Direito Constitucional

Lei Maria da Penha: liberdade, igualdade e discriminação positiva

Lei Maria da Penha: liberdade, igualdade e discriminação positiva

 

 

Atahualpa Fernandez Bisneto *

 Atahualpa Fernandez **

 

 

“Todos somos iguales, porque todos tenemos sufrimiento y porque todos deseamos dejar de tenerlo. Lo que hay que hacer es difundir  la  justicia, pero suprimir tanto como se pueda  la injusticia”.

                                                                                              Guen Kelsang Rinden

 

A Lei nº 11.340/2006 foi promulgada com o claro objetivo de criar mecanismos para “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Temos entendido que a denominada Lei Maria da Penha continua gerando discussões acerca da legitimidade, validade e alcance de seu respectivo conteúdo normativo, tendo em vista o princípio constitucional que assegura igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres.

 

De um modo geral, parecem ser duas as posições adotadas com relação a essa questão: de um lado, os defensores da tese de que normas destinadas à proteção da mulher foram superadas pelo preceito constitucional que assegura tratamento igualitário entre homens e mulheres, eliminando qualquer tipo de postura discriminatória com base em gênero; de outro lado, e em sentido contrário, os que defendem que a isonomia não é um princípio absoluto e não pode ser aferida sem a concorrência dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (por exemplo, de que determinadas normas não cuidariam propriamente da questão de gênero, mas de fatores biossociais que levam à criação de vários dispositivos de proteção da mulher).

 

Pois bem, esse tipo de discussão põe em evidência um dos mais delicados temas da teoria jurídica contemporânea: a relação entre o direito e a moral e o problema da concorrência e/ou colisão entre princípios jurídicos consagrados na Constituição da República. No caso, uma “contradição” entre o princípio da igualdade, o princípio da liberdade e o princípio que determina ao Estado promover as condições para que a liberdade e a igualdade de todo cidadão sejam reais e efetivas, removendo os obstáculos que impedem ou dificultam sua plenitude[1].

 

Para entender-nos, os princípios são exigências de tipo moral que estabelecem direito e/ou deveres e que, à diferença das leis (que determinam pautas relativamente específicas de conduta), sua estrutura não contém uma previsão de fatos e uma conseqüência jurídica bem definida. Tal característica não somente torna impossível qualquer aplicação isolada de cada um dos princípios consagrados na Constituição, senão que supõe por sua vez uma tarefa de ponderação e harmonização com outros princípios, igualmente válidos e relevantes, capazes de representar em um determinado momento histórico uma fonte de exigências de diferente signo às do princípio eventualmente posto em questão. Dito de outro modo, os princípios têm uma dimensão de peso ou de importância: quando se utilizam para legislar ou resolver uma determinada situação ou conflito social, devem ser ponderados entre si e a solução, sempre condicionada às circunstâncias historicamente concretas, será aquela derivada do peso relativo atribuído a cada um dos princípios concorrentes.

 

Na hipótese a que nos referimos, a concorrência (ou “colisão”) parece ocorrer entre o princípio da igualdade (da não discriminação entre homens e mulheres) e o princípio da liberdade (da mulher), sendo a garantia deste último buscada por meio de mecanismos de discriminação positiva. E os problemas apontados pelos doutrinadores que estimam que a Lei 11.340/2006 é inconstitucional ou alargam seu alcance para além da “proteção da mulher” não resultam, se bem observado, de todo convincente. Para os propósitos deste artigo, nos limitaremos a analisar apenas dois desses problemas.

 

O primeiro diz respeito a algumas críticas formuladas à mencionada lei, no sentido de que há discriminação porque não se contemplam os casos de violência das mulheres contra os homens. Sejamos sérios. Por certo que existe, mas se nos atemos aos estudos relativos à violência contra os homens, a maioria das agressões é exercida por outros homens e sucedem no âmbito público e em especial em instituições ou em lugares de marcada hierarquia (de dominação) ou sujeitos a parâmetros de acentuadas diferenças ou conflitos intergrupais. Os estudos relativos à violência contra os homens são escassos e os modelos que se aplicam às mulheres não se podem aplicar aos homens porque a natureza da violência é outra[2].

