Héllia Karoline Bastos Ferreira[1]
Resumo: O município de Alcântara, no Maranhão, goza de uma localização privilegiada no que diz respeito ao desenvolvimento do Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE). Entretanto, o território hoje ocupado parcialmente pelo Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) não era disponível quando este lá chegou, sendo assim, surgiu à necessidade de desapropriação das terras de comunidades locais – predominantemente quilombolas – que ocupavam esta região. É dentro desse contexto, em que o Estado brasileiro se coloca entre o mercado do céu (corrida aeroespacial) e a preservação da vida na terra (comunidades desapropriadas), que inserimos este estudo.
Palavras-Chaves: Desapropriação. Alcântara. Agrovilas. Quilombolas.
Abstract: The municipality of Alcântara, in Maranhão, enjoys a privileged location with regard to the development of the National Program of Space Activities (PNAE). However, the territory now partly occupied by the Alcântara Launch Center (CLA) was not available when it arrived, and thus, the need arose for the expropriation of the lands of local communities – predominantly quilombolas – that occupied this region. It is within this context, in which the Brazilian State is placed between the sky market (aerospace race) and the preservation of life on earth (expropriated communities), that we inserted this study.
Keywords: Expropriation. Alcântara. Agrovilas. Quilombolas.
Introdução
Essa história começa a ser contada em 1980 quando o governo do Maranhão desapropriou para fins de utilidade pública uma área de 52 mil hectares, futuramente ampliada para 62 mil hectares, do município de Alcântara, visando estabelecer nessa região um centro de lançamento de foguetes que colocaria, de fato, o Brasil na já iniciada corrida aeroespacial.
Dois anos mais tarde firmou-se um Protocolo de Cooperação com o objetivo de implantar o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Em 1983, para finalizar o processo, representantes do Ministério da Aeronáutica assinam o Acordo em que se comprometem a atender determinadas reivindicações feitas pelas comunidades desapropriadas (vê Anexo A). No ano de 1987, 312 famílias foram remanejadas para 7 agrovilas.
Entretanto, o que parecia uma simples desapropriação com a finalidade de promover o desenvolvimento tecnológico do país possuía em sua essência questões muito mais complicadas do que essa cronologia faz parecer.
Desde a Guerra Fria quando as duas maiores superpotências do mundo disputaram seu lugar ao céu, a área de foguetes é considerada um área de excelência, podendo ser utilizada para fins bélicos, mas também pacíficos capazes de proporcionar inovações nos campos da ciência, comunicação, meteorologia e etc. O Brasil não poderia se desligar de área tão eficiente e por isso criou na década de 60 o Programa Espacial Brasileiro (PEB), surgindo assim à necessidade de Centros de Lançamento implantados primeiro no Rio Grande do Norte e depois em Alcântara.
O CLA foi considerado por muito tempo como o grande avanço tecnológico que poderia finalmente colocar o Brasil em reais condições de disputa no mercado aeroespacial. E com certeza, por suas vantagens geográficas seria considerado um dos megaprojetos de maior sucesso do país, se não fosse, a sua localização.
A presença do CLA esbarrou em um sistema de vida autônomo de comunidades remanescentes de quilombos. Estas comunidades têm suas terras e tradições constitucionalmente protegidas não só pelos artigos 215 e 216 da Constituição como também pelo Decreto nº 4.887/03. Para elas a terra representa não apenas moradia, mas preservação da cultura e do seu modo de vida. Desta forma, retirar-lhes de suas terras não é apenas uma mudança geográfica e sim uma interferência em sua identidade coletiva.
Tendo em vista esses apontamentos, é que podemos ver os reais desdobramentos desse processo de desapropriação em específico.
Seguindo na linha de estudo desse impasse que o presente artigo visa elencar dados referentes a estas comunidades de forma a demonstrar os impactos sofridos pelas populações remanejadas. Buscamos debater não só tais consequências como também a viabilidade de uma convivência harmônica entre a “cruz e a espada” que se encontra o Estado, de um lado os direitos das comunidades desapropriadas e do outro a necessidade do avanço tecnológico do país. Discutindo a possibilidade de solução dialógica capaz de promover um desenvolvimento sustentável com a ponderação de ambos os interesses.
