhor caminho para explicar, entender e aplicar o princípio da dignidade é o da compreensão da natureza humana, ou seja, da idéia do homem em sua tríplice configuração: a) o homem em sua existência individual, separada e autônoma (e, como tal, princípio do direito) ; b) como fim de seu mundo (e, portanto, também do direito); e c) como sujeito de vínculos sociais relacionais elementares através dos quais constrói, a partir das reações do outro, os estilos aprovados de uma vida sócio-comunitária digna de ser vivida em sua plenitude (ou seja, como titular de direitos e deveres que projetam na coletividade a sua existência como cidadão).
Mas não apenas isso. O homem surge também como in-divíduo, como entidade autônoma e separada, como titular de direitos que habilitam publicamente sua existência – seguramente o aspecto mais significativo do momento atual de seu processo evolutivo –, e cujo sentido só é possível alcançar por meio da consideração de duas questões fundamentais: a) a primeira, que não se pode esperar explorar os caminhos da explicação social ou da avaliação jurídico-política do princípio da dignidade humana sem ter uma visão de conjunto das pessoas e da sociedade, isto é, sem ter um desenho indicativo da natureza dos indivíduos e das diferenças ( não indefinidas e ilimitadas, registre-se) que os estímulos provenientes da vida social provoca neles ; e b) a segunda, é que tampouco se pode ter uma visão global das pessoas e da sociedade se não adotamos um desenho da constituição cognitiva humana, um desenho do que é estar psicologicamente equipado como seres humanos.
Trata-se, simplesmente, de fomentar a virtude de compreender melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de estimular a elaboração de um desenho institucional e normativo que permita a cada um conviver com o outro de forma livre e digna: o modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo da dignidade humana, do homem como causa, princípio e fim do direito e, conseqüentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo.
Estabelecer conceitos e preceitos normativos que não têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso. É muito provável, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação acerca do princípio da dignidade humana que já se formularam ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação à realidade biológica que nos constitui, ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana. Nesse sentido, o certo é que, a menos que aceitemos que os seres humanos estão somente um pouco por debaixo dos anjos, um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana deve subjacer a qualquer teoria jurídica que, na atualidade, pretenda dispor de uma visão mais realista do lugar que ocupamos na natureza, empiricamente contrastada. Depois de tudo, a dignidade humana encontra-se entre os princípios mais poderosos estipulados pelo texto constitucional, e precisamos entendê-la melhor se quisermos tomar decisões jurídico-políticas bem informadas, coerentes e razoáveis.
E embora haja riscos e desconfortos envolvidos, nesse tema, devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância tradicional de investigar cientificamente determinados fenômenos éticos e jurídicos[7], de modo a compreender como e por que este princípio inspira tal devoção, e descobrir como deveríamos aperfeiçoá-lo a partir do estabelecimento de elos com a natureza humana. O objetivo, recorda Chomsky (2006), deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça; isto significa criar uma teoria social humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção humanista e firme da essência humana, ou da natureza humana, quer dizer, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade, a dignidade, a criatividade e outras características humanas fundamentais, e uma noção de estrutura social donde estas propriedades possam realizar-se e a vida humana adquira um sentido pleno[8].
Por outro lado, a promoção de uma cultura fundada na exaltação da dignidade humana e do respeito pelo próximo somente será possível com o apoio e o desenvolvimento de uma postura que permita – ademais de estar sustentada por uma concepção empiricamente contrastável de natureza humana e de situar no humano um valor incondicional- entender , justificar e lutar por uma cultura de liberdade, de igualdade e de fraterna solidariedade. Isto é, da necessidade não somente de lutar por nossos direitos , mas também de assumir responsavelmente nossos deveres , de respeitarmos (desinteressadamente) o próximo como um fim em si mesmo, de um ardente desejo de compreender e outorgar sentido ao sofrimento humano e de aspirar por uma efetiva e legítima realização da justiça ou, para dizer em termos mais modestos e realistas: de lutar contra toda e qualquer forma de injustiça.
Assim entendida, a primazia hermenêutica que joga o princípio da “dignidade humana” como critério fundante dos demais valores e princípios contidos na Constituição da República se converte desta maneira em garantia levantada pelo constituinte frente a um perigoso positivismo – com base no qual, diga-se de passo, o Poder Judiciário, maculado por um conservadorismo que ainda o impregna, por vezes é levado a elaborar decisões que implicam ( em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social ) no sacrificio de direitos de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres. Para evitá-lo, este sistema axiológico-normativo fundado na dignidade humana, impõe que as normas, tanto constitucionais como de outra ordem, sejam interpretadas de forma que não colisionem com os valores e princípios superiores, mas, pelo contrário, promovam sua efetiva realização.