 

Claro que arbitrar diferentes tipos e medidas penais em função do sexo do agressor pode parecer à primeira vista uma clara transgressão do princípio da igualdade e da não discriminação. Contudo, o ordenamento jurídico está repleto de exemplos que mostram que determinadas agressões em contextos concretos têm certos agravantes. Não é o mesmo planejar um crime com um mês de antecedência que assassinar a alguém em um estado de alienação mental transitória, como tampouco é o mesmo que um grupo de adolescentes brancos, heterossexuais e varões assassine a um jovem homossexual que havia sido previamente objeto de insultos e ameaças racistas e homofóbicas por parte de grupos locais. Por que não tratamos de igual maneira todas as situações? Porque entendemos que a natureza e as motivações que existem detrás de cada um desses atos são especialmente perniciosas e perigosas para a sociedade, e porque refletem uma ideologia racista ou padrões de abusos de autoridade. Ora, a finalidade da lei a que nos referimos é precisamente a de criar mecanismos para coibir e prevenir práticas que, em última instância, resultam dos valores machistas y patriarcais que ainda desvalorizam as mulheres em nossa sociedade. E isso já é um grande e significativo avanço.

 

A segunda dificuldade apontada diz respeito à presumível “colisão” entre princípios constitucionais gerada pela Lei 11.340/2006; no caso, o princípio da igualdade e o princípio da liberdade (tal como concebemos a idéia de liberdade[3]). O problema, contudo, é que ambos os princípios se caracterizam por ser o fundamento de toda ordem política democrática. Os dois são conceitos fundamentais para qualquer proposta consistente acerca de questões jurídicas e morais. Assim que parece não haver lugar legítimo para uma contraposição liberdade/igualdade, pois, como se verá em seguida, não somente a igualdade é entendida como reciprocidade na liberdade senão que é em si mesma a garantia da liberdade plena. A igualdade forma parte do desenho institucional de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que os fatos sociais assim o exijam, as desigualdades reais e materiais entre os membros de uma comunidade ética. E é do Estado a obrigação, o dever (moral e jurídico), de assegurar a liberdade na igualdade.

 

Nesse sentido, o argumento de que a Lei nº 11.340/2006 – destinada à proteção da mulher – viola o princípio da igualdade é tão demagogicamente falso como certo é o fato de que a desigualdade real implica, ela mesma, uma falta de liberdade, tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa desigualdade. Porque é a falta de igualdade real a que leva à falta de autonomia e liberdade (de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir ) daquele que vive com a permissão do outro e dos que ainda não se encontram no “melhor dos mundos possíveis”. E no que se refere à discriminação com base no gênero e à violência no âmbito dessas tão íntimas e pessoais relações familiares, são as mulheres quem ainda vêm padecendo de um profundo, crônico e perversamente dissimulado problema de falta de igualdade e de liberdade, com a conseqüente perda de sua autonomia[4].

 

Vejamos em que consiste o princípio da igualdade.

 

 

A igualdade como “núcleo duro” da justiça

                                    

Poucas noções são tão complexas e despertam tantas paixões, consomem tantas energias, provocam tantas controvérsias, e têm tanto impacto em tudo o que os seres humanos valoram como a idéia de justiça. Sócrates, através de Platão, sustentava que a justiça é uma coisa mais preciosa que o ouro e Aristóteles, citando a Eurípides, afirmava que nem a estrela vespertina nem a matutina são tão maravilhosas como a justiça.

 

Mas o que é a justiça e como realizá-la?  Uma virtude das pessoas?  A primeira das qualidades das instituições políticas e sociais?  O meio entre dois extremos?  Uma ideologia da classe dominante?  O resultado de um procedimento eqüitativo? O que surge de um processo histórico no qual não se violam direitos fundamentais?  Um ideal irracional? Estas perguntas e muitas respostas extremamente divergentes entre si foram dadas por filósofos sérios ao largo de uma extensa história do pensamento dedicado a desvelar esta intuitiva – e igualmente intencional, emotiva e significativa – concepção. A preocupação se centra, basicamente, em analisar um valor que é empregado em muitos tipos de discursos, articulando concepções que permitam justificar ou impugnar os juízos que se formulam nos argumentos que empregam e/ou manipulam o conceito em questão. Invoca-se a justiça nos jogos de crianças e de adultos, apela-se a ela também em contextos conjugais, familiares, laborais, religiosos, enfim, em quase todas as vicissitudes de nosso entorno, essencialmente relacional.

 

Por certo que ela ocupa um lugar central no discurso moral e é absolutamente distintiva do atual discurso jurídico, em especial quando se trata de julgar o grau de valor com que uma determinada norma pode ser posta em prática e na qual cabe efetuar com ela câmbios para o bem dos homens. E no conjunto dos discursos em que se emitem juízos acerca da justiça a idéia de igualdade parece ocupar sempre uma posição de destaque. Com efeito, desde suas primeiras formulações, a justiça sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evoluindo ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da Ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça (que ainda hoje representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo básico da justiça[5].

