Direito Constitucional

À procura da definição de República

Resumo: O texto aponta as diferentes definições da república que surgiram ao longo de sua evolução histórica e, coloca que contemporaneamente ainda procuramos a sua cristalina definição.

Palavras-Chave: Ciência Política. Direito Constitucional. República. Forma de Estado. Constituição Federal brasileira.

Dentro da moderna tipologia das formas de Estado, ab initio, o termo “república” se contrapõe à monarquia. E, onde o Chefe do Estado que pode ser uma só pessoa ou mesmo um colégio de pessoas (Suíça) que é eleito pelo povo, seja de forma direta ou indireta (assembleias primárias ou representativa).

No entanto, o significado do termo “república” muda constantemente e profundamente, vindo a adquirir conotações diversas conforme o contexto onde é inserido.

De fato, com a res publica dos romanos que definiam uma nova forma de organização de poder após a exclusão dos reis. O termo corresponde ainda na cultura grega, a uma das acepções de politeia.

Põe em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum, a comunidade enquanto se cogita em monarquia, aristocracia, a democracia realça o princípio do governo[1] (archia).

Devemos a Cícero[2] ser o pioneiro em definir a res publica, ao demonstrar que por povo se há de entender no monis hominum coetus quoquo modo congutus, se molitudenis iuris consensus et utilitaris communione sociatus.

Ao sublinhar os elementos distintivos da República o interesse comum e, principalmente, a conformidade com a lei comum, o único direito pelo qual a comunidade afirma a sua justiça.

Portanto, os conceitos de república, democracia e justiça estão profundamente ligados.

Qualquer debate sobre a república brasileira deve principiar com uma reflexão sobre o conceito de República sob o âmbito histórico. O que necessariamente acarreta análise em torno de três eixos principais e interrelacionados, a saber: a definição do termo República, a inserção do conceito em seu contexto originário (greco-romano), buscando apreender a caracterização da produção político-ideológica da sociedade clássica, dentro da perspectiva de longa duração e sublinhando os aspectos que tanto distanciam e os que aproximam do mundo moderno e contemporâneo.

Primeiramente, um conceito em acepção universal corresponde a uma representação mental de um objeto, feita por meio de suas gerais características. Todo conceito nos remete a um que só pode ser avaliado na sua relação com outros termos ou no contexto cultural.

Afinal, a linguagem deve ser concebida como um elemento integrante da vida social e cotidiana, ainda que que esta, não seja capaz de traduzir fielmente a realidade em sua plenitude e verdade.

E, visto deste ângulo, o conceito é relevante material para profícua análise histórica, posto que seja parte do código simbólico e linguístico, expresso num sistema de signos construídos e materializados socialmente e amplamente reconhecidos pelos membros da comunidade.

A descodificação desse sistema nos permite a reconstrução do imaginário coletivo, das ideologias, dos hábitos e valores relativos à sociedade que o engendrou e às suas formas de permanência em outros contextos históricos.

O dicionário trivialmente indica que a filiação etimológica do termo “república” com latim res publica, ou seja, coisa pública, evidenciando raízes históricas dessa palavra tão contemporânea e, simultaneamente, tão antiga que remonta ao mundo latino, e, por extensão, à Grécia Antiga, substrato da cultura romana.

Em verdade, não se pode ignorar que muitas vezes, que os fundamentos políticos, jurídicos e filosóficos do mundo ocidental e, ipso facto, do Brasil, foram edificados na tradição greco-romano-judaico-cristã.

Daí surgiram e se afirmaram os processos racionais de organização comunitária que deram origem às noções de cidadania e participação do ovo, aos princípios filosóficos e éticos de conduta, às primeiras leis escritas, as regras consagradas do direito romano e, naturalmente, à experiência republicana.

Já tão incorporada definitivamente à civilização ocidental, tais criações são de tal maneira atuantes em nosso cotidiano político, social e mental que só nos cabe admitir a sua atualidade.

A importância do conceito república, na prática política ocidental é exemplo dessa vitalidade, pois nenhum elemento simbólico pode subsistir amparado do fenômeno real. Um vocábulo, nessas condições, se tornaria letra morta, rapidamente.

Geralmente, nos voltamos para o passado clássico e o interrogamos, sobre os nossos dilemas habituais, buscando ouvir aquelas vozes que ecoam nosso presente. A recuperação do diálogo entre o mundo greco-romano e a modernidade, incluindo o mundo contemporâneo, significa promover exercício de autoconhecimento e a ampliação da crítica política e social[3], através da investigação cuidadosa de certos postulados ideológicos, nas condições em que estes foram postos inicialmente.

O significado do conceito de república[4] é escrito ao longo da história, buscando as permanências entre as culturas humanas, entre momentos cronologicamente distintos. E, entendê-lo como elemento simbólico que, tornado objeto de análise, nos conduz a uma compreensão melhor não só do grupo particular que o construiu a sociedade greco-romana, mas de todos aqueles que o elegeram como modelo político.

As heranças culturais clássicas não devem ser consideradas meras “sobrevivências” de uma sociedade remota e amorfa, condenada ao desaparecimento; ao contrário. elas constituem vivências vigorosas, sempre renovadas no decorrer da dinâmica histórica, cuja atualização vai refletir as especificidades de contextos sociais diferenciados, que obedecem a racionalidades distintas.

Não podemos comparar stricto sensu sociedades pré-industriais, como o mundo greco-romano, e a sociedade brasileira, inserida nos quadros do capitalismo internacional; é sabido que cada cultura deve ser considerada na sua peculiaridade, o que torna imperativa a elaboração de um campo teórico coerente sobre o mundo antigo.

Por outro lado, não podemos subestimar as evidências de que “existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Tais questões foram colocadas pela Nova História, sobretudo, a partir dos anos sessenta, e, em especial, pela História das Mentalidades, que trata da psicologia coletiva, fazendo fronteira com a psicanálise, mas não se confundindo com esta.