1. Considerações gerais sobre desapropriação
Com o advento do Estado social democrático entendeu-se que o Estado não é uma mera estrutura de dominação política, mas que deve agir visando atender as necessidades sociais. Com o fulcro de cumprir com essa obrigação, fez-se necessário à intervenção em um dos pilares do Estado Liberal: a propriedade.
Segundo essa nova visão o direito de propriedade não é visto de forma ilimitada, pelo contrário, seu exercício é sujeito a limitações. Assim sendo, o Estado “garante a propriedade, mas permite a desapropriação” (MEIRELLES, 2016, p. 725), considerada por boa parte da doutrina como um dos instrumentos mais drásticos de que pode se valer o Estado para intervir na propriedade privada.
A desapropriação, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2016, p. 894) é “o procedimento através do qual o Poder Público compulsoriamente despoja alguém de uma propriedade e a adquire, mediante indenização”. Ainda conforme o referenciado autor essa atitude encontra fundamento político na supremacia do interesse coletivo sobre o individual, quando esses forem incompatíveis. E o fundamento normativo constitucional no art. 5º, inciso XXIV da Constituição e nos Decretos-leis 3.365/41 e 4.132/62, principalmente.
Entretanto, mesmo devidamente fundamentado o Estado não intervém na propriedade de forma arbitrária, devendo preliminarmente justificar a necessidade de sua intervenção. Sendo as justificativas de acordo com o art. 5º, inciso XXIV:
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; (grifo nosso).
Conforme preleciona Lucas Rocha Furtado (2013, p. 612) a distinção entre a desapropriação por necessidade ou utilidade pública e a por interesse social é que enquanto na primeira o bem desapropriado é tomado objetivando sua utilização pelo próprio Poder Público, na segunda o bem é destinado a outros particulares.
Em ambos os casos, porém, só serão válidas as desapropriações se fundadas na necessidade daquele bem para a realização de um interesse coletivo. De forma a obedecer ao princípio da proporcionalidade.
Tal como se passa em todas as hipóteses de sacrifício de direitos individuais, a desapropriação se sujeita ao princípio da proporcionalidade. Isso significa a invalidade da desapropriação em que o Estado não evidenciar que esta é a solução adequada e necessária para o cumprimento de suas funções, e a que mais privilegia direitos e valores protegidos constitucionalmente. (JUSTEN FILHO, 2014, p. 635)
A utilidade pública foi à justificativa que ensejou a desapropriação do território de Alcântara onde se encontra hoje o CLA. No entanto, o que torna este caso peculiar e digno de análise é que mesmo com uma justificativa válida e evidenciada a sua adequação e necessidade não é claro se a decisão tomada foi a que mais privilegia direitos constitucionalmente protegidos, conforme debateremos adiante.
Ademais, a desapropriação objetiva promover à modernização da sociedade através de políticas públicas que proporcionem maior comodidade a sociedade, como por exemplo, construção de edifícios públicos, casas de saúde e até mesmo construção de moradias populares. De forma a garantir o bem comum visando o desenvolvimento da sociedade.
2. O CLA e o desenvolvimento tecnológico pretendido
No início da conquista aeroespacial o interesse das nações era apenas pela exploração do ambiente extraterrestre e descobertas científicas. Todavia, com o passar dos anos isso se tornou insuficiente e percebeu-se que essa conquista poderia ter muito mais benefícios práticos se utilizada para o desenvolvimento, gerando proveitos em áreas como prevenção de desastres, defesa do meio ambiente, controle de endemias, telecomunicações, navegação por satélite e meteorologia.
Com o advento desse viés comercial concedido aos produtos e serviços derivados de tecnologia espacial, esse segmento tornou-se rentável gerando um boom no desenvolvimento de projetos aeroespaciais para os próximos anos. Estabelecendo não só um aumento da demanda por serviços de lançamento, mas também a necessidade de redução dos custos.
É nesse cenário que desponta o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Devido a suas condições naturais privilegiadas o CLA permite uma redução de custos considerável proporcionando uma economia de 30% no combustível na fase de lançamento dos foguetes e satélites, economia advinda de sua posição geográfica, próxima à linha do Equador.
Além disso, se encontra em uma área estável tanto geológica como climaticamente, dispondo de terra, considerada livre, para implantação de novas plataformas que permitiriam foguetes de vários portes e categorias os quais poderiam ser lançados em qualquer época do ano. Apresentando também uma baixa densidade demográfica que resultaria em um baixo custo com desapropriações.