 

Mas a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais, isto é, a situação de fato não é a igualdade: a evolução nos desenhou desiguais, como mostra às claras o próprio fato do nascimento, que oferece não somente a diversidade de cunho social, senão também a desigualdade em talentos, em condições físicas, em saúde, sexo, etc. Dito de modo mais simples, embora compartamos determinados traços comuns e universais enquanto membros da mesma espécie, dispomos de características individuais ( por exemplo, de padrões de circuitos neuronais, de conexões nervosas ou sinápticas) que nos fazem únicos. O princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se, portanto, em nenhuma característica “material”; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma intuição ou aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade).

 

A justificação de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar biologicamente. Em realidade, parece razoável sustentar como correta a hipótese de que o “princípio da igualdade” expresse uma intuição ou emoção moral arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental: o mais canalha dos homens – inclusive o que agride a uma mulher – sempre reagirá negativamente ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa.

 

A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética ou neuronal – que inclui a distribuição aleatória de talentos e de habilidades – enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo duro da justiça, não somente não o é da totalidade da justiça, senão que as reais e materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades nas capacidades e características pessoais, assim como as decorrentes da má sorte bruta. A distribuição das dotações sociais e genéticas – como não deixou de advertir John Rawls – correspondem a um ativo comum da sociedade, ainda que somente seja porque é a sociedade quem as premia e valora ou porque somente em seu seio podem ser exercidas.

 

Por conseguinte, justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas sim, e muito particularmente, ausência de  exploração (ou interferência arbitrária) de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições ( R. Dworkin).

 

Como recorda Peter Singer, a existência de profundas diferenças entre os seres humanos deve levar a certas diferenças nos direitos a serem atribuídos a uns e outros. Quando se invoca um princípio de equidade (presente na maioria das teorias contemporâneas da justiça) não se está em absoluto pretendendo que deva conduzir a uma identidade absoluta de direitos: da mesma maneira que é absurdo conceder a liberdade de aborto a um homem, o é a pretensão de dar a liberdade a uma mulher para contrair matrimônio, por exemplo, com um porco. É a “consideração” a que deve ser mantida por igual; a consideração que merecem diferentes seres conduz a distintos direitos.

 

E porque a crença de que os sexos são idênticos acaba por conduzir a certo número de discursos de duvidoso tino e efetividade, desprezando-se o princípio de que a “dignidade” não pode ignorar o fato óbvio da especificidade da condição feminina[6], tem sentido ligar de forma prioritária, no caso da Lei 11.340/2006, a concepção de justiça à idéia de igualdade material. A história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessa intuição ou emoção moral inata que parece compartimos com outros primatas não hominídeos[7]. Esta intuição moral ou virtude ilustrada que configura o núcleo duro de justiça, somada às virtudes ilustradas da liberdade e fraternidade, somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito incondicional à dignidade humana.

 

 

A liberdade como condição da dignidade humana

 

Parece razoável começar a tratar o tema da dignidade humana lembrando que a Constituição não é uma mera justaposição de normas, senão um conjunto normativo dotado, ainda que tendencialmente, de unidade e coerência entre seus preceitos ao responder a determinados valores e princípios comuns ordenadores – basicamente os discriminados nos artigos 1º. ao 5º do texto constitucional.

 

Com normas dessa natureza (com princípios e valores) se inaugura a Constituição da República: constituem as normas basilares da parte dogmática ou substantiva da Constituição e expressam a ordem valorativa que há de presidir o ordenamento jurídico brasileiro na organização dos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de interação e estrutura social.

 

Há, assim, uma evidente conexão sistemática entre princípios e normas (constitucionais e infraconstitucionais), pois não parece razoável conceber a dignidade humana sem liberdade e igualdade, e estes valores, por sua vez, seriam indignos ou vazios de conteúdo e sentido se não redundassem em favor da dignidade humana. Isto quer dizer que os princípios fundantes da ordem constitucional proclamam um valor humano na medida em que concreta os valores que devem presidir a criação, interpretação e aplicação de todas as demais normas contidas em nosso ordenamento, inclusive as próprias normas constitucionais.

 

Estes critérios inspiradores do sistema jurídico constituem a base inteira e o fundamento do próprio ordenamento, o qual há de prestar a estes princípios seu sentido próprio em todo e qualquer processo de sua criação legislativa e/ou judicial. Já não se trata de proclamações enfáticas e retóricas reduzidas a princípios programáticos sem nenhum valor normativo, senão de autênticas normas jurídicas, que representam os ideais de uma comunidade e que não esgotam sua virtualidade em seu estrito conteúdo normativo: constituem parâmetros vinculantes para a elaboração, interpretação e aplicação do direito e, ao mesmo tempo, um limite para o próprio ordenamento jurídico.