As mentalidades se ocupam das estruturas mentais de base, da maneira de sentir e pensar de um povo[5], de um grupo, nos seus traços mais gerais e não estritamente racionais, subjacentes à realidade material, mas a esta necessariamente ligados.

A sua investigação não se coloca na esfera dos fenômenos sociais objetivos, mas se dirige à representação desses fenômenos, expressos nos documentos e monumentos construídos a partir do imaginário coletivo[6].

Na linha proposta por Georges Duby[7] e Jacques Le Goff[8], as mentalidades são colocadas no centro do corpo social, utilizadas como o meio esclarecimento do real. Nesse caso, estas estão assentadas numa totalidade histórica que inclui, simultaneamente, a civilização material (o trabalho, a economia, as leis) e os aspectos espirituais (sonhos, mitos, crenças, representações), articuladas numa mesma estrutura e integradas no movimento histórico global.

Assim, cada sociedade particular, cada micro-história é integrada numa duração global, recuperando a ideia básica da história como processo social e, dessa forma, preservando a própria historicidade, do ponto de vista de sua capacidade de síntese.

O berço da res publica é a cidade-Estado aristocráticas, sendo a república definida dicionarizadamente como uma organização política de um Estado com vistas a servir à coisa pública, ao interesse comum.

A política compreendida como métodos e táticas formais e informais, como o governo é conduzido e as decisões são tomadas e ainda a ideologia dominante situa-se entre as atividades mais excepcionais do mundo clássico.

Com efeito, esta foi uma invenção grega, ou talvez, invenções separadas dos gregos, etruscos e/ou romanos, no âmbito da cidade-Estado, uma comunidade autogovernada, composta de centro cívico e/ou econômico (centro urbano) e um território adjacente, do qual tirava seus meios de subsistência. Por ser pequena em área e população convencionou-se denominá-la de cidade-Estado.

A cidade-Estado[9] é considerada a espinha dorsal da sociedade de clássica, o elemento catalisador sem o qual essa civilização permaneceria ininteligível.

A despeito da associação frequentemente estabelecida entre exercício político e democracia, verificamos que não há uma relação unívoca entre ambos, do ponto de vista histórico. A cidade-Estado de Roma (diferentemente de algumas cidades gregas) não só desconheceu a democracia, como conduziu a sua República até o Império despótico.

A República nasceu[10] e se desenvolveu em solo aristocrático, o que não invalida o caráter do avanço histórico ocorrido com a sua instalação. Isto porque a ordem republicana se sustentava através de regras predominantemente laicas, racionais e construídas socialmente, configurando um grau de elaboração bem mais sofisticado, se comparado à simplicidade da estrutura monárquica, sagrada e mítica.

No entanto, as cidades democráticas e aquelas aristocráticas eram regidas por uma ideologia, comum, até certo ponto, às duas formas de regime. Assim, a proposição interminavelmente afirmada por gregos e romanos é que a condição essencial para uma verdadeira polis e para a “vida boa” pressupõe “o governo pelas leis, não pelos homens”.

Essa pretensão à virtude é defendida por Platão na sua obra “Politeia”, mais conhecida como “A República” devido, provavelmente, às traduções romanas posteriores. Democracia e oligarquia compartilhavam essa mesma pretensão.

Mas devemos esclarecer que o critério que exigia leis fixas e publicamente conhecidas era marcado por um raciocínio eminentemente prático e pela prudência: a crença no interesse comum significava a promessa de estabilidade, a capacidade de evitar o conflito frequente e sua forma extrema, a guerra civil.

O princípio do interesse comum[11] foi a base da teoria política grega e iria nortear o pensamento romano e toda reflexão política ocidental. A reflexão política se iniciou, efetivamente, com os gregos, cuja mentalidade foi profundamente marcada pelo racionalismo[12].

Diferentemente de seus contemporâneos orientais, cuja visão de mundo era rigorosamente ditada pela religião, os gregos trilharam o caminho do pensamento intelectual, procurando apreender a realidade sob o ponto de vista da razão, e especulando sobre tudo aquilo que lhes causava espanto e admiração.

Ainda assim, não podemos nos esquecer de que, conforme assinala Finley[13], “todo ato público na Antiguidade era precedido de uma tentativa de obter ‘apoio’ sobrenatural, através de preces, sacrifícios e promessas”, inclusive na Grécia e em Roma.

Platão e Aristóteles[14] foram os primeiros pensadores sistemáticos e os primeiros teóricos políticos autênticos da Antiguidade. Os primeiros a tentarem uma descrição completa e coerente da organização ideal da sociedade, assente na metafísica, na epistemologia, na psicologia e na ética. Tais pensadores trabalharam e escreveram num nível de abstração, refinamento e generalização filosófica tão elevado, que, frequentemente, colocava-se fora do alcance de seus compatriotas.

Na reflexão política grega, o Estado era concebido como uma associação ética para a busca da virtude, como também um instrumento de justiça.

A ciência política[15], nesse caso, deveria determinar o que era o “Bem” para a sociedade, concretizado através da ação política. “A República” de Platão reflete bem esse espírito, trazendo uma preocupação em salvaguardar o princípio vital do interesse comum, seriamente abalado com a crise da democracia (no século IV a.C.) e o lento esfacelamento de suas instituições.

Acredito mesmo contemporaneamente, permanecemos à procura do conceito de república.

Platão apontou como principal malefício do regime democrático a manipulação da Assembleia por demagogos que, com sua oratória brilhante, monopolizavam os debates e obtinham os votos necessários para aprovação de seus projetos e de suas ambições pessoais.

Dessa forma, “A República”[16] platônica apresentava soluções para o aperfeiçoamento do sistema, indicando, entre outras, a criação de uma classe especializada de governantes e um órgão para a realização do bem comum. A República funcionava como uma espécie de manual para o estadista, papel reservado aos filósofos, na divisão de funções estabelecida por Platão.

