Conflito entre tratados internacionais de direitos humanos e o direito interno brasileiro
Marcius Cruz da Ponte Souza *
SUMÁRIO: Introdução; 1. Tratados e Convenções internacionais sobre direitos humanos. Precedentes históricos; 2. O sistema brasileiro de proteção aos direitos humanos; 3. Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno; 4. A hierarquia normativa dos tratados de direitos humanos. O conflito com o direito interno; Considerações finais; Bibliografia.
RESUMO
O presente estudo tem por objeto tecer algumas considerações acerca da natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos, bem como analisar a sua hierarquia normativa ao ser incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Tratados Internacionais; Direitos humanos; dignidade da pessoa humana; hierarquia normativa.
INTRODUÇÃO
A partir da feição democrática assentada sob a égide da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro ratificou importantes tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, permitindo a sua reinserção na seara internacional.
A proteção internacional aos direitos humanos vem ao encontro da consolidação e da efetivação dos direitos fundamentais inscritos na Carta Magna, que erigiu a dignidade da pessoa humana à categoria de valor supremo e valor fundante de todo o ordenamento e conferiu a prevalência dos direitos humanos nas suas relações internacionais.
Com a promulgação da Constituição de 1988, surgiram diversas interpretações que consagraram um tratamento diferenciado aos tratados de direitos humanos em razão do disposto no §2º do art. 5º, o qual estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte.
No presente estudo, busca-se analisar a forma pelo qual o direito interno pátrio incorpora os atos normativos internacionais de tutela dos direitos humanos, notadamente após a Emenda constitucional 45/2004, que ratificou o seu caráter especial em relação aos demais tratados internacionais.
1 TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS. PRECEDENTES HISTÓRICOS
O direito humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho constituem os primeiros marcos do processo de internacionalização dos direitos humanos. Sua consolidação deu-se em meados do século XX, em decorrência da barbárie cometida durante a segunda guerra mundial.
O aperfeiçoamento e a universalização do movimento de internacionalização dos direitos humanos podem ser atribuídos às graves transgressões aos direitos humanos perpetradas durante o nazismo, com o extermínio de mais de onze milhões de pessoas. Parte das violações perpetradas poderia ter sido evitada, caso existisse, à época, um sistema de proteção internacional de direitos humanos efetivo.
Diante dessa irreversível ruptura aos direitos humanos, sob o império da lei, foi necessário buscar a reconstrução e a efetivação dos direitos humanos, conduzindo a uma premente reflexão ética que deve permear o direito.
A vetusta concepção de soberania absoluta e incontrastável, diante da necessidade de proteção aos direitos humanos, foi redefinida, pois se mostrou em descompasso com as novas aspirações. A violação aos direitos humanos não é simples questão de ordem interna, na medida em que representa essencial e legítimo interesse da comunidade internacional.
Nesse contexto, o Estado possui o dever de tutelar os direitos humanos. Essa assertiva impõe não apenas a abstenção estatal no sentido de violar os direitos humanos dos indivíduos, mas também de prevenir e reprimir condutas danosas perpetradas por terceiros.
Consiste em obrigação de todos o respeito aos direitos humanos fundamentais regulados no direito internacional. A negação e a inércia à proteção a esses direitos ensejam a responsabilização do Estado frente à comunidade internacional, que pode fiscalizar o implemento de suas normas, constituindo uma nova instância de tutela quando o Estado demonstrar-se falho ou omisso.
A partir do consenso em promover e efetivar os direitos humanos, foi editada a Carta das Nações Unidas de 1945. Este documento não define o conteúdo e abrangência das expressões direitos humanos e liberdades fundamentais. Somente, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi definido, com precisão, o elenco dos direitos humanos e liberdades fundamentais a que fazia menção os artigos da Carta.
A tutela aos direitos humanos, ao enunciar direitos e obrigações universais ao indivíduo, atribuiu à pessoa humana a condição de sujeito de direito internacional.
A Declaração Universal, fundada no respeito à dignidade humana, congrega, de forma ampla, um conjunto de direitos essenciais para o desenvolvimento pleno do ser humano.
Ela demarca a noção contemporânea dos direitos humanos, cujos traços marcantes são a universalidade, a interdependência e a indivisibilidade. A condição de ser humano é o requisito único para ser titular dos direitos nela protegidos. Enuncia direitos aplicáveis, de forma incondicional, a todas as pessoas.
Elenca, conjuntamente, os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais, congregando, de forma indissociável, os discursos liberais e os sociais.