 

Nesse contexto, o conceito da dignidade humana não se esgota em uma mera funcionalidade constitucional porque a idéia da livre constituição e pleno desenvolvimento do indivíduo sob o manto de instituições justas (igualitária e fraterna) constitui, ademais, um elemento axiológico objetivo de caráter indisponível que, junto com os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o respeito à lei e aos direitos dos demais, configuram o fundamento último da ordem política e da paz social. A dignidade da pessoa humana não é, portanto, mais uma idéia valorativa dentro do esquema constitucional, senão que expressa um dos fundamentos da ordem estabelecida. A sua colocação na Constituição como princípio normativo fundante e prioritário dota-o de um significado especialmente relevante: como princípio constitucional fundamental, inviolável e indisponível e, como tal, como critério axiológico, normativo, vinculante e irrenunciável da práxis jurídica.

 

Mas em que consiste este princípio fundamental? Qual o fundamento que subjaz à idéia da dignidade humana? Qual a relação entre dignidade, liberdade e autonomia? Por que se insiste em situar o problema da dignidade em função do homem/mulher singular, encerrado em sua esfera individual e exclusivamente moral? Ou, já que estamos, continua sendo razoável conceber um conceito de dignidade humana, que pretenda ser digno de crédito na atualidade, desvinculado ou que não esteja sustentado em um modelo essencialmente relacional acerca da natureza humana?

 

Não parece que seja assim. A cristalização de uma existência individual, separada e autônoma – portanto, digna – é coisa muito mais complexa,  processual e de grau que a simples e óbvia assunção do princípio da dignidade como uma mera diretriz normativa. A caracterização da dignidade humana leva-nos a admitir que há boas razões para supor como correta a afirmação de que não podemos inferir nada acerca da dignidade humana a partir de enunciados meramente lógico-formais, filosóficos ou normativos. Hoje sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades e predisposições físicas e morais inatas. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, que homens e mulheres são distintos e que esse conjunto de traços conforma a condição humana. E hoje sabemos, para além de toda dúvida razoável, que somos o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, há modelado nossa espécie: somos uma espécie inerentemente ética e social.

 

Trata-se de uma postura que tende a conceber a dignidade como um epifenômeno da natureza humana[8], a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que havia servido às caracterizações deste valor para a construção do Estado liberal. Esta dimensão intersubjetiva (relacional, co-existencial) da dignidade é de suma transcendência para calibrar o sentido e o alcance atual dos princípios constitucionais, dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu fundamento primeiro[9]. É esse sentido relacional de dignidade humana o que deve estar vinculado a um direito destinado a favorecer a liberdade e a autonomia da pessoa. E não se trata de um problema de pouca importância, de um mero exercício mental para filósofos acadêmicos e juristas. A eleição do modo de abordar o problema da dignidade humana supõe  uma grande e importante diferença na forma em que vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a direção e o sentido de todo e qualquer discurso jurídico, moral e/ou político.

 

Ademais, uma idéia de dignidade fundada em uma teoria robusta da natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito sustentado, entre outras coisas, em uma moral de respeito mútuo, quer dizer, de que somos nós mesmos os que outorgamos direitos morais a todo ser humano. Não há, pois, direitos que não sejam outorgados para resolver problemas sociais relacionados. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo – que implica ter em conta as necessidades, desejos e crenças dos demais – tem por objeto garantir as condições mínimas de uma vida boa e plena, que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, precisamente, a dimensão intersubjetiva, relacional ou co-existencial da dignidade humana: atuar baixo o suposto implícito de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.

 

Portanto, o fundamento do direito não está na dignidade abstrata, senão na expressão social de nossa natureza, em nossa individualidade e autonomia, em nossas diferenças, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de relacionar-nos e de sofrer. Longe de ser um princípio puramente abstrato e contrário ou separado a nossa natureza, é esta, nossa natureza, a que dá sentido a idéia de dignidade humana e que deveria condicionar o processo político-legislativo de elaboração do desenho normativo e institucional de nossa sociedade.

 

E não somente isso: a própria idéia de liberdade – condicio sine qua non para a constituição da dignidade humana – não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do homem e da qual brota a possibilidade de obrar livremente e de forma digna, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo. Daí a razão pela qual E. Levinas adverte para o fato de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro[10]. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. E desde o momento em que o outro aparece como outro livre e autônomo, nasce também a dimensão ético-jurídica da dignidade, essencialmente co-existencial.