Esse cunho prático pode ser sempre encontrado no pensamento grego. Como Aristóteles, Platão buscava o Estado ideal em que os conflitos fossem transcendidos no interesse da vida boa para todos, mas insistia em afirmar que nenhum Estado, passado ou presente, atingirá ou se aproximará desse nobre objetivo.

Os gregos foram muito lidos em Roma e o modelo democrático chegou mesmo a servir de inspiração para alguns legisladores e tribunos, como os Gracos, embora sua implementação esbarrasse nos ditames da estrutura aristocrática.

Conforme já foi sublinhado anteriormente, a República romana permaneceu aristocrática ao longo de sua história, não tendo a mesma necessidade de enfrentar o complexo quebra-cabeça de disposições constitucionais, que caracterizaram a democracia grega.

Talvez, por isso, os romanos jamais tenham desenvolvido a teoria e a discussão políticas de modo tão exuberante como ocorrera na Península Balcânica. Foi somente no século I a.C. (quando a república agonizava), com Cícero, que Roma pôde presenciar uma reflexão política do gênero da que os gregos tinham estado familiarizados desde o século V. Cícero estabeleceu os fundamentos da república, calçados, a exemplo das cidades gregas, no princípio do interesse comum, embora se distinguisse daquelas na execução prática do conceito.

A sua obra dileta, De Res Publica, pelo título e pela forma dialogada, revela a marca do texto homônimo de Platão. A obra incluía comentários sobre o funcionamento e o “espírito” do sistema político romano, notadamente os métodos pelos quais a plebe era tão completamente mantida sob controle. Nesta encontramos a definição clássica de República, citada nos livros I e III.

“É pois a República coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum (…) aquilo que tem o seu funcionamento na igualdade dos direitos e na comunhão de interesses (…) a ‘coisa pública’ é verdadeiramente coisa do povo, sempre que administrada com justiça e sabedoria”.

O vocábulo “povo”[17] se refere, nesse caso, exclusivamente ao conjunto dos cidadãos na posse plena dos seus direitos cívicos. O termo “República”, ou “Res Publica”, tem o significado de coisa pública.

Nos Dicionários Latino-Português e Latino-Vernáculo res é tratado como coisa, objeto, ser, e publica, palavra feminina, traz o sentido original de meretriz, ou seja, aquela que pertence a todos. As formas publicus, publicum correspondem ao que é geral, ordinário, vulgar, do que concerne ao povo e ao bem comum.

Essas noções, ao que parece, se constituíram em oposição aos privilégios políticos de uma elite religiosa que dominara por muito tempo os destinos da comunidade, quando esta ainda era conduzida sob o signo do sagrado e do mistério.

O conceito res publica, ao contrário, sugere um momento de abertura da participação cívica, simbolizada na formulação de uma terminologia claramente popular, cujo significado, profundamente arraigado nas mentalidades, gozava de ampla ressonância na cultura romana.

Como afirmamos anteriormente, a vitalidade de um conceito depende de sua integração na práxis social[18]. Mas, em solo romano, a marcha da consolidação da cidadania pobre e de suas reivindicações não teve prosseguimento, tendo sido interrompida em algum momento de sua história.

Os seus fundamentos básicos, no entanto, eram os mesmos que haviam inspirado a democracia grega; os critérios eram semelhantes e o princípio do governo da lei se mantinha.

A grande linha divisória entre as cidades-Estados democráticas e as oligárquicas girava mais em torno de suas formas de governo e a condução da política, do que sobre os princípios que as norteavam. Diante do exposto, torna-se possível uma segunda constatação conclusiva: a estrutura republicana é grega, mas o conceito de república é romano (grifo meu).

Os gregos introduziram os mecanismos essenciais ao funcionamento da República: o regime da lei, a noção de cidadania, a eleição dos magistrados pela Assembleia, o caráter colegiado e rotativo dos cargos públicos, noções essas capitaneadas pelo princípio do interesse comum, que sustentava a legitimidade política e o arcabouço institucional.

Couberam aos romanos a criação da terminologia res publica e a sistematização do conceito, fazendo da civita latina uma experiência republicana efetiva, calcada na ideia fundamental do interesse comum e nos princípios da res publica na modernidade[19].

A concepção moderna de República – que atravessa a contemporaneidade – preserva parte dos princípios originais mencionados, conforme indica a definição atual, encontrada no Novo Dicionário Aurélio: a República é uma “organização política de um Estado com vista a servir ao interesse comum”, ou ainda, “um sistema de governo em que um ou vários indivíduos eleitos pelo povo exercem o poder supremo por tempo determinado”.

Parece que o grande diferencial entre a concepção clássica e a moderna está no seu fundamento ético. A polis grega, núcleo original da reflexão política, era uma sociedade funda mentada numa ética coletiva. O interesse comum e o bem comum foram tratados como uma coisa só.

O Estado, confundido com o governo, tinha, para Aristóteles, um estatuto ontológico, imbuído de espírito moral, não se resumindo a uma composição de funções. A racionalidade política clássica era essencialmente teleológica: as teorias, de Platão a Cícero, trazem o finalismo da ideia do Bem.

A melhor constituição seria, nesse caso, aquela que ordenasse as condições mais adequadas para a realização de um fim que é a justiça, na cidade onde une a ciência do bem e a ação política, a ética e a política[20], segundo a mesma razão.

Essa associação se desfez, de acordo com o Padre Henrique Vaz[21], na teoria política moderna. Maquiavel, a exemplo de Platão, descreveu certas regras de ação para o chefe de Estado, na obra intitulada “O Príncipe”, com a finalidade de consolidar o seu poder.

Mas, “O Príncipe” como expressão da mentalidade veiculada pela Renascença, no contexto de afirmação do individualismo burguês e do sentimento nacionalista, mas, não traz as razões de ordem moral do tipo grego, pois o objetivo básico se tornara a obtenção de uma eficácia dos resultados, perseguida no exercício do poder.

A política passou a ser identificada com a técnica do poder: “O fazer e o produzir se tornaram fins em si, submetendo todos os meios e rejeitando os fins propriamente éticos.”.