Todos estes fatores juntos tornam o CLA um dos melhores pontos de lançamento de foguetes do mundo viabilizando assim o despontamento do Brasil em um mercado extremamente lucrativo que movimenta pelo menos 33 bilhões de dólares por ano.
De acordo com as “Considerações sobre a comercialização do CLA” feitas por Durval Henriques da Silva Filho[2] com base no Relatório do Plano Diretor de planejamento do Centro e os contatos feitos com os representantes de empresas estrangeiras são as seguintes algumas das premissas necessárias para adequação do CLA as exigências do mercado: implantação de um novo porto, obtenção de licenças ambientais, complementação das instalações do aeroporto, modernização do centro de controle e remoção de populações das áreas operacionais.
Ao que tudo indica o cumprimento dessas exigências não estar longe de ocorrer. Recentemente, no dia 05 de outubro do corrente ano, o presidente Michel Temer visitou as instalações do CLA. Apesar de o Planalto não ter dado detalhes sobre tal visita, é certo o interesse do atual governo em negociar o uso do CLA com os EUA, mas para isso as demandas acima devem ser cumpridas, principalmente no que diz respeito à futura remoção de populações.
Nas palavras do próprio Ministro da Defesa, Raul Jungmann: “Se você tiver mais 12 mil hectares, e isto está em negociação, você vai poder colocar até seis países no centro de lançamento. Seria uma melhora muito grande nos recursos”.[3]
3. Comunidade Remanescentes de Quilombos e sua relação com a terra.
Havendo ou não uma futura desapropriação o certo é que no meio desse conflito faz-se impossível não notar a presença de comunidades remanescentes de quilombos (CRQ´s). Porquanto, de acordo com o Laudo Antropológico de Almeida (2006, pp. 79-80) o município de Alcântara concentra em seu território um total de 139 CRQ´s, destas, 90 se encontram em área desapropriada para implantação do CLA, e as outras 49 mesmo fora desses limites ainda correm riscos como vimos anteriormente.
Mas quem seriam essas CRQ´s? Consoante o Decreto nº 4.887/03 que regulamenta o processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos:
Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
A questão quilombola no Brasil é um assunto de muitas vertentes históricas, jurídicas e políticas, que demandaria mais do que poucas páginas para ser estudado, motivo pelo qual nos ateremos aqui a falar apenas de sua relação com a terra que é pertinente para a compreensão do assunto debatido.
Destacando para tal o §2º do artigo supracitado: “são terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”. A necessidade de situar no referido decreto um parágrafo para delimitar o que se entende por terras ocupadas pelas CRQ´s demonstra a importância dessas para esse grupo social.
Terra no contexto de tais comunidades não é apenas propriedade e sim parte de sua identidade coletiva. Sendo imprescindível para manutenção da cultura e modo de vida desse povo. Logo, privá-los dela é segundo as palavras de Sarmento (2006, p. 5) “um verdadeiro etnocídio”.
Desse viés é possível depreender que um processo de desapropriação que envolva essas populações, mesmo que respeite o valor indenizatório não é capaz de sanar os danos sociais, culturais e econômicos causados. E é sobre esses danos que iremos debater no tópico seguinte.
4. Agrovilas
De acordo com a Rede Social de Justiça e Direitos humanos as agrovilas são “conjuntos habitacionais que foram construídos pelo Centro de Lançamento de Alcântara para o remanejamento de comunidades tradicionais seculares que moravam e trabalhavam em povoados próximos à Base”.
Via de regra, este método resolveria os problemas com a retirada das CRQ´s de seu território, entretanto, na prática, não foi isso que aconteceu. Posto que, essas agrovilas as quais deveriam significar melhora na qualidade de vida dessas populações, conquanto construídas conforme o Acordo entre Aeronáutica e a comunidade (vê anexo A), trouxeram mudanças insuperáveis no modo de vida dos quilombolas. Dos quais debateremos alguns adiante:
4.1 Mudança no modo de produção
O modo de produção utilizado pelas comunidades expropriadas é o sistema de roça no toco, um sistema de cultivo advindo de uma tradição indígena e que foi assimilado pelas populações remanescentes.