 

Desde esta perspectiva, o interesse humano pela verdadeira dignidade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da liberdade humana, em um convite a viver humanamente nossa existência a partir do reconhecimento do “outro” como um legítimo outro na realização do ser social, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo. Um convite de tal magnitude requer seu espaço não somente em nossa vida pessoal como também em nossa cotidiana vida comunitária (e familiar), em nosso Lebensraum, porque supõe um compromisso com o justo em uma sociedade democrática: o compromisso de ter no respeito pela dignidade do “outro” o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais com o outro e no qual sua presença é (e deve ser) sempre livre e igual. Com efeito, a responsabilidade para com o próximo, que emana de sua mera existência, é uma dimensão necessária para a autodeterminação da autonomia, da liberdade e da dignidade humana.

 

Assim que a promoção de uma cultura fundada na exaltação da dignidade humana e do respeito pelo próximo somente será possível com o apoio e o desenvolvimento de uma práxis que permita, ademais de situar no humano um valor incondicional, entender, justificar e lutar por uma cultura de liberdade, de igualdade material e de fraterna solidariedade.  Isto é, da necessidade não somente de lutar por nossos direitos, mas também de assumir responsavelmente nossos deveres, de respeitarmos (desinteressadamente) o próximo como um fim em si mesmo,  de um ardente desejo de compreender e outorgar sentido ao sofrimento humano e de aspirar por uma efetiva e legítima realização da justiça;  ou, para dizer em termos mais modestos e realistas: de lutar contra toda e qualquer  forma  de  injustiça.

 

Entendida assim, a primazia que joga a “dignidade humana” como critério fundante dos valores e princípios contidos na Constituição da República se converte desta maneira em garantia levantada pelo constituinte frente a um perigoso formalismo, como o da igualdade puramente formal. Para evitá-lo, este sistema axiológico-normativo fundado na dignidade humana, impõe que as normas, tanto constitucionais como de outra ordem, sejam criadas, interpretadas e aplicadas de forma que não colidam com os valores e princípios superiores, mas, pelo contrário, promovam sua efetiva realização.

 

Essa a razão pela qual a melhor doutrina constitucionalista se afirma no sentido de reconhecer o transcendental papel que está chamado a desempenhar, no contexto desse sistema de valores e princípios constitucionais, o princípio do respeito incondicional da dignidade humana. A tais princípios constitucionais se lhes reconhece um caráter normativo e vinculante, por meio dos quais se devem cimentar e promover o desenho de um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível com os traços característicos da natureza humanos e destinados à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

 

 Desta maneira, cumprem também uma função pragmática e dinâmica, permitindo assim a adaptação dos preceitos constitucionais às realidades sociais cambiantes e às características individuais concretas. Em outras palavras, não somente hão de ser considerados parâmetros de constitucionalidade do resto das normas do sistema jurídico, senão também – principalmente tendo em conta seu peculiar talante de modelo ético-político aberto – como meios aptos a aportar valores de cidadania essencialmente úteis para tomar o direito como um instrumento de construção social e, muito particularmente, para equilibrar os desajustes e as injustiças geradas pela dinâmica da desigualdade social.

 

E porque a desigualdade quebra a comunidade, rompe os laços de fraternidade e desata, de um lado, a cobiça de uns  poucos e, de outro, quando não a inveja e o ressentimento, sempre ao menos a frustração, e muitas, muitas vezes, a angústia e o desespero de  muitos, estamos  firmemente convencidos de que o êxito ou o fracasso da norma constitucional depende em grande medida do modo como as instituições que governam a vida pública sejam capazes de incorporar esta perspectiva da dignidade humana em leis, estratégias (sociais, econômicas e políticas) e decisões jurídicas dirigidas a formular um desenho institucional e normativo que, evitando ou reduzindo as diferenças humanas, permita a cada um conviver (a viver com o outro) na busca de uma humanidade comum. O mesmo é dizer que não se pode falar de dignidade da pessoa humana se isso não se materializa em suas próprias condições materiais de vida, com liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade fraterna e solidária, no contexto de um conjunto normativo abarrotado de valores e princípios que a asseguram de forma prioritária: combater as desigualdades reais e deixar a vida, na medida do possível, fluir livre e igualitariamente, ou seja, dignamente[11].

 

Isto implica, depois de tudo, a necessidade da adoção de uma série de medidas dirigidas a melhorar a qualidade de vida de certos grupos considerados desfavorecidos ou fragilizados com o objetivo de equiparar sua situação com a do resto da população não desfavorecida. Uma forma de discriminação positiva cuja finalidade seja a de tratar de diferente forma as distintas situações, em especial se a diferença implica condições sócio-econômicas, biológicas ou culturais desvantajosas; uma política  “inclusivista” de que todos os indivíduos têm de contar como um fim em si mesmo (e não como mero  instrumentum vocale) e que incorpora já uma sorte de compromisso igualitário. Significa dizer que a comunidade política é requerida não somente para  tratar os indivíduos como iguais, senão também para criar  as condições necessárias e as possibilidades reais para que essa igualdade material seja ( efetivamente) levada a cabo na “vida vivida”, no presente das coisas presentes, para usar a expressão de Agostinho de Hipona[12]. 