Por conseguinte, podemos dizer, na forma de uma constatação final, que a ideia da vida política no Ocidente moderno não pôde renunciar aos princípios fundamentais da herança clássica: a legitimidade, a realização da justiça[22] e o interesse comum.

Tais princípios estão presentes no modelo democrático burguês, que caracteriza grande parte das Repúblicas Ocidentais contemporâneas. Mas aqui estes seguem uma orientação distinta, desviando-se do postulado ético original.

Alguns teóricos atribuem a esse hiato a responsabilidade, ao menos parcial, dos sintomas de crise generalizada por que passa a sociedade ocidental, agravada, nos últimos anos, pelos conflitos políticos, étnicos, religiosos e socioeconômicos.

Hannah Arendt[23], por exemplo, no seu livro “Entre o Passado e o Futuro” apontou para o impasse do pensamento contemporâneo, decorrente da dissolução dos padrões clássicos greco-romanos e a sua transformação em valores “funcionais”.

Segundo a doutrinadora, como advento da modernidade, os conceitos formulados na tradição clássica se apartaram da realidade fenomênica, tornando “formas ocas” as palavras-chaves da linguagem política, o que gera uma profunda lacuna, a ser, necessariamente, corrigida.

Por isso, ela propõe o resgate de parte dessa tradição, numa nova perspectiva metodológica, que promova a circularidade entre fatos e teorias, retornando a certos conceitos básicos “tais como liberdade e justiça, autoridade e razão, responsabilidade e virtude, poder e glória”.

Esse exercício intelectual poderia contribuir para o alargamento da reflexão política do século XX, através da inserção de perguntas relevantes no quadro da perplexidade contemporânea. No Brasil, tal impasse atinge contornos muito exacerbados, haja vista a gratuidade de certas falas político-partidárias, em que a consistência cede lugar a uma retórica oportunista.

No Estado brasileiro[24] os postulados democráticos se afirmam no plano do discurso e da teoria, principalmente a prática política que parece estar mais próxima do modelo republicano clássico-romano, voltada para os interesses privados de uma elite econômica e burocrática, que ignoram a grande massa de excluídos, aviltados nos seus direitos de participação política efetiva e de igualdade de oportunidades.

Esse panorama se expressa no arcaísmo de nossos quadros institucionais, tradicionalmente marcados pelo fisiologismo, pelo nepotismo e outras posturas discutíveis, num contexto dramático dentro de crise social e econômica agudas.

Trata-se também de uma crise ética[25] que exige uma redefinição dos valores e das regras para uma ação política eficiente, consciente e conhecedora das demandas públicas mais urgentes.

Uma tarefa que ainda se encontra na sua fase embrionária de implementação e que envolve a sociedade brasileira no seu conjunto, ou seja, a sociedade política e a sociedade civil.

O redimensionamento da república brasileira requer, na dicção de Hannah Arendt, um aprofundamento radical do conceito de república e, de seu fundamento ético, do sentido coletivo nele implícito, ou seja, a realização da justiça social[26] e do interesse comum dos cidadãos.

Quem sabe, num futuro próximo, possamos fazer da nossa res publica uma democracia de fato, à serviço de necessidades da maioria de uma população, de modo a integrá-la no exercício pleno da cidadania.

O tema é além de extenso, muito complexo e, não se esgota nessas parcas considerações levantadas. Todavia, valendo-nos da lição de Ciro Flamarion Cardoso[27], que: “Os exemplos apresentados devem ter sido suficientes para mostrar que a temática da cidade-Estado e sua racionalidade intrínseca constitui o ponto focal do conjunto de estudos e pesquisas que se voltam para a elucidação da história da Antiguidade Clássica”.

Entre nós, no Brasil, a vigente conjuntura política tem provocado um novo interesse por tal história, por ter sido a civilização da cidade-Estado a primeira a se colocar as questões relativas à legitimidade do poder, à participação e à democracia.

As respostas que lhes deram, diferem das que hoje são propostas, mas o fato de tê-las formulado pela primeira vez, garantem-lhe uma atualidade reconhecida.

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[1] A intervenção de Sócrates é sábia: governar é estar a serviço dos governados, como um médico curando os doentes. A justiça é superior à injustiça e é preferível sofrer a injustiça do que praticá-la. Onde se pratica a injustiça, aí está a desunião e a discórdia. Onde houver justiça, aí está a felicidade. Gláucon e Adimanto contra-argumentam dizendo que todos os homens são gananciosos e querem mais do que seriam merecedores e que assim cumprem as leis por pura conveniência.

[2] Marco Túlio Cícero (106–43 a.C.) em latim: Marcus Tullius Cicero, em grego clássico: ???????; transl.: Kiker?n) foi um advogado, político, escritor, orador e filósofo da gens Túlia da República Romana eleito cônsul em 63 a.C. com Caio Antônio Híbrida. Era filho de Cícero, o Velho, com Élvia e pai de Cícero, o Jovem, cônsul em 30 a.C., e de Túlia. Cícero nasceu numa rica família municipal de Roma de ordem equestre e foi um dos maiores oradores e escritores em prosa da Roma Antiga. Sua influência na língua latina foi tão imensa que se acredita que toda a história subsequente da prosa, não apenas no Latim, como nas línguas europeias, no século XIX seja ou uma reação contra seu estilo ou uma tentativa de retornar a ele. Segundo Michael Grant, “a influência de Cícero sobre a história da literatura e das ideias europeias em muito excede a de qualquer outro escritor em prosa de qualquer língua”. Cícero introduziu os romanos às principais escolas da filosofia grega e criou um vocabulário filosófico latino (inclusive com neologismos como evidentia, humanitas, qualitas, quantitas e essentia), destacando-se como tradutor e filósofo.