E isto implica, em última instância, que se tome em consideração a iniludível circunstância de que a própria atividade jurídica se formula precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível ao operador jurídico representar o sentido e a função do direito como unidade de um contexto vital, ético e cultural. Esse contexto estabelece que os seres humanos vivem das representações e significados que são processados em suas estruturas cerebrais, desenhados para estabelecer determinados vínculos sociais relacionais dos quais emerge a idéia de dignidade humana.
Depois, não se trata somente de que a Constituição reconheça explicitamente a dignidade humana como princípio fundamental. Mais importante ainda é a circunstância de que, além desse simples reconhecimento, seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania e de metodologia jurídico-política essencialmente úteis para tomar o direito como um poderoso instrumento de construção social e para assimilar os câmbios formais e materiais no processo de tomada de decisões, ante a dinâmica fluída e contingente do entorno sócio-cultural em que se plasma a constituição psico-ético-histórica da dignidade humana. Desta maneira, cumpre também uma função evolutiva e dinâmica, permitindo assim a adaptação de seus preceitos à realidades sociais cambiantes.
Mas isso somente será possível se assumimos o compromisso de ligar de forma prioritária a concepção de dignidade humana às virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. A história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente, do princípio de igualdade[9]. As três virtudes que configuram a noção de justiça somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinadas a garantir o respeito incondicional à dignidade humana.
Estamos firmemente convencidos de que o êxito ou o fracasso da norma constitucional depende em grande medida do modo como as instituições que governam a vida pública sejam capazes de incorporar esta perspectiva da dignidade humana em leis, estratégias (sociais, econômicas e políticas) e decisões jurídicas dirigidas a formular um desenho institucional e normativo que, evitando ou reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum. O mesmo é dizer que não se pode falar em dignidade da pessoa humana se isso não se materializa em suas próprias condições de vida, com liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade fraterna e solidária, no contexto de um conjunto normativo prenhado de valores e princípios, instituído ao redor do imperativo ético que assegura, de forma prioritária, combater o sofrimento e a miséria humana e deixar a vida, na medida do possível, fluir livre e igualitariamente, ou seja, dignamente[10].
Mas se nada disso for suficiente, talvez não seja nenhum exagero recordar que há poucas coisas mais perigosas que a certeza jurídica endogâmica.
* Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Colaborador e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha ( Evolución y Cognición Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do Ministério Público da União/Brasil.
** Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB ; Research Scholar en el Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.
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Æ Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2007; Atahualpa Fernandez, Argumentação jurídica e hermenêutica, Campinas: Ed. Impactus, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.
[1] Segundo Pinker (2002), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana – segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causantes da conduta- é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remitimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente , aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Por exemplo, se tomo minha filha como uma pessoa “corrupta” e “caída”, incapaz de ter bons desejos e de se comportar de acordo com estes, seguramente serei um pai aberrantemente desconfiado, ferinamente vigilante e desnaturadamente repressor ( e com este caráter desenharei as micronormas que regerão este tipo de relação familiar); ao contrário, se parto da premissa de que minha filha é capaz de eleger seus desejos, de aspirar por si mesma ao bem, de se automodelar e de se comportar segundo essa aspiração, seguramente serei um pai muito mais confiante, tolerante e infinitamente menos vigilante (e as micronormas que regerão essa relação terão um caráter de todo distinto das anteriores). Quando passamos de fatos específicos de indivíduos a generalizações acerca de grupos de indivíduos, a assunção de uma das premissas acima referidas passa a fazer uma abissal diferença quando do desenho do conjunto normativo que regulará as relações jurídicas (nas quais subjazem os vínculos sociais relacionais) entabuladas pelo homem no percurso de sua existência. (Atahualpa Fernandez, 2007).