Essa moderna concepção dos direitos humanos foi reiterada na Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, quando afirma, em seu parágrafo 5º, que os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.
Embora a Declaração de 1948 não seja um tratado e sim uma resolução, que não apresenta força de lei, ela possui inegável valor jurídico. Ela vem sendo concebida como a interpretação autorizada da expressão direitos humanos constante da Carta das Nações Unidas, dado o seu inter-relacionamento com este documento, que possui cunho vinculante.
Ademais, defende-se que a Declaração vincula por constituir de princípios gerais do direito, revelando-se como um autêntico direito costumeiro internacional, aplicando-se a todos os Estados e não apenas àqueles que assinaram a Declaração.
Inegavelmente, em face da invocação generalizada de suas normas, o conteúdo essencial nela tratado é dotado de jus cogens, cuja imperatividade não pode ser suprimida ou relevada pelos seus destinatários.
Grande parte dos seus dispositivos já se encontra positivado na legislação interna dos Estados, pois serviu de fonte de inspiração para a normatização de direitos fundamentais.
A Carta Magna de 1988, visando reforçar o relevante papel dos direitos humanos no cenário interno, em diversos dispositivos, retrata fielmente direitos humanos consagrados na Declaração Universal de 1948, conferindo assim maior juridicidade à tutela do indivíduo.
2 O SISTEMA BRASILEIRO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
A Constituição Federal de 1988 rompe com o autoritarismo militar, imposto em 1964. Constitui o marco jurídico da redemocratização e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil. Nela, os direitos e garantias fundamentais receberam um papel de destaque, conferindo uma tutela analítica e pormenorizada, sendo considerada uma das mais avançadas neste tema.
Desde o seu preâmbulo, demonstra a opção fundamental pregada pelo regime democrático instituído, ao “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…)”.
Estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º e incisos da CF).
As relações internacionais, nos termos do art. 4º, inciso II da Carta Magna, regem-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, reforçando a abertura constitucional ao sistema de proteção internacional e a integração desses direitos ao ordenamento pátrio.
O parágrafo único do mesmo artigo dispõe que a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações, restando patente o intuito do Constituinte em reinserir o país na comunidade internacional.
O parágrafo 4º do art. 5º da Lei Maior, com a redação dada pela Emenda constitucional 45/2004, enuncia a submissão do Brasil à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão, reconhecendo limites e condições ao conceito de soberania estatal, pois tem como parâmetro a prevalência dos direitos humanos, cujo interesse tem caráter transcendental.
Destaca como fundamentos básicos do Estado Democrático de Direito a cidadania e a dignidade da pessoa humana, tida como princípio nuclear dos direitos humanos e valor fundante do sistema constitucional moderno, irradiando valores, para quase todos os direitos fundamentais inscritos na Carta Magna.
A Constituição, assentada sobre as exigências de promoção de justiça social e de valores éticos, tem como primazia os direitos fundamentais, devendo ser interpretada como um sistema unitário e harmônico e o principio da dignidade, considerado como um super-princípio constitucional, confere essa coerência interna, ao uniformizar, orientar, condicionar e informar todo o ordenamento jurídico interno e externo.
Conforme observa Flávia Piovesan, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional[1].
Para Sarlet, a dignidade é “uma qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado”[2]. Possui caráter universal, pois se trata de atributo inerente ao indivíduo. Nesse sentido, não é o direito que confere a dignidade ao homem, tampouco pode suprimi-la, cabendo a ele reconhecê-la e protegê-la. Para Luís Roberto Barroso,
Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidade básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade[3].
A Constituição de 1988 confere uma preeminência aos direitos e garantias fundamentais, prescrevendo-lhes, de forma exemplificativa, logo no seu Título II, antecipando-os, portanto, à própria estruturação do Estado. Estabelece, no seu art. 1º, que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito.
Os direitos fundamentais possuem uma perfeita interação com esse modelo de estado. A proteção dos direitos fundamentais, mediante a realização simultânea dos valores de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana constitui um dos seus princípios basilares e sua justificativa maior de existência. Por sua vez, a consagração desses direitos pressupõe a democracia.
A Carta Magna não somente ampliou o catálogo de direitos fundamentais de primeira dimensão (individuais), como também incluiu direitos de segunda (coletivos) e de terceira dimensão (difusos), consagrando a moderna concepção internacional da interdependência e indissociabilidade na fruição desses valores.
3 INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS AO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNO
Os tratados são acordos escritos celebrados por sujeitos de direito internacional. Eles constituem a principal fonte de obrigações no plano internacional.