 

A Lei Maria da Penha é um claro exemplo desta política, já que ampara somente às mulheres que continuam “privadas de los medios indispensables para el ejercicio de las funciones fundamentales necesarias para una vida realmente humana, que están menos protegidas que los hombres y que son más vulnerables a la violencia física, a la violencia doméstica y a los abusos sexuales”.(M. Nussbaum).

 

 

Desigualdade e discriminação positiva

 

Portanto, parece ser que a solução aos “problemas” a que nos referíamos no início deste artigo (de discriminação e de aparente contradição entre princípios constitucionais) consiste em tratar de alcançar um estado de coisas em que o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a desigualdade material entre os indivíduos, isto é, de não se (re) produzir a desigualdade quando seja possível eliminá-la, e que aquela que seja inevitável se minimize e grave com moderação aos membros individuais da sociedade – no caso, às mulheres.

 

Porque nunca está demais repetir e insistir que falta de liberdade – de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir – é o que (ainda) sofrem muitas mulheres submetidas ao marido e todas aquelas desfavorecidas e discriminadas em grande parte de suas cotidianas relações de vida e que, ademais, ainda têm que suportar o estigma social da dependência de valores arcaicos, de crenças descaradamente misóginas e paroquianamente espúrias. Dito de outro modo, até que os “mais desiguais” não sejam liberados de sua miséria e sofrimento, todo e qualquer discurso acerca de cidadania, liberdade, igualdade e dignidade – enfim, sobre justiça – não passará de mera retórica dessorada e vazia de conteúdo.

 

Isto, por si só, já seria o suficiente para justificar um compromisso mais específico do Estado com relação aos interesses e liberdade desses membros menos favorecidos da sociedade – sem dúvida, o aspecto mais importante da eqüidade – e o rechaço espontâneo e reflexivo da igualdade meramente formal. Do contrário, a persistir as versões tendenciosas, vazias e fragmentadas do princípio da igualdade – cuja gênese e funcionamento cabem situar na história evolutiva própria de nossa espécie -, continuaremos imersos no escuro poço da ignorância humana: “ quando o dedo mostra a lua”, diz um conhecido provérbio, “o imbecil olha para o dedo”. No caso, olha para a “justiça”, em vez de olhar para o que a justiça designa e o que lhe constitui: a liberdade plena e a igualdade material; ou seja, ele se engana sobre a justiça, que o fascina, e desconhece o real e necessário: a dignidade da pessoa humana.

 

Mas se nada disso for suficiente, talvez não seja nenhum exagero recordar que há poucas coisas mais perigosas e passíveis de perversa manipulação que a “igualdade meramente formal”.

 

 

* Advogado (OAB/SP), Doutorando em Direito Público (Ciências Criminais)/Universitat de les Illes Balears/UIB, Doutorando em Evolución y Cognición Humana/UIB ; Research Scholar do Laboratório de Sistemática Humana/UIB.

 

** Pós-doutor em Teoria Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política/Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/ Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of Califórnia, Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público / UFPa.;Professor Titular/Unama (licenciado); Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana do Grupo EVOCOG/IFISC); Membro do MPU (aposentado); Advogado.

 

 

 

Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006; Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez: Neuroética, Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2007.

 

 



[1] A Lei Maria da Penha tem como fundamento expresso o art. 226, § 8º, da Constituição da República, segundo o qual “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

[2] Nas palavras Martha Nussbaum: “En gran parte del mundo las mujeres están privadas de los medios de sostén indispensables para el ejercicio de las funciones fundamentales necesarias para una vida realmente humana. Están menos alimentadas que los hombres, tienen menor acceso a la salud, son más vulnerables a la violencia física y a los abusos sexuales. Es mucho menos probable que sean escolarizadas, y es todavía menos probable que puedan tener una instrucción técnica o profesional. Si deciden entrar en el mundo del trabajo, deben afrontar obstáculos mayores, entre los que se cuentan la intimidación por parte de la familia o del cónyuge, la discriminación sexual en el momento de la admisión, el acoso sexual en el lugar de trabajo; todo esto, muy a menudo, sin la posibilidad de recurrir eficazmente a la ley. Las más veces, obstáculos de este tipo impiden a las mujeres participar efectivamente en la vida política. En muchos países, no gozan siquiera de plena igualdad ante la ley: no tienen los mismos derechos de propiedad que los hombres, los mismos derechos de estipular contratos, los mismos derechos de asociación, movimiento y libertad religiosa. Asfixiadas a menudo por la doble jornada de trabajo, que suma la fatiga del trabajo externo a la íntegra responsabilidad del trabajo doméstico y del cuidado de los niños, están privadas de la posibilidad de encontrar momentos de ocio en los que cultivar las facultades imaginativas y cognitivas”.