[2] Esses dois processos existem evidentemente. Não obstante, compartimos da idéia de que a hominização é primeira: a humanização, sem ser um simples resultado (os indivíduos também têm seu papel, com o que isso supõe de contingência e criatividade), depende dela. De início, e embora o aparecimento da humanidade à vista e o conhecimento da história tenha devolvido às trevas a animalidade que lhe precedeu, é afinal a natureza humana unificada e fundamentada na herança o que faz a diferença. Dito de outro modo, cada indivíduo humano tem sua própria natureza individual, que é uma variedade particular da natureza humana. A natureza individual, determinada pelo próprio genoma, inclui tanto as características standard da espécie humana como os traços individuais próprios, induzidos pelos alelos que hão caído em sorte ao indivíduo. Essa natureza está constituída pelos traços permanentes do indivíduo e não muda ao longo de sua vida. De todos modos, não há que confundir a natureza individual com o indivíduo mesmo. O organismo individual é o fenótipo concreto, resultante tanto de sua natureza individual, inscrita em seu genoma, como de seu desenvolvimento embrionário, de sua educação, de sua cultura, de suas interações sociais, das enfermidades e experiências que teve e, em definitivo, da história completa de sua vida. O que somos em um momento dado não somente depende de nossa natureza, senão também de nossa biografia até esse momento. Ademais, o cérebro conserva sempre certa plasticidade, e suas experiências influem em sua conformação: por exemplo, cada vez que aprendemos algo, nosso cérebro muda. Estas diferenças são a base da personalidade. Sem embargo, ainda que tenhamos certa margem de manobra para inventar e construir nossa vida em sentido biográfico, nossa natureza nos vem imposta, dada, herdada de nossos ancestrais. Daí que resulta impossível falar de dignidade, liberdade ou autonomia com um mínimo de rigor sem aludir à natureza humana (Mosterín,2006).
[3] Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual, digna, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena) existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social tudo é possível : o melhor – se houver – e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do “indivíduo” para todos os efeitos do trâmite social, sua desumanização total por via de redução do sujeito a mero instrumentum vocale , segundo a célebre formulação do direito romano ( ou “instrumento animado” , para usar a expressão de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si mesmo – aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e “moderno”, mas que está repetindo o mesmo que sustentaram todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como instrumentos ( “vocais” ou “animados”). Pois bem, o liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém o impeça – falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar. O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário. No mesmo sentido, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual uma das partes se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão direitos constitutivos do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que habilitam publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres e autônomos. Certamente que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos molestam as interferências como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar nos exemplos aqui mencionados. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa – para seguirmos no exemplo dado- , não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como “não interferência arbitrária”, ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida, garanta ao mesmo plena capacidade para resistir à interferência arbitrária não somente do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais. Esta restrição legal ( como não interferência arbitrária e própria da liberdade republicana) característica de nossas democracias é um dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e vilipendiadas de forma dissimulada) à “desconstrução” que o liberalismo operou na modernidade.
[4] E não é apenas o fato de que “todos nós precisarmos” do outro; trabalhos recentes mostram que precisamos interagir com os outros; precisamos dar e receber; precisamos pertencer ( Baumeister e Leary, 1995; Brown et. al., 2003; Habermas, 2006 e 1996). Sêneca tinha razão : “Ninguém que vê apenas a si mesmo e transforma tudo em uma questão de sua própria utilidade é capaz de viver feliz”. John Donne também tinha razão: precisamos dos outros para nos completar. Somos uma espécie ultra-social, cheia de emoções firmemente sintonizadas para amar, oferecer amizade, ajudar, compartilhar e entrelaçar nossas vidas à de outros, ainda que o apego e os relacionamentos possam provocar-nos dor. Como disse um personagem de Sartre: “O inferno são os outros”. Mas o paraíso também. (Haidt, 2006; Atahualpa Fernandez, 2007). Enfim, nossos corpos, nosso cérebro e nossas mentes não estão desenhados para viver em ausência de outros : a atividade psicológica e neuronal humana não ocorre de forma isolada, senão que está intimamente conectada a – e se vê afetada por – os demais seres humanos .
[5] “Uma descrição naturalista de como ocorreu nossa evolução e de nossas mentes parece ameaçar o conceito tradicional de liberdade, e o medo ante esta perspectiva acabou por distorcionar a investigação científica e filosófica nesta matéria. Alguns dos que deram à voz de alarma ante os perigos dos novos descobrimentos sobre nós mesmos apresentaram uma imagem muito falseada dos mesmos. Uma severa reflexão sobre as implicações de nosso novo conhecimento sobre nossas origens servirá de fundamento para uma doutrina mais sólida e prudente sobre a liberdade que os mitos aos que está chamada a substituir” (Dennett,2003). Afinal, de que liberdade dispõe uma criança violada e golpeada que por sua vez será verdugo no dia de amanhã? De que liberdade desfruta um indivíduo que ganha um salário mínimo mensal para sobreviver?Todo o paradoxo da liberdade do homem está aí.