As normas internacionais somente se aplicam aos Estados que acordaram com as suas prescrições, ressalvando-se os costumes internacionais, que independem de adesão formal.
O processo de formação dos tratados inicia com atos de negociação, conclusão e assinatura.
O procedimento de incorporação de tratados varia de acordo com as regras internas de cada país. Embora não haja um modo internacionalmente prescrito para a ratificação, é comum que esta se consubstancie em um documento escrito, assinado pelo Chefe de Estado ou Ministro de relações exteriores. Esses documentos podem ser trocados, no caso dos tratados bilaterais, ou depositados junto a um Estado ou Organização Internacional, para os tratados multilaterais.
Como regra, a simples assinatura do tratado pelo Chefe do Poder Executivo não vincula o Estado pactuante, devendo ser submetido à apreciação do Poder Legislativo. Aprovado pelo Parlamento, o chefe do Poder Executivo pode ratificar o diploma normativo, ato essencial para vigência no plano interno e externo.
A partir desse momento, o Estado encontra-se formalmente obrigado a cumprir o disposto na norma pactuada, acarretando, em caso de violação, a sua responsabilização internacional.
O art. 27 da Convenção de Viena estabelece que: “Uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento do tratado” e deve ser cumprido de boa-fé pelas partes.
A Carta Magna estabelece, no seu art. 21, inciso I, a competência da União de “manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais”.
O art. 84, VIII da Constituição, por sua vez, dispõe que compete privativamente ao Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos ao referendo do Congresso Nacional. O art. 49, inciso I, prevê a competência exclusiva do Congresso Nacional de resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Da análise dos dispositivos, verifica-se a necessidade, para a incorporação dos tratados no direito interno, de um ato subjetivamente complexo, diante da conjugação de vontades homogêneas do Poder Legislativo, que os referenda mediante Decreto Legislativo e do Poder Executivo, que os ratifica, em consagração à teoria dos controles recíprocos (checks and balances).
4 A HIERARQUIA NORMATIVA DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS. O CONFLITO COM O DIREITO INTERNO
No Brasil, nunca houve qualquer dispositivo constitucional expresso que tratasse acerca de hierarquia normativa dos tratados internacionais ou dirimisse eventuais conflitos destes com o direito interno.
Na Argentina, os tratados em geral possuem hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, enquanto que os tratados que versam sobre direitos humanos possuem hierarquia constitucional, em complementação aos direitos constitucionalmente garantidos (art. 75, inciso 22 da Constituição argentina). No mesmo sentido, as Constituições da Venezuela (art. 23) e Peru (art. 105).
A doutrina costuma apontar duas teorias que versam sobre a incorporação dos tratados internacionais no direito interno: a teoria monista e a teoria dualista.
Para os monistas, o direito é unitário. Não existem limites entre a ordem jurídica internacional e o ordenamento interno. A partir da sua ratificação, o tratado já obriga no plano interno.
Para os dualistas, o direito interno e o internacional são concebidos como ordens independentes entre si, existindo uma dualidade de ordens jurídicas, a interna e a externa. Para a introdução de regras no direito positivo estatal, exige-se um ato legislativo de recepção.
Na hipótese de conflito entre a norma internacional e a norma nacional, a maior parte dos monistas entende que o direito internacional deve prevalecer. Já para os dualistas, os dois sistemas regulam diferentes matérias, enquanto o direito internacional disciplina a relação entre Estados soberanos, o direito interno rege assuntos internos, que trata das relações entre os próprios cidadãos.
A doutrina majoritária entende que o Brasil adotou a teoria dualista para todos os tipos de tratados. Essa tese foi encampada pelo STF, ao entender como essencial, para a vigência interna das normas previstas nos tratados, a edição de Decreto presidencial de execução, como meio de conferir-lhe publicidade e executoriedade.
No julgamento do RE 71.154-PR, restou consignado no voto condutor do relator, Ministro Oswaldo Trigueiro, que: “Lei Uniforme sobre o Cheque, adotada pela Convenção de Genebra. Aprovada essa Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a legislação interna…” (RTJ 58/70)[4]. (grifos nossos)
Em todas as Constituições brasileiras, desde a de 1891 (art. 78), a enumeração de direitos fundamentais tem caráter exemplificativo. A Constituição Federal de 1988 consagra, no seu art. 5º, § 2º, uma cláusula de abertura ao ingresso de novos direitos fundamentais, ao dispor que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Pela primeira vez, uma Constituição brasileira inclui, dentre os direitos constitucionalmente garantidos, os tratados internacionais de que o Brasil seja signatário.