Funciona da seguinte forma: primeiro há uma derrubada da vegetação local, queimando-a para que os nutrientes presentes na biomassa da vegetação derrubada adiram ao solo, após esta fase inicia-se o plantio e colheita que se estendem até o declínio da fertilidade, com isso é iniciado um período de repouso para terra e cultivam-se outras áreas.[4]
Com a implantação do CLA, no entanto, povoados inteiros foram deslocados para territórios já ocupados por outros povoados impedindo assim que este modo de produção pudesse ser aplicado, dado ser latente a restrição dos recursos naturais em situações desse viés.
A solução parece simples: introduzir novas técnicas de produção. Entretanto, além de romper com uma tradição centenária dessas comunidades, novos métodos demandam alto custo de produção, visto a necessidade de novas tecnologias e adubos.
4.2 Quantidade e qualidade da terra
A ideia de que quantidade não é qualidade definitivamente não se aplica aqui. Uma das principais reclamações das famílias desapropriadas é a diminuição do tamanho da terra, que de uma área média de 30 hectares para cada família diminuiu para lotes de no máximo 15 hectares. Além disso, apesar de não ser uma generalidade, boa parte das agrovilas apresentam solo fraco, ácido e de baixa fertilidade. Basta aliar esses dados ao modo de produção discutido no tópico anterior para perceber que a agricultura, base da subsistência dessas comunidades, sofreu um golpe duríssimo.
4.3 Dependência das agrovilas
Outro ponto importante associado ao tamanho das terras concedidas aos desapropriados é que quando houve a divisão dos lotes de 15 hectares para cada família não se deduziu o óbvio, que as famílias cresceriam o que geraria um aumento na demanda por espaço, em virtude de a tradição nessas comunidades ser a de que os filhos casados devem morar junto aos seus pais.
Novamente, a solução seria simples: aumento no tamanho das casas de forma a comportar os novos membros ou construção de novas casas no mesmo território. Mas não é assim tão fácil, o óbice se encontra no fato de as agrovilas não serem comunidades autônomas, como eram as comunidades antes da desapropriação, e sim extensões do território da Aeronáutica, o que em questões práticas significa que para quaisquer modificações na estrutura das casas pertencentes às agrovilas há a necessidade de autorização militar.
4.4 Acesso a praia
Ademais, um dos principais problemas no que tange as agrovilas é quanto a sua localização distante do mar. Dado que, antes, a pesca era um dos pilares de subsistência das comunidades realojadas e inclusive gerava renda através da venda do excedente. Facilidade existente por conta da proximidade com o mar, no entanto, com o advento do CLA esta condição mudou drasticamente. Conforme demonstra a imagem a seguir:
Imagem 1 – Antes e depois da desapropriação
Fonte: Almeida (2002) apud Braga (2011, p. 111)
Hoje além da distância, que chega a ser para algumas comunidades de até 21 km, as famílias dependem de autorização para usufruir da pesca, em virtude de entre as agrovilas e a praia se encontrar o CLA. Além disso, ainda têm que lidar com limitações no que tange aos dias em que podem pescar, pois, por questões de segurança, o acesso ao mar nos dias de lançamentos é proibido.
Por essa razão, as famílias que não possuem outra fonte de alimento têm que depender de vizinhos ou da compra de peixes de outras agrovilas, o que é conduta dispendiosa e não compensada pelo Estado.
Entretanto, reduzir as agrovilas apenas a pontos negativos seria uma injustiça, é visível na imagem 1 que houveram melhorias na infraestrutura das casas que foram feitas (casas de alvenaria, cobertura de telhas, eletrificação e algumas outras benfeitorias que são reconhecidas pelas famílias). Porém, mesmo estes pontos positivos não são suficientes para apagar a latente desestruturação social causada a essas comunidades pelo advento do CLA.
Os problemas apontados acima são apenas um resumo dos muitos que enfrentam as comunidades expropriadas, ainda poderíamos listar a falta de documentação da terra, caminhos de acesso precários, ausência de escolas e até de cemitérios, entre outros.
5. É possível conciliar tradição e modernidade?
Conforme o exposto comprovamos que tanto o CLA quanto as comunidades quilombolas apresentam justificativas plausíveis que legitimam sua reivindicação pelo território em Alcântara. Ambos munidos de instrumentos normativos que defendem seus pontos de vista.