[3] Nas clássicas representações do golpe militar que marcou o fim da monarquia no Brasil e o início da República, a imagem do marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), erguendo seu quepe cheio de glórias, é a que prevalece. No quadro de Henrique Bernardelli (1857-1936), o militar é propositadamente recuperado como a figura central, o representante maior dos ideais de liberdade associados ao novo período. Esses e outros retratos da época ajudaram a disseminar uma visão parcial do episódio, apagando outros personagens que desempenharam papel relevante na mudança. Iluminar esses grupos esquecidos é o ponto de partida para apresentar uma visão crítica da proclamação da República aos estudantes. a instauração do novo modo de governo decorre de uma série de fatores que contribuíram para criar um cenário propício à República. Expor essa realidade aos alunos, privilegiando a visão de processo histórico, permite um entendimento mais profundo da realidade política, econômica e social da época. Com base nessa revisão histórica, o próprio papel dos militares no episódio passa a ser relativizado, uma vez que outros agentes com importante função no gradativo enfraquecimento do antigo governo são trazidos à luz. É possível, por exemplo, reavaliar o que de fato ocorreu no dia da proclamação. Em 14 de novembro de 1889, os republicanos fizeram circular o boato de que o governo imperial havia mandado prender Deodoro e o tenente-coronel Benjamin Constant, líder dos oficiais republicanos. O objetivo era instigar o marechal, um militar de prestígio, a comandar um golpe contra a monarquia.

[4] Na república presidencialista, o Chefe de Estado e o Chefe de Governo são a mesma pessoa, e podem ser eleitos tanto de maneira indireta como direta. Desta maneira, o cargo supõe uma responsabilidade imensa e para tirá-lo do cargo há um custo enorme de tempo e energia. Exemplos de república presidencialista com voto direto: Brasil e Argentina. Exemplo de república presidencialista com voto indireto: Estados Unidos.

Na república semipresidencialista convivem o primeiro-ministro e o presidente. Ao contrário das repúblicas parlamentaristas, aqui o presidente é o Chefe de Estado e Governo e o primeiro-ministro é escolhido pelo mandatário. O primeiro-ministro atua como locutor dos interesses do seu partido e do presidente junto ao Legislativo. Em caso de crise, o primeiro-ministro pode ser demitido pelo Congresso ou pelo próprio presidente. Exemplos: França, Portugal e Egito.

Já na república parlamentarista o Chefe de Estado é o presidente, eleito por voto popular, mas não tem poderes efetivos. Sua atuação se resume aos casos de crises e exerce como representante do país no exterior. Por sua vez, o Chefe de Governo é o primeiro-ministro que é eleito durante as eleições legislativas. Geralmente, o primeiro-ministro é o deputado que encabeçou a lista de candidatos do partido mais votado nas eleições. O primeiro-ministro pode ser demitido a qualquer momento, especialmente se seu governo não esteja agradando sua coalização partidária. Também se a oposição consegue os votos necessários para derrubar o governo. Igualmente, se for um governo de coalizão, com vários partidos fazendo parte do Poder Executivo, e um dos partidos deixar esta aliança, o governo termina e novas eleições devem ser convocadas. Exemplos: Alemanha e Índia.

[5] O problema está em saber o que é um povo, essa expressão derivada do latim populus, equivalente ao grego demos. Porque, povo tanto pode significar o corpo total dos cidadãos, como uma parcela deste, tomando a parte pelo todo. Desde o grupo constituído pelas classes mais baixas, ou mais pobres, ao multitudinário, ao que se manifesta ou se movimenta, onde há sempre uma minoria dinamizadora que organiza a manifestação ou promove o movimento e onde até não faltam os vanguardistas que querem construir o mesmo povo. O povo distingue-se da multidão ou populaça (plethos) ou da massa, enquanto grande número (polloi). Esta, por vezes, dita plebs, vulgus e multitudo, chega a ser vista depreciativamente sempre que dominam concepções aristocráticas, como acontecerá com o humanismo renascentista. Segundo Cícero, o povo (populus) não é uma multidão unida de qualquer maneira (coetus multitudinis quoque modo congregatus), mas antes como uma multidão unida pelo consenso do direito e pela utilidade comum.

[6] Em toda comunidade ou grupo de pessoas existe um imaginário coletivo, ou seja, um conjunto de símbolos, costumes ou lembranças que tem significado específico para ela e comum a todas as pessoas que fazem parte dela. Por exemplo, nos países ocidentais existe uma religião predominante que é o Cristianismo. Mesmo para pessoas que não são cristãs, os símbolos do cristianismo, a história e os valores são muito conhecidos. A grande maioria das pessoas conhece a história de Jesus, e de alguns outros personagens bíblicos, pois fazem parte do chamado “imaginário coletivo”.

[7] George Michael Claude André Dubai (1919-1996) foi um historiador francês, especialista em Idade Média. Deu início à sua carreira universitária em Lyon, no ano de 1949 onde foi aluno e logo após o termino de seus estudos se tornou professor assistente, tendo sido posteriormente professor na Universidade de Bonançoso, passando também por Aix-en-Provence. Membro da Academia Francesa e professor do Collège de France entre os anos de 1970 e 1992. Foi um especialista em história medieval, lançou mais de 70 livros e coordenou coleções importantes, como a História da Vida Privada.

[8] Jacques Le Goff (1924 -2014) foi um historiador francês especialista em Idade Média. Autor de dezenas de livros e trabalhos, era membro da Escola dos Annales, pertencente à terceira geração, empregou-se em antropologia histórica do ocidente medieval. Antigo estudante da École Normale Supérieure, estudou na Universidade Carolina em 1947-48, professor de história em 1950 e membro da École Française de Rome, foi nomeado assistente da Faculté de Lille (1954-59) antes de ser nomeado pesquisador no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica), em 1960. Em seguida, mestre-assistente da VI seção da École pratique des hautes études (1962) – sucedeu a Fernand Braudel no comando da École des hautes études en sciences sociales, onde ele foi diretor dos estudos. Cedeu seu lugar a François Furet em 1967. Na qualidade de diretor de estudo na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Jacques Le Goff publicou estudos que renovaram a pesquisa histórica, sobre mentalidade e sobre antropologia da Idade Média. Seus seminários exploraram os caminhos então novos da antropologia histórica. Ele publicou os artigos sobre as universidades medievais, o trabalho, o tempo, as maneiras, as imagens, as lendas, as transformações intelectuais da Idade Média. Le Goff atuou no sentido de levar a História para além do mundo acadêmico, apresentando um programa na rádio estatal francesa France Culture, sendo consultor de produções para a TV e cinema, incluindo o filme “O Nome da Rosa”, adaptação do livro de Umberto Eco, estrelado por Sean Connery. Era poliglota, sendo fluente nos idiomas inglês, italiano, polonês e alemão.