Flávia Piovesan, a partir da leitura do §2º do art. 5º da Constituição, leciona que os direitos previstos na Constituição seriam organizados em três grupos distintos: a) dos direitos expressos na Constituição (por exemplo, os direitos elencados pelo texto nos incisos I a LXXVII do art. 5º e em outros dispositivos espalhados pelo texto da Carta Magna, como o artigo 150, III, b, que trata do princípio da anterioridade tributária, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal); b) dos direitos expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte; e. finalmente, c) dos direitos implícitos (direitos que estão subentendidos nas regras de garantias, bem como os decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. Ex. direito à identidade que decorre do próprio direito à vida, direito à incolumidade física, que decorre da proibição da tortura e do tratamento desumano)[5].
A partir da vigência do §2º do art. 5º da Carta Magna de 1988, estabeleceu-se grande debate jurisprudencial e doutrinário acerca do status normativo dos direitos humanos no Brasil. As principais correntes que tratam da hierarquia dos tratados de direitos humanos são: a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos; a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional; a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos; o posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais. Defendendo a primeira corrente, Hildebrando Accioly, citado por Flávia Piovesan, argumenta:
É lícito sustentar-se, de acordo, aliás, com a opinião da maioria dos internacionalistas contemporâneos, que o direito internacional é superior ao Estado, tem supremacia sobre o direito interno, por isto que deriva de um princípio superior à vontade dos Estados. Não se dirá que o poder do Estado seja uma delegação do direito internacional; mas parece incontestável que este constitui um limite jurídico ao dito poder[6].
Para esta corrente, o art. 5°, §2° da CF deve ser interpretada no sentido de que, ainda que implicitamente, concede um grau supraconstitucional a todo Direito Internacional dos Direitos Humanos, tanto de fonte consuetudinária, como convencional. A expressão “não excluem” não pode ser ter um alcance meramente quantitativo, querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, deve prevalecer o último.
Até a emenda constitucional 45/2004, o Supremo Tribunal Federal, baseada na doutrina de Francisco Rezek, possuía jurisprudência histórica no sentido de equiparar os tratados internacionais de direitos humanos às leis ordinárias, não tendo força de emendas constitucionais.
No Recurso extraordinário n. 80.004 de 1977, o Supremo entendeu que uma lei interna revoga o tratado anterior, resolvendo-se o conflito entre as legislações pelo critério cronológico e da especialidade.
Em 1995, o Supremo reiterou esse entendimento, no habeas corpus 72.131, que tratava de prisão civil do depositário infiel na alienação fiduciária em garantia. Nesse julgamento, foi debatida a antinomia existente entre a Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso LXVII que permite a prisão civil por dívida do depositário infiel, enquanto que o art. 7º, VII do Pacto de San José da Costa Rica proíbe todas as formas de prisão por dívida, salvo no caso de alimentos[7].
As legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente.
Nesse sentido, o art. 7º, inciso VII, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, in verbis: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
O Supremo, ao analisar essa norma, reafirmou o seu entendimento de que os diplomas normativos de caráter internacional adentram o ordenamento jurídico interno no patamar da legislação ordinária e eventuais conflitos normativos resolvem-se pela regra lex posterior derrogat legi priori.
Posteriormente, no importante julgamento de medida cautelar na ADI n° 1.480-3/DF, Rel. Min. Celso de Mello (em 4.9.1997), o Tribunal voltou a afirmar que entre os tratados internacionais e as leis internas brasileiras existe mera relação de paridade normativa, entendendo-se as “leis internas” no sentido de simples leis ordinárias e não de leis complementares. Como salienta o Ministro Celso Mello:
No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política.
O Poder Judiciário – fundado na supremacia da Constituição da República – dispõe de competência, para, quer em sede de fiscalização abstrata, quer no âmbito do controle difuso, efetuar o exame de constitucionalidade dos tratados ou convenções internacionais já incorporados ao sistema de direito positivo interno.
Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa… No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“lex posterior derogat priori”) ou, quando cabível, do critério da especialidade.
O primado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda, inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema da concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público…(RTJ 70/333 – RTJ 100/1030 0 RT 554/434)”
O fundamento adotado para manter a paridade normativa dos tratados às leis ordinárias foi o principio da supremacia das normas constitucionais, invocando a previsão expressa de controle de constitucionalidade dessas normas, de acordo com o disposto no art. 102, III, b da Constituição, in verbis: “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.
Sustenta-se, ainda, a existência de rito especial para a introdução de norma constitucional ao sistema brasileiro, na forma prevista para a aprovação de emendas constitucionais pelo Congresso Nacional.