[6] Para uma maior exploração do significado empírico de que a arquiterura cognitiva de nossas mentes seja constitutivamente social, isto é, de que nossos vínculos sociais relacionais parecem estar arraigados na complexa estrutura da mente humana, cfr. Fiske, 1993 e Atahualpa Fernandez, 2007. Já para uma nálise acerca dos respectivos aspectos positivos e negativos dos quatro modelos de vínculos sociais relacionais propostos por Fiske, sua iniludível vinculação com o problema da relação jurídica e, consequentemente, com a função do direito nesse contexto, cfr. Atahualpa Fernandez, 2006 e 2007.
[7] Aos que crêem que não existem princípios objetivos do direito costumam acusar de “cientificismo” a quem os buscam. Mas seguindo a aguda observação de Dennett (1995), cabe sustentar que não é “cientificismo” pretender conceder objetividade e precisão ao conhecimento, do mesmo modo que não é adoração da história conceber que Napoleão durante um tempo dominou a França e que o Holocausto sucedeu realmente; aqueles que temem os fatos tratarão sempre de desacreditar aos que os encontram. Do diálogo, pois, entre ciência e humanidades, deverá provir um entendimento mais profundo acerca de quem somos, de nossas intuições e emoções morais, de nossas condutas e dos artefatos sócio-culturais que criamos. (Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez, 2008).
[8] De fato, continua Chomsky, a concepção do entendimento humano como uma tabula rasa é um poderoso instrumento em mãos do totalitarismo: se as pessoas são em realidade seres maleáveis, infinitamente adaptáveis e acomodados , sem nenhuma essencial natureza psicológica, então, por que não hão de ser controlados e coagidos por aqueles que se arrogam autoridade, conhecimentos especiais e uma clarividência única sobre o que mais convém aos que são menos esclarecidos? Felizmente, ficou provado que existe, nas palavras de Lionel Trilling, “um resíduo de qualidade humana que escapa do controle cultural”.
[9] Desde suas primeiras formulações a justiça sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evolucionando ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da Ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça. De fato, e neste particular sentido, tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do comportamento humano que é maximizar o próprio benefício, é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade): alguns estudos indicaram que, ademais de sentir-se desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer dizer, igualitária (Clayton e Lerner, 1995). Mas, como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma característica “material”; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética – que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades – enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens sempre reagirá ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito particularmente, ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições (Dworkin,1989).
[10] Tentando definir o que significa “ser de esquerda”, assim se manifesta Peter Singer (1999): “Tomar consciência da imensa quantidade de dor e sofrimento que há em nosso universo, assim como do desejo de fazer algo para reduzí-la (…) isso, creio eu, consiste a esquerda (…) – ou seja – é essencial para qualquer esquerda autêntica. Se nos encolhemos de ombros ante o sofrimento evitável dos débeis e dos pobres, dos que estão sendo explorados e despojados, ou dos que simplesmente não têm nada para levar uma vida decente, não formamos parte da esquerda. Se dizemos que o mundo sempre foi e será assim, pelo que não se pode fazer nada, então não formamos parte da esquerda. A esquerda (ao seguir o imperativo de reduzir o sofrimento) quer fazer algo por cambiar esta situação”. Note-se que o abandono desta atitude (deveras republicana), novamente, aparece vinculado – segundo Sandel (1982) – ao afã liberal de defesa da neutralidade e da liberdade negativa: o Estado neutral-liberal não aceita por sob escrutínio o valor dos distintos interesses em jogo. Todos eles, em princípio, contam como interesses aceitáveis sujeitos ao comércio político. Autores como Cass Sunstein, contudo, mostram a possibilidade certa de estender, de fato, firmes pontes entre o liberalismo igualitário e o republicanismo. Sunstein, por exemplo, defende uma versão liberal do republicanismo, que caracteriza com quatro notas centrais: a importância dada à deliberação política, a igualdade dos atores políticos (que incorpora “um desejo de eliminar as agudas disparidades que existem para a participação política ou a influência entre indivíduos e grupos sociais”), a noção de acordo coletivo com ideal regulativo e um compromisso com a noção de cidadania, expressado na ampla garantia de direitos de participação política (Atahualpa Fernandez, 2007). Para uma brillante análise acerca do sorfimento humano, ver Ehrman, 2008.