[9] O termo cidade-Estado significa cidade independente, com governo próprio e autônomo, sendo comum, esta denominação, na antiguidade, principalmente na Grécia Antiga, tais como Tebas, Atenas e Esparta. Mais tarde, as cidades-Estado e suas ligas, também vieram a fazer um papel importante na península Itálica. Por exemplo, as repúblicas de Gênova, Pisa, Florença, Amalfi e, a mais famosa de todas, Veneza. O mesmo ocorreu na Alemanha, como a Liga Hanseática medieval (‘Hansa’ é um termo do alemão antigo que significa ‘Liga’). Na Alemanha moderna existem três cidades que muitas vezes podem ser classificadas erroneamente de cidades-Estado: Hamburgo, Berlim e Bremen, que apesar de não pertencerem a nenhuma província ou subdivisão do país (tendo status político ao mesmo nível destas), ainda estão sob o poder da República Federal da Alemanha, isto é, não são independentes, como uma cidade que é corretamente tida como “cidade-Estado” deve ser (como é o caso de Singapura).

[10] Como San Marino é o terceiro menor país do mundo (perde para Mônaco e Vaticano) não é possível chegar ao país de trem ou avião. Com esses meios de transporte é possível chegar até a cidade de Rimini e de lá pegar um ônibus. A história de São Marino começa ainda no século IV quando São Marino e um grupo de monges dentre eles San Leo fugiram para os Apeninos (Cordilheira que corta a Itália) por conta da perseguição do imperador Diocleciano contra os católicos e se refugiaram no monte Titano. A comunidade de San Marino foi crescendo e possuía suas próprias regras independentes dos ducados que os cercavam. No ano de 1243, o primeiro conselho da até então comunidade de San Marino foi formado com intuído de organizar a política da comunidade. Em 1291 o Papa Nicolau IV reconheceu a comunidade como um estado independente garantido a San Marino o título de primeira república do mundo. A independência de San Marino foi confirmada pelo Papa Urbano VIII em 1631.

[11] Dentre as acusações polêmicas de Berlin encontra-se a inclusão de Rousseau na sua lista dos pensadores que considerava traidores da causa da liberdade. E, dentre as ideias perniciosas atribuídas a Rousseau, a mais perniciosa, segundo Berlin, é sua visão de que, para encontrar a verdadeira liberdade, é preciso render-se incondicionalmente à vontade geral. Trata-se de uma submissão incondicional, pois, como interpreta Berlin, Rousseau não à deriva, tal como em Hobbes, de um acordo ou de um “trade-off” entre interesses pessoais, mas de um ato racional por meio do qual cada um se submete a ninguém mais senão a si mesmo. É assim que a famosa frase de Rousseau de que a sociedade pode legitimamente forçar cada um a ser livre faria sentido. Rousseau parte, como era costume, de uma pressuposição voluntarista: somente se é livre quando se faz aquilo que a própria vontade comanda.

[12] O que o racionalismo buscava, na verdade, era conhecer a essência. Por isso, não se prendia aos fatos ou ao mundo sensível, mas afirmava que a razão humana poderia transcender e chegar ao conhecimento de realidades transcendentes. Pela força da abstração e das concatenações racionais. Essa corrente se aproximava, assim, da metafísica, de Platão. Não se pode, entretanto, incorrer no erro de achar que o Racionalismo é apenas uma corrente teórica. Ao contrário, terá consequências também na ética e, mesmo, na política como veremos a seguir. Procuraremos também fazer a relação entre o racionalismo e a fé, mostrando como seus principais expoentes, Descartes, Kant e Hegel, trataram da problemática acerca de Deus e da religião, tema central das discussões filosóficas medievais, agora com as contribuições do homem moderno.

[13] Sir Moses Finley (1912-1986) foi um historiador americano radicado na Inglaterra, especialista na economia do mundo greco-romano. Suas obras também incluem estudos sobre a política e sociedade gregas, e ensaios teórico-metodológicos sobre o estudo da Antiguidade. É o principal expoente da vertente primitivista dos estudos sobre a economia antiga, defendendo que valores como o status e a ideologia cívica governavam a economia antiga ao invés de motivações econômicas racionais.

[14] A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do Estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O Estado é um organismo moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social. Visto que o Estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas se compõem de muitos indivíduos, antes de tratar propriamente do estado será mister cogitar da família, que precede cronologicamente o estado, como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, naturalmente, do chefe a que pertence a direção da família. Deve este guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes. Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim educativo, tem também um fim econômico. E, como ao Estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades materiais. No entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários instrumentos inanimados e animados; estes últimos seriam os escravos. Não obstante a sua concepção ética do Estado, Aristóteles, diversamente de Platão, salva o direito privado, a propriedade particular e a família. O comunismo como resolução total dos indivíduos e dos valores no estado é fantástico e irrealizável. O Estado não é uma unidade substancial, e sim uma síntese de indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a unidade absoluta, será mister reduzir o estado à família e a família ao indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta aos dois precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das castas, e, precisamente, duas classes reconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores, sem direitos políticos.