A tese da legalidade ordinária, na medida em que permite ao Estado brasileiro, o descumprimento unilateral de um acordo internacional (pacta sunt servanda), vai de encontro aos princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena de 1969.
Esse entendimento revela grave retrocesso em contexto de progressiva efetivação dos direitos humanos. Saliente-se que os tratados estão submetidos ao procedimento específico de denúncia para extirpar a sua força normativa no plano interno.
Há, ainda, a corrente que defende a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal dos tratados de direitos humanos, buscando conferir aplicação direta às normas de direitos humanos, até mesmo contra a lei ordinária se com ela conflite, sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes. O Ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence defendeu essa tese no julgamento do RHC n. 79.785 – RJ:
Certo, com o alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo compromisso de logo – como creio ter deixado expresso no voto proferido na ADInMc 1.480 – com o entendimento, então majoritário – que, também em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais – preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis. Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande freqüência, precisamente porque – alçados ao texto constitucional – se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (…). Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5o, § 2o, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos.” [RHC no 79.785-RJ, Pleno, por maioria, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 22.11.2002, vencidos os ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso (o então Min. Presidente)].
A Emenda constitucional 45/2004, buscando pôr fim à celeuma, incluiu o § 3º ao art. 5º, in verbis: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
A pretensão com inclusão do novel dispositivo foi a de superar embates doutrinários, afirmando que, realmente, os tratados e as convenções internacionais sobre direitos humanos alteram o texto constitucional, desde que sejam aprovados, mediante o rito de aprovação de emendas constitucionais.
Saliente-se que as Convenções da Organização do Trabalho são consideradas de direitos humanos, já que se conformam com o conteúdo da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948[8].
O novo dispositivo constitucional não previu nenhuma regra de transição que disciplinasse acerca da hierarquia dos tratados de direitos humanos aprovados pelo rito anterior, antes da publicação da Emenda.
Como ressalta Dallari, a omissão não é desprovida de conseqüências, pois além de o Congresso Nacional não atribuir expressamente dimensão constitucional aos tratados de direitos humanos anteriores à Emenda 45, a nova exigência de maior quorum na aprovação legislativa acaba aparentemente por endossar a interpretação de que as disposições do §2º do art. 5º, vigentes desde a promulgação da Constituição, em 1988, não teriam o condão, por si sós, de gerar para os tratados os efeitos de norma da Constituição[9].
Há duas correntes sobre o tema: a primeira entende pela permanência do status de lei ordinária; a segunda propugna pela passagem automática de hierarquia de emenda constitucional, numa espécie de recepção, eis que foi observado o devido processo legal vigente à época em que foi ratificado e pelo fato de não ser admitida, pela doutrina, a tese de inconstitucionalidade formal superveniente, citando como exemplo o Código Tributário Nacional, que é formalmente uma lei ordinária e materialmente uma lei complementar (art. 146 da CF)[10].
Para Castro, é possível a coexistência de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos com força de norma constitucional, de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos hierarquicamente equiparados à legislação ordinária e dos demais tratados e convenções internacionais sempre com natureza infraconstitucional[11]. Para o autor, os tratados aprovados pelo rito das emendas constitucionais possuem a equivalência destas e os demais que não seguiram tal formalidade, guardam paridade com as leis ordinárias.
Alexandre de Moraes entende que “a incorporação de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, nos termos do art. 49, I ou do §3º, do art. 5º, será discricionária do Congresso Nacional”[12].
A partir desse novo contexto constitucional, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do recurso extraordinário 466.343 ainda não finalizado, demonstrou uma tendência de revisão de sua histórica jurisprudência que afirma a paridade normativa entre a lei federal e as normas internacionais de proteção aos direitos humanos, acenando para a possibilidade do reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel.
O julgamento refere-se a um recurso interposto pelo Banco Bradesco contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que julgou procedente ação de depósito, decorrente de busca e apreensão de um automóvel financiado pelo banco para cliente que se tornou inadimplente, mas não acatou a possibilidade de decretação de prisão civil de depositário infiel, conforme previsto pelo inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal.
O acórdão questionado estabelece que os contratos de alienação fiduciária de bens, em garantia de empréstimo, não se equiparam ao contrato de depósito de bem alheio, para efeito de aplicação da prisão civil, autorizada no inciso LXVII do artigo 5° da Constituição Federal (prisão civil de depositário infiel).
No recurso, o banco alega que a interpretação do TJ-SP fere, entre outras normas, o disposto no artigo 66, da Lei nº. 4.728/65, com a redação dada pelo artigo 1º do Decreto-lei nº. 911/69, que determinou que “a alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direito e depositário de acordo com a lei civil e penal”.