[3] Para começar, diremos que para ser plenamente indivíduo, para gozar de  plena existência individual, digna, separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a  (plena) existência  ab initium et ante saecula  de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a  (plena) existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a  (plena) institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social tudo é possível : o melhor – se houver – e, desde logo, o pior. Tão é tudo possível na vida social, que até é possível nela  a declaração de inexistência individual, o certificado de disfunção social de alguns humanos: a escravidão é a morte do  “indivíduo”  para todos os efeitos do trâmite social, sua  desumanização total por via de redução  do sujeito a mero  instrumentum vocale  , segundo a célebre formulação do direito romano ( ou  “instrumento animado” , para usar a expressão de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si mesmo – aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e  “moderno”, mas que está repetindo o mesmo que sustentaram  todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como instrumentos ( “vocais”  ou  “animados”). Pois bem, o liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém o impeça – falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar.  O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito primário. No mesmo sentido, seguramente não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato civil privado, livremente subscrito – coacti volunt –, por meio do qual  uma das partes  se vendesse a outra na qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto inalienáveis, como o direito a não ser “objeto” ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão  direitos  constitutivos  do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que  habilitam  publicamente a existência de in-divíduos dignos, separados, livres  e autônomos. Certamente  que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos  molestam  as interferências  como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringe em nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se pode constatar nos exemplos aqui mencionados e na própria Lei n. 11.340/2006. Sem inalienabilidade legal da própria pessoa – para seguirmos no exemplo dado- , não há liberdade, nem há dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como “não interferência arbitrária”, ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover a liberdade necessária para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida, garanta ao mesmo plena capacidade para resistir à interferência arbitrária não somente  do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais. Voltaremos a esta questão mais adiante.

[4] O que realmente conta, no que concerne à liberdade, é a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios ou impostos por outros (H. Frankfurt).

 

[5] Note-se, neste particular, que tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do comportamento humano que consiste em maximizar o próprio benefício é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade). Alguns estudos indicam que, ademais de sentirem-se desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer dizer, igualitária (Clayton e Lerner).

[6] Nesse sentido, basta a literatura antropológica para demonstrar que há uma notável coerência intercultural nas diferenças sexuais ( que se estendem ao temperamento e ao comportamento) entre homens e mulheres; e as literaturas biológica e psicológica também estão repletas de dados que revelam fortes diferenças entre os sexos . Para dizer rápido e objetivamente, em termos evolutivos as mulheres são idênticas aos homens na maioria dos aspectos. Diferem – o que exclui a possibilidade de que sejam melhores ou piores – naqueles campos em que se enfrentaram de forma continuada a problemas adaptativos diferentes durante a larga evolução humana (as mulheres diferem em suas preferências e estratégicas sexuais, por exemplo). E porque sem essas diferenças provavelmente não teríamos sido capazes de sobreviver nas savanas, é razoável inferir que desenvolvemos diferentes corpos e mentes para combinar com o modo de vida de cada sexo. Sobre a questão da desigualdade sexual pode-se ver, desde distintas perspectivas científicas: Browne; Daly e Wilson; Wright; Baron-Cohen; Brizendine.

[7] Por exemplo, Brosnan e De Waal indicaram mediante um experimento muito elegante como os monos capuchinos (macaco-prego) dispõem de um sentido agudo da justiça. Em condições experimentais, aprendem a intercambiar fichas por comida com seus cuidadores humanos, mas se negam a fazê-lo se o trato oferecido é pior do que aquele com que se brinda a outro mono cujo intercâmbio é por ele contemplado e avaliado . Este descobrimento de que os monos capuchinos estão dispostos a intercambiar fichas por comida, mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre, sem dúvida alguma, um amplo campo de possibilidades que podem vir a confirmar o fato de que o princípio da igualdade evoluiu a partir de determinadas intuições e emoções morais inatas que compartimos com nossos ancestrais primatas. Depois, já se encontraram algumas evidências etológicas no sentido de que o castigo retributivo encontra-se inserido no mais profundo de nosso desenvolvimento evolutivo (Brosnan e de Wall,  Fehr et al.). Uma hipótese plausível sustenta que o retributivismo igualitário foi uma ferramenta útil para a manutenção da ordem social durante a evolução, com o que certos mecanismos psicológicos que o sustentam puderam haver sido fixados no  transcurso da mesma (Clark).