[15] O termo “ciência política” foi cunhado em 1880 por Herbert Baxter Adams, professor de História da Universidade Johns Hopkins. A ciência política é a teoria e prática da política e a descrição e análise dos sistemas políticos e do comportamento político. Abrange diversos campos, como a teoria e a filosofia políticas, os sistemas políticos, ideologia, teoria dos jogos, economia política, geopolítica, geografia política, análise de políticas públicas, política comparada, relações internacionais, análise de relações exteriores, política e direito internacionais, estudos de administração pública e governo, processo legislativo, direito público (como o direito constitucional) e outros. A ciência política emprega diversos tipos de metodologia. As abordagens da disciplina incluem a filosofia política clássica, interpretacionismo, estruturalismo, behaviorismo, racionalismo, realismo, pluralismo, institucionalismo e igualitarismo. Na qualidade de uma das ciências sociais, a ciência política usa métodos e técnicas que podem envolver tantas fontes primárias (documentos históricos, registros oficiais) quanto secundárias (artigos acadêmicos, pesquisas, análise estatística, estudos de caso e construção de modelos). Ainda que o estudo de política tenha sido constatado na tradição ocidental desde a Grécia antiga, a ciência política propriamente dita constituiu-se tardiamente. Esta ciência, no entanto, tem uma nítida matriz disciplinar que a antecede como a filosofia moral, filosofia política, política econômica e história, entre outros campos do conhecimento.

[16] A República contém diversos temas filosóficos, sociais e políticos entrelaçados. A questão chave é a da justiça em seu sentido amplo, oportunidade que Platão aproveita para tecer comentários sobre a educação e o tema genérico do conhecimento das coisas. O livro I goza de uma certa independência, sendo que os demais (ao todo são X), se dispersam em temas variados: A formação das lideranças (os guardiões), nos livros II, III, IV e V. A formação dos governantes, classe especial dos guardiões, nos livros VI e VII. Uma vez compreendida a tarefa pública, Platão a compara com o que acontece nas cidades existentes (livro VIII). Diante do desafio de Trasímaco ao tratar das conveniências da tirania (livro IX), Platão termina (livro X), com a proposição de um mito (sobre a arte, o destino e a liberdade).

[17] O povo, em nossa República, não é alienado, é pior pois, é alijado. E, o motivo é a engrenagem do maquinário republicano nasceu com defeito de fabricação, e na base desse defeito está o conceito sociológico de patrimonialismo, desenvolvido por Max Weber, mas tratado, aqui, além da simples apropriação do público pelo privado — patrimonialismo bem mais amplo, o patriarcado da Casa Grande e do velho coronelismo. O nosso patrimonialismo foi amplamente estudado (de Gilberto Freyre a Sérgio Buarque de Holanda, de Raymundo Faoro a Fernando Henrique Cardoso e Maria Sylvia de Carvalho Franco), e tal estudo é importante na explicitação do poder das elites — é um “entre-lugar” a separar e a juntar, ao mesmo tempo, sociedade e Estado, na exata análise do sociólogo André Botelho.

[18] Para Gadamer, “o conceito de práxis que se desenvolveu nos últimos dois séculos é uma deformação horrível do que a práxis é em realidade”, ou seja, na modernidade o conceito vem sendo utilizado enquanto uma execução prática de uma teoria científica aplicada a modalidades tecnológicas.Com relação ao conceito de práxis, Heidegger difere de Aristóteles, pois o primeiro atribui à práxis a superioridade sobre todas as características do homem, enquanto autênticas decisões relativas ao Dasein. Enquanto que Aristóteles enxerga a práxis como uma simples disposição da alma ou de atividades, sendo a filosofia prática somente uma parte, que, inclusive, não é considerada a mais importante, reconhecendo que a ética é do âmbito da práxis (racionalidade humana e ação humana) e, portanto, não é uma ciência exata como a matemática, uma vez que, como já foi dito, cabe ao agente da ação possuir o discernimento na aplicação de princípios generalizantes em suas ações individuais.

[19] Se nos anos sessenta e setenta, a América Latina ofereceu numerosos exemplos de regimes autoritários, nos anos 80 ela passou a oferecer muitos exemplos de “novas democracias”. Algumas destas, particularmente as da Argentina, Brasil, Guatemala e Peru, são tomadas aqui como referências, mas pretendo considerar também, embora de modo não-sistemático, alguns casos da Europa Oriental, como a Rússia, Polônia e Hungria. Nos tempos que correm, alguma comparação das transições da América Latina com países da Europa do Leste é não apenas inevitável, mas também desejável.

[20] A relação entre ética e política adquiriu formas e valores bem distintos ao longo da história da humanidade, desde uma forte relação entre ética e política na Antiguidade, uma ruptura entre ambas no Renascimento e início da modernidade, uma crise de valores característica da contemporaneidade até uma proposta atual de reaproximação entre ambas. Uma marca característica da ética na Antiguidade é sua indissociabilidade com a política. Desde Platão e seu discípulo Aristóteles, que a ideia de constituição da polis é perpassada pelo princípio de que a cidade deve ser dirigida por governantes sábios, justos e virtuosos. É de Aristóteles, por exemplo, a afirmação de que o homem é um animal político – zoon politikon. “Trata-se de um homem ‘essencialmente destinado à vida em comum na polis e somente aí se realiza como ser racional. Ele é um zoon politikón por ser exatamente um zoon logikón, sendo a vida ética e a vida política artes de viver segundo a razão’”. E, Hélcio Corrêa afirma que na polis grega o cidadão só é reconhecido como tal a partir de sua inserção na comunidade política e a razão prática que norteia a ação do cidadão grego está intimamente ligada ao ethos “[…] entendido este como um conjunto de tradições, costumes e valores próprios da vida na polis” e, no caso de Aristóteles, “[…] as noções de ética e política se completam reciprocamente na teoria da justiça”.