Argumenta, ainda, que a Constituição de 1988 teria recepcionado esta norma e assim seria admitida a prisão civil no caso.
Nesse julgamento, vem prevalecendo a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, que já conta com oito votos, passando as convenções a ostentar uma posição intermediária entre a legislação comum brasileira, de um lado, e a Constituição da República, de outro. Negaram provimento ao recurso os Ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carmen Lúcia Antunes Rocha, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio e Ellen Gracie. O ministro Celso de Mello pediu vista. Faltam votar, ainda, os Ministros Sepúlveda Pertence e Eros Grau. O Ministro Gilmar Mendes, em seu brilhante voto, assevera:
Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloqüente de que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais.
Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico.
Em outros termos, solucionando a questão para o futuro – em que os tratados de direitos humanos, para ingressarem no ordenamento jurídico na qualidade de emendas constitucionais, terão que ser aprovados em quorum especial nas duas Casas do Congresso Nacional –, a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE n° 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em um largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988.
Após a reforma, ficou ainda mais difícil defender a terceira das teses acima enunciadas, que prega a idéia de que os tratados de direitos humanos, como quaisquer outros instrumentos convencionais de caráter internacional, poderiam ser concebidos como equivalentes às leis ordinárias. Para esta tese, tais acordos não possuiriam a devida legitimidade para confrontar, nem para complementar o preceituado pela Constituição Federal em matéria de direitos fundamentais.
(…) Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos.
Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.Para o Ministro Gilmar Mendes: diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.
Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1º de outubro de 1969.
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.
Enfim, desde a ratificação pelo Brasil, no ano de 1992, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.
No Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 18799, foi adotada tese da hierarquia constitucional dos direitos humanos:
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO FISCAL. DEPOSITÁRIO INFIEL. PENHORA SOBRE O FATURAMENTO DA EMPRESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº. 45/2004. PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. APLICAÇÃO IMEDIATA. ORDEM CONCEDIDA. PRECEDENTES. 1. A infidelidade do depósito de coisas fungíveis não autoriza a prisão civil. 2. Receita penhorada. Paciente com 78 anos de idade. Dívida garantida, também, por bem imóvel. 3. Aplicação do Pacto de São José da Costa Rica, em face da Emenda Constitucional nº. 45/2004, que introduziu modificações substanciais na novel Carta Magna. 4. § 1º, do art. 5º, da CF/88: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. 5. No atual estágio do nosso ordenamento jurídico, há de se considerar que: a) a prisão civil de depositário infiel está regulamentada pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil faz parte; – b) a Constituição da República, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), registra no § 2º do art. 5º que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. (No caso específico, inclui-se no rol dos direitos e garantias constitucionais o texto aprovado pelo Congresso Nacional inserido no Pacto de São José da Costa Rica; – c) o § 3º do art. 5º da CF/88, acrescido pela EC nº. 45, é taxativo ao enunciar que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido aprovado com quorum de lei ordinária, é de se ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De acordo com o citado § 3º, a Convenção continua em vigor, desta feita com força de emenda constitucional. A regra emanada pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do país como normas de hierarquia constitucional; – d) não se pode escantear que o § 1º supra determina, peremptoriamente, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Na espécie, devem ser aplicados, imediatamente, os tratados internacionais em que o Brasil seja parte; – e) o Pacto de São José da Costa Rica foi resgatado pela nova disposição constitucional (art. 5º, § 3º), a qual possui eficácia retroativa;- f) a tramitação de lei ordinária conferida à aprovação da mencionada Convenção, por meio do Decreto nº 678/92 não constituirá óbice formal de relevância superior ao conteúdo material do novo direito aclamado, não impedindo a sua retroatividade, por se tratar de acordo internacional pertinente a direitos humanos. Afasta-se, portanto, a obrigatoriedade de quatro votações, duas na Câmara dos Deputados, duas no Senado Federal, com exigência da maioria de dois terços para a sua aprovação (art. 60, § 2º). RHC 18799 – STJ – Relator Ministro José Delgado. DJ 08.06.2006, p. 120.
Flávia Piovesan, a partir de interpretação teleológica e sistemática e da máxima efetividade das normas constitucionais, defende que, em face da principiologia adotada pela Carta Magna, notadamente com o valor conferido à dignidade da pessoa humana, valor fundante do sistema constitucional, os tratados de direitos humanos possuem natureza constitucional, compondo o bloco de constitucionalidade[13].