 

[8] Segundo Pinker, todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana –  segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causantes da conduta- é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria  convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remitimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente , aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos  que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Por exemplo, se um indivíduo toma sua mulher como uma pessoa “corrupta”  e  “caída”, incapaz de ter bons desejos e de atuar de acordo com estes, seguramente será um marido aberrantemente desconfiado, ferinamente vigilante e desnaturadamente repressor ou agressivo ( e com este caráter desenhará as micronormas que regerão este tipo de relação familiar); ao contrário, se parte da premissa de que sua mulher é capaz de eleger seus desejos, de aspirar por si mesma ao bem, de  automodelar-se e de atuar segundo essa aspiração (como deve ser!), seguramente  será um marido muito mais  confiante, tolerante e infinitamente menos vigilante (e as micronormas que regerão essa relação terão um caráter de todo distinto das anteriores). Quando passamos de fatos específicos de indivíduos a generalizações acerca de grupos de indivíduos, a assunção de uma das premissas acima referidas passa a fazer uma abissal diferença quando do desenho do conjunto normativo que regulará as relações jurídicas (nas quais subjazem os vínculos sociais relacionais). (Atahualpa Fernandez).

[9] Tampouco é demasiado insistir no fato de que resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da liberdade. Seja como for, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, provocam secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e inclinados à retórica. Resulta inclusive muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo e independente ao reino da natureza e não condicionado por este.Para mais detalhes, cfr. Atahualpa Fernandez.

 

[10]  E não é apenas o fato de que “todos nós precisarmos” do outro. Trabalhos recentes mostram que precisamos interagir com os outros; precisamos dar e receber; precisamos pertencer ( Baumeister e Leary; Brown et. al.; Habermas). Sêneca tinha razão : “Ninguém que vê apenas a si mesmo e transforma tudo em uma questão de sua própria utilidade é capaz de viver feliz”. John Donne também tinha razão: precisamos dos outros para completar-nos. Somos uma espécie ultra-social, cheia de emoções firmemente sintonizadas para amar, oferecer amizade, ajudar, compartilhar e entrelaçar nossas vidas à de outros, ainda que o apego e os relacionamentos possam provocar-nos dor. Se, como disse um dos personagens de Sartre, “o inferno são os outros”, o paraíso também o é. (Haidt; Atahualpa Fernandez). Nossos corpos, nosso cérebro e nossas mentes não estão desenhados para viver em ausência de outros: a atividade psicológica e neuronal humana não ocorre de forma isolada, senão que está intimamente conectada a – e se vê afetada por –  os demais seres humanos .

[11] Tentando definir o que significa “ser de esquerda”, assim se manifesta Peter Singer : “Tomar consciência da imensa quantidade de dor e sofrimento que há em nosso universo, assim como do desejo de fazer algo para reluzi-la (…) isso, creio eu, consiste a esquerda (…) – ou seja – é essencial para qualquer esquerda autêntica. Se nos encolhemos de ombros ante o sofrimento evitável dos débeis e dos pobres, dos que estão sendo explorados e despojados, ou dos que simplesmente não têm nada para  levar uma vida decente, não formamos parte da esquerda. Se dizemos que o mundo sempre foi e será assim, pelo que não se pode fazer nada, então não formamos parte da esquerda. A esquerda (ao seguir o imperativo de reduzir o sofrimento) quer fazer algo por cambiar esta situação”.

[12] O objetivo, recorda N. Chomsky, deve ser sempre o de intentar criar a visão de uma sociedade donde impere a justiça; isto significa criar uma teoria social humanista baseada, na medida do possível, em uma concepção humanista e firme da essência humana, ou da natureza humana, quer dizer, de intentar estabelecer as conexões entre um conceito da natureza humana que dê lugar à liberdade e à dignidade, e outras características  humanas fundamentais, e  uma noção de estrutura social donde estas propriedades possam realizar-se de forma materialmente igualitária e a vida humana adquira um sentido pleno.

 

Como citar e referenciar este artigo:
BISNETO, Atahualpa Fernandez; FERNANDEZ, Atahualpa. Lei Maria da Penha: liberdade, igualdade e discriminação positiva. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/lei-maria-da-penha-liberdade-igualdade-e-discriminacao-positiva/ Acesso em: 30 abr. 2024
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