Com uma Constituição tão extensa quanto a nossa chega a ser irônico que tais instrumentos encontrem-se ao mesmo tempo tão próximos e tão distantes. A ironia se dá por conta da proximidade literal dos artigos no texto normativo, enquanto as comunidades quilombolas têm suas terras e tradições protegidas pelos artigos 215 e 216, o desenvolvimento tecnológico é incentivado pelos artigos 218 e 219 da CF. Mas, na prática, infelizmente, a proximidade destes instrumentos não é vista como uma possibilidade.
Tal e qual é sabido em caso de colisão de princípios constitucionais faz-se necessário a utilização da ponderação que visa pesar os interesses de forma a preservar o máximo possível os bens jurídicos em jogo.
Trazendo esta ferramenta para o caso em questão, veremos que numa equação que possui em um dos lados o incentivo ao desenvolvimento tecnológico do país e no outro a defesa das CRQ´s seria injusto com a sociedade que o Estado ignorasse qualquer dos lados dessa relação. Em suma, mesmo que se reconheça a prevalência de um dos lados, isto não deveria significar que o outro poderia simplesmente ser ignorado. Seguir o princípio da ponderação é justamente garantir uma convivência que possibilite a preservação em alguma medida de ambos os interesses.
A dúvida recai sobre como construir um ambiente capaz de ponderar estes dois dispositivos constitucionais. E é ai que entra a figura do Estado como agente ponderador. Vez ou outra o Estado se encontra entre impasses como esses, de questões econômicas e sociais. E deve sopesar interesses. Para auxiliá-lo nessa função surge à figura do desenvolvimento sustentável.
No desenvolvimento sustentável busca-se o equilíbrio entre cinco tipos de sustentabilidade: a econômica, a política, a ambiental, a social e a cultural. A dificuldade? O equilíbrio entre esses tipos tão distintos.
Em uma disputa de agentes antagônicos pertencentes a realidades sociais tão distantes e que lutam para fazer prevalecer seus interesses quem sabe a palavra equilíbrio não se encaixe muito bem. Para o Estado, buscar a compatibilização de interesses é o adequado, mas para esses agentes isso significa perda.
Infelizmente, é muito difícil que o Estado consiga promover todas essas máximas quando se depara em uma situação como a levantada nesse artigo. Mesmo assim, com base no exposto, é visível que um projeto como o CLA deveria ter sido construído sob a égide de respeito à história, cultura, tradição e o contexto social daquela região, ato, que, como vimos, talvez nem sequer tenha sido tentado.
Ao analisarmos a ideia de desenvolvimento sustentável inserida no contexto de construção de um projeto deste porte, vemos que esse só é possível através da estruturação de um ambiente dialógico capaz de fazer com que os agentes em questão possam buscar o equilíbrio para o seu caso concreto.
É certo que um diálogo entre os membros da Aeronáutica e as populações desapropriadas já foi tentado e frustrado (vê anexo A), dificultando o processo. No entanto, se pararem de enxergar os direitos concedidos às comunidades como forma de amenizar os ânimos, para sutilmente realizarem novas etapas de construção do CLA que geram novas restrições à população, isso seria possível.
Como comprovado no tópico 2 do presente artigo, os benefícios trazidos pelo CLA são incontestáveis. Entretanto, é necessário a consciência de que esses benefícios só terão validade se visarem à construção do bem-estar social, em que a contradição entre uma área altamente desenvolvida de um lado e comunidades constitucionalmente protegidas vivendo em extrema pobreza do outro, não será admitida.
Conclusão
De acordo com Celso Antônio B. de Mello “não são desapropriáveis pessoas, mas apenas os bens ou direitos acionários, relativos a elas”. Entretanto, na implantação do Centro de Lançamento de Alcântara, o processo de desapropriação de comunidades, preponderantemente quilombolas, resultou em mudanças significativas no seu modo de vida e em sua identidade coletiva. É certo que a desapropriação foi de seu território, mas no âmago ela não se restringiu a isso.
Nessa perspectiva, não precisamos de dados ou estudos muito extensos para evidenciar que o homem não é um ente desenraizado, mas sim, um ser cuja identidade é intrinsecamente ligada a laços culturais e tradições. Nos grupos tradicionais então essa ligação é ainda mais forte. Desligá-los desses laços, portanto, é profetizar a desestruturação de uma comunidade centenária.