Ela argumenta que, se a Carta Magna não exclui outros direitos decorrentes dos tratados Internacionais, porque, a contrário sensu, estaria a incluir as normas previstas nos tratados internacionais de direitos humanos.
Este entendimento implica na inclusão no texto constitucional dos direitos previstos nos tratados, revelando a natureza de seu conteúdo como direitos materialmente constitucionais, atuando de forma complementar ao catálogo expresso no texto constitucional.
Para essa vertente, os demais tratados internacionais possuem hierarquia de normas infraconstitucionais, com paridade em relação às leis ordinárias, consoante disposto no art. 102, III, b da Constituição.
O tratamento jurídico diferenciado dado pelo §2º do art. 5º da Constituição ao conceber os tratados de direitos humanos como normas constitucionais deve-se ao cunho transcendental inerente à proteção desses direitos.
O núcleo essencial dos direitos humanos revela interesses fundamentais da comunidade internacional e compõe o jus cogens internacional, cujos princípios imperativos possuem hierarquia especial e superior dentro do sistema jurídico internacional. Não podem, portanto, ser derrogados por meras leis ordinárias.
Flávia Piovesan defende que o § 3º ao art. 5º não pode ser interpretado no sentido de atribuir paridade normativa de lei ordinária federal aos tratados de direitos humanos aprovados anteriormente à emenda, pelo simples fato de não ter sido o novo rito previsto. Leciona que todos os tratados de direitos humanos são materialmente constitucionais e constituem cláusula pétrea nos termos do art. 60, §4º, IV, da Carta Magna, em face da hierarquia de valores que congrega, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana[14].
O novo dispositivo, de acordo com essa doutrina, apenas confere a natureza formalmente constitucional ao tratado que observe o novo rito previsto, pois todos eles já são materialmente constitucionais. Pedro Lenza os diferencia na possibilidade ou não de denúncia, pois apenas aqueles que foram aprovados por procedimento mais dificultoso, duas vezes em cada Casa Legislativa, e pela legitimidade popular conferida, não podem ser denunciados sem a prévia autorização do Congresso Nacional[15].
Salienta André Ramos Tavares que a denúncia por ato unilateral pelo Presidente da República, doravante, não é mais possível, como ocorreu com o caso da Convenção 158 da OIT[16].
Para Carmen Tiburcio, os tratados de direitos humanos, aprovados pelo novo rito, por constituírem clausula pétrea, nos termos do art. 60, §4º da Constituição, nem mesmo com o aval do Congresso Nacional podem ser revogados, passando a integrar definitivamente o ordenamento nacional, sem a possibilidade de denúncia pelo Executivo[17].
A solução adotada pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, apesar de parecer um avanço, mostra-se retrógrada e anacrônica, pois, de certa maneira, afasta a interpretação mais progressista e adequada que se poderia dar ao §2º do artigo 5º da Constituição. Assevera Passos que a Emenda 45/2004, não pode retirar a força de que era portador o sistema de proteção e defesa dos direitos humanos na Constituição, tal como estatuído nos §§1º e 2º do mesmo art. 5º, ainda vigente[18].
O §1º do art. 5º da Constituição estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, reafirmando o caráter normativo e vinculante dos direitos fundamentais e conferindo-lhe tratamento especial no ordenamento. Possuem eficácia plena, independentemente da intermediação do legislador ordinário para ser aplicado.
Os tratados internacionais que definem direitos e garantias fundamentais, por força deste dispositivo, também devem ser aplicados de forma imediata, mediante incorporação automática no ordenamento, não necessitando de ato legislativo para conferir executoriedade no plano interno. A partir da ratificação, pode ser exigido o seu implemento, tendo eficácia derrogatória de toda a legislação ordinária que lhe contravenha.
Por esse sistema de incorporação automática, em consonância com a teoria monista, é reconhecida a vigência do direito internacional na ordem interna com a simples ratificação do tratado.
Para Flávia Piovesan, o Brasil consagrou um sistema misto. Para os tratados de proteção de direitos humanos, adota-se o sistema de incorporação automática (monista), por força dos §§1º e 2º do art. 5º. Já para os demais tratados se aplica o sistema de incorporação legislativa (dualista)[19].
Pela interpretação sistemática e teleológica da Constituição, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, havendo conflito entre uma norma constitucional e uma norma de direito internacional, deve ser aplicado o princípio da norma mais favorável, de modo a consagrar a maior tutela aos direitos humanos, dando primazia à norma mais benéfica à vítima.
Observe-se que não há revogação de qualquer delas, apenas suspende a eficácia no caso concreto. Não existe primazia do direito interno ou das normas internacionais e sim para aquela que confira a maior proteção ao ser humano.
O direito interno e o direito internacional convivem em constante interação na realização do propósito convergente e comum de tutela dos direitos e interesses do ser humano.
Ingressando tais tratados no ordenamento jurídico interno com o status de norma constitucional (art. 5º, § 2º, da CF), eventuais conflitos existentes entre essas “duas normas constitucionais”, há necessidade de ponderar os bens jurídicos em conflito, harmonizando-os de acordo com o princípio hermenêutico da concordância prática. Somente, no caso concreto, um deles deve prevalecer, dada a inexistência de hierarquia entre normas constitucionais, em face do principio da unidade.
O art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê expressamente o princípio da norma mais favorável ao estabelecer que “nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenção em que seja parte um dos referidos Estados”.
As normas de proteção aos direitos humanos têm por fito aprimorar, reforçar a efetividade do direito interno, complementá-lo, integrá-lo, e não para diminuir a proteção assegurada ao individuo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1988 representou um grande avanço para a proteção de direitos humanos, ao incorporar os tratados de direitos humanos ao elenco de dos direitos constitucionais consagrados.
Os direitos humanos, dada a sua natureza materialmente constitucional e em consonância com os parágrafos 2º e 3º do art. 5º da Carta Magna, complementam e integram o catálogo de direitos protegidos na Lei maior, compondo o bloco de constitucionalidade.
Pela interpretação sistêmica e teleológica da Constituição, em consonância com o princípio da máxima efetividade e com a força expansiva da dignidade da pessoa humana, todos os tratados de direitos humanos possuem a hierarquia constitucional. O rito especial previsto no §3º do art. 5º, inserido pela Emenda Constitucional 45/2004, atuando em reforço ao disposto no §2º do mesmo artigo, permite a inserção formal desses direitos ao texto da Carta Magna, impedindo a denúncia unilateral pelo Chefe do Poder Executivo.
Por força do §1º do art. 5º da Constituição, devem ser aplicados e exigidos de forma imediata, independentemente da intermediação do legislador ordinário.
Esse status especial é assegurado somente aos tratados de proteção aos direitos humanos. Os demais possuem a mesma hierarquia das leis ordinárias federais.
O conflito existente entre o tratado de direitos humanos e Constituição Federal devem ser resolvidos pela aplicação, no caso concreto, da norma mais favorável à vítima. Tais diplomas normativos interagem, diante dos seus interesses convergentes na promoção da dignidade da pessoa humana.
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* Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil, Pós-graduando da Faculdade Christus em direito do trabalho e Processo do Trabalho. Aprovado no concurso para provimento de cargos de Procurador do Trabalho do Ministério Público do Trabalho
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[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. ver. , ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva 2006. p. 27.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed. ver. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 118.
[3] BARROSO, Luís Roberto. (org). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3 ed. Revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 38.
[4] DIAS, Luiz Claudio Portinho. A aplicação das normas do Mercosul pelo juiz nacional . Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1631>. Acesso em:
16 maio 2008.
[5] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. ver. , ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006. p. 58.
[6] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. ver. , ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006. p. 69.
[7] No mesmo sentido: HC 73044-2/SP, relatado pelo Ministro Maurício Corrêa; Recurso Extraordinário 253.071-9/GO, relatado pelo Ministro Moreira Alves).
[8] LOBATO, Marthius Sávio Cavalcante. O valor constitucional para efetividade dos direitos sociais. São Paulo: LTr, 2006. p. 132.
[9] DALLARI, Pedro Bohomoletz de Abreu. Tratados internacionais na Emenda Constitucional 45. In: ALARCON, Pietro de Jesús Lora; LENZA, Pedro; TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005. p. 91.
[10] TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88: (des)estruturando a justiça: comentários completos à EC 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 47.
[11] CASTRO, Wellington Cláudio Pinho de. Regime jurídico dos tratados e convenções internacionais após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 830, 11 out. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7405>. Acesso em:
29 abr.
[12] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 628.
[13] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. ver. , ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006. p. 52.
[14] Idem, Ibidem. p. 328.
[15] LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 11 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2007.
[16] TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88: (des)estruturando a justiça: comentários completos à EC 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005.
[17] TIBURCIO, Carmen. A EC n. 45 e temas de direito internacional. In: WANBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Reforma do Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 127.
[18] PASSOS, Jorge Luiz Ieski Calmon de. Direitos humanos na reforma do Judiciário In: WANBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Reforma do Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 350.
[19] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. ver. , ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006. p. 86.