E, ao contrário do que muitos pensam, isso não afeta apenas os direitos dos membros das CRQ´s, mas de toda sociedade brasileira. Como bem enfatiza Daniel Sarmento (2006, pp. 5-6): “Perdem também todos os brasileiros, das presentes e futuras gerações, que ficam privados do acesso a um ‘modo de criar, fazer e viver’, que compunha o patrimônio cultural do país (art. 215, caput e inciso II, CF)”.
Na opinião dos responsáveis pela criação dos projetos das agrovilas, essas significam uma melhoria considerável ao modo de vida das comunidades, no entanto, esse é um ponto de vista baseado em valores de massa que nada tem a vê com os padrões culturais dos povos que ali vivem. Permitir tamanho desrespeito a cultura que se encontra protegida por nossa Lei Maior pode trazer consequências irreversíveis para um Estado que busca a conjuntura de Estado Democrático de Direito.
Nessa linha encerramos esse artigo com a reflexão de um dos poemas do alemão Bertolt Brecht:
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, A. W. B. de. Laudo Antropológico – Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara. Vol. 2. Brasília: MMA, 2006.
BRAGA, Y. M. R. de O. Território Étnico – Conflitos Territoriais em Alcântara, Maranhão. 2011. 156 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Universidade do Vale do Paraíba, São Paulo, 2011.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: SEGRAF, 1988.
______. Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941. Diário Oficial da União.
______. Decreto-lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962. Diário Oficial da União.
______. Decreto-lei nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Diário Oficial da União.
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FURTADO, L. R. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
JUSTEN FILHO, M. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
LIMA, C. Temer visita nesta quinta o Centro de Lançamento de Alcântara. Imirante. Disponível em: <http://imirante.com/oestadoma/noticias/2017/10/04/temer-visita-nesta-quinta-o-centro-de-lancamento-der-alcantara.shtml>. Acesso em: 20 outubro 2017.
MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
MELLO, C. A. B. Curso de Direito Administrativo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
MELLO, A. da C. A experiência do Grupo Executivo Interministerial de Alcântara – MA na construção de um ambiente participativo e cooperativo. 148 p. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) – Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2008.
REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS. O que são as agrovilas. Disponível em: <http://www.social.org.br/cartilhas/cartilha001/cartilha009.htm>.
SACHS, I. Desenvolvimento: includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
SARMENTO, D. Território Quilombolas e Constituição: A ADI 3.239 e a Constitucionalidade do Decreto 4.887/03. [parecer emitido em] 03 de março de 2008.
______. A garantia do direito à posse dos remanescentes de quilombos antes da desapropriação. [parecer emitido em] 09 de outubro de 2006.
ANEXO A – Acordo feito entre a Aeronáutica e as comunidades
[1] Estudante de Direito. Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: helliabf@gmail.com.
[2] DURVAL HENRIQUES DA SILVA FILHO é chefe da Divisão de Projetos Aeroespaciais da Infraero, tendo anteriormente atuado no Departamento Técnico da Embraer e na Coordenadoria de Relações Industriais da Agência Espacial Brasileira. Foi professor adjunto da Divisão de Engenharia Aeronáutica do ITA e do Departamento de Engenharia Mecânica da UnB, onde lecionou disciplinas da área aeroespacial. Graduou-se em engenharia aeronáutica pelo ITA, em 1979, obtendo o título de doutor em aerotermodinâmica aplicada, pela Ecole Nationale Supérieure d’Aéronautique et de l’Espace, de Toulouse, França. Realizou também programa de pós-doutoramento em projeto aerodinâmico de asas transônicas, no Georgia Institute of Technology, em Atlanta, EUA.
[3] AGÊNCIA BRASIL. Centro de Alcântara está pronto para uso por países parceiros, diz Jungmann. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-05/centro-de-alcantara-esta-pronto-para-uso-por-paises-parceiros-diz-jungmann>. Acesso em: 28 de out. de 2017.
[4] FANTINI, A. C.; SIMINSKI, A. Roça-de-toco: uso de recursos florestais e dinâmica da paisagem rural no litoral de Santa Catarina. Ciência Rural, Santa Maria, v. 37, n.3, p. 690-696, maio-jun 2007. (usamos esta referência apenas com a finalidade de entender o funcionamento deste modo de produção não sendo pertinente o local onde o estudo foi desenvolvido)