[21] Henrique Cláudio de Lima Vaz, S.J. (1921—2002) foi um padre jesuíta, professor, filósofo e humanista brasileiro. Autor de uma vasta obra filosófica, hoje preservada e divulgada em seu memorial mantido pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

[22] A ideia de justiça, segundo se verifica da doutrina, remete a diversos segmentos que a tornam subdividida na construção de um consenso delineador. Para grande parte dos doutrinadores, para se cogitar em justiça é necessário saber primeiro de qual segmento de justiça se está falando. Para John Rawls, por exemplo, a justiça ganha destaque no estudo das relações sociais, é a chamada “justiça social” que decorre da chamada justiça distributiva, em que se objetiva a distribuição dos bens existentes entre todos os indivíduos de uma sociedade, o que pode ocorrer inclusive da redistribuição por meio dos tributos. Percebe-se que o conceito de Justiça trazido por Ulpiano é uma ideia que predomina no sistema normativo até nos dias de hoje, correlacionando-se com a teoria de Spencer que defendia que “a justiça é determinada pela liberdade que cada um tem de fazer aquilo que quer, logo que não ofenda a liberdade igual dos outros”.

[23] Hannah Arendt (nascida Johanna Arendt; 1906–1975) foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, fizeram-na decidir emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da “teoria política”. Arendt defendia um conceito de “pluralismo” no âmbito político. Graças ao pluralismo, o potencial de uma liberdade e igualdade política seria gerado entre as pessoas. Importante é a perspectiva da inclusão do Outro. Em acordos políticos, convênios e leis, devem trabalhar em níveis práticos pessoas adequadas e dispostas. Como frutos desses pensamentos, Arendt se situava de forma crítica ante a democracia representativa e preferia um sistema de conselhos ou formas de democracia direta. Entretanto, ela continua sendo estudada como filósofa, em grande parte devido a suas discussões críticas de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Immanuel Kant, Martin Heidegger e Karl Jaspers, além de representantes importantes da filosofia moderna como Maquiavel e Montesquieu. Justamente graças ao seu pensamento independente, a teoria do totalitarismo (Theorie der totalen Herrschaft), seus trabalhos sobre filosofia existencial e sua reivindicação da discussão política livre, Arendt tem um papel central nos debates contemporâneos.

[24] O Brasil passou a adotar o regime republicano a partir do dia 15 de novembro de 1889, quando um golpe articulado pelo Exército e parte da elite cafeicultura, depôs o Imperador Dom Pedro II. Na Constituição de 1891 foi definida a república presidencialista como forma de governo. Igualmente, estava prevista a realização de um referendo para consultar à população qual o regime político deveria ser implantado no Brasil. No entanto, esta consulta só aconteceu em 1992, com a vitória da república presidencialista. Somente na década de sessenta o Brasil passaria brevemente por uma experiência de república parlamentarista. Isto aconteceu para contentar os militares e a direita, que desejavam impedir a posse de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. É muito comum pensar que a república é sinônimo de democracia. Afinal, as duas tem origem no mesmo lugar, a Grécia Antiga. Porém, democracia não é forma de governo. É uma organização social, onde os cidadãos têm direitos garantidos assim como deveres a cumprir. Portanto, a democracia pode existir tanto na República quanto na Monarquia. No entanto, a república pode privar os seus cidadãos de direitos políticos, instituir a censura e decretar prisões arbitrárias. Caso isso acontecesse, estaríamos diante de uma ditadura. Igualmente, quando o poder do rei não é limitado por um Parlamento ou uma Constituição, o regime de governo é chamado de monarquia absoluta.

[25] Nesse novo milênio, onde a ciência e a tecnologia se desenvolvem acentuadamente mais do que a existência humana interior. Porém, apesar de importantes inegáveis conquistas do homem não proporcionam igual evolução na seara ética e moral. A atividade material homem gera até uma sadia disputa para melhor se colocar na sociedade. Os meios de comunicação, por sofisticados processos têm o poder de conduzir o homem, lhe impondo valores de forma quase mecânica. Entre estes podemos identificar a discriminação. A grande disputa de espaços e a perene luta pelo poder brutalizam o homem, que passa a ver o seu semelhante como um oponente e competidor, descartando sua identidade de parceiro que habita nesse maravilhoso mundo que a todos agrega. A sociedade passa por uma profunda crise ética e moral, isso porque a prática dos valores humanos foi esquecida. Somos seres dotados de inteligência, isto que nos diferencia dos demais animais — não questionam o passado, e também não se preocupam com o futuro na medida em que são conduzidos mecanicamente por seu instinto de conservação — temos como atributo a capacidade de distinguir o certo do errado, através do livre-arbítrio. Mas como também estamos sujeitos a natureza, os apetites, paixões e inclinações também são fatores que contribuem para dirigir nossos atos. Usando mal nossa capacidade, o critério ao utilizar a razão deve encontrar a verdade sobre si mesmo. Esse formato será de grande valia no desenvolvimento das qualidades fundamentais na realização dos valores.

[26] Como conceito, a justiça social parte do princípio de que todos os indivíduos de uma sociedade têm direitos e deveres iguais em todos os aspectos da vida social. Isso quer dizer que todos os direitos básicos, como a saúde, educação, justiça, trabalho e manifestação cultural, devem ser garantidos a todos. Essa ideia parte do princípio de que não é possível falar em desenvolvimento de uma sociedade considerando apenas o crescimento econômico. Nesse sentido, a noção de justiça social está atrelada à construção do que é chamado de Estado de Bem-Estar Social, isto é, um tipo de organização política que prevê que o Estado de uma nação deve prover meios de garantir seguridade social a todos os indivíduos sob a sua tutela, o que significa que o acesso a direitos básicos e as ações de seguridade social devem ser estendidos a todos. A justiça social, entretanto, diferencia-se da ideia da justiça civil, isto é, a justiça dos tribunais e da imagem da estátua vendada. Enquanto a justiça civil busca a imparcialidade em seu julgamento, sempre partindo dos aparatos legais para justificar suas ações, a justiça social busca a remediação de desigualdades por meio da verificação das dificuldades particulares de cada grupo e da implementação de ações que venham remediar a situação.

[27] Ciro Flamarion Santana Cardoso (1942—2013) foi um historiador brasileiro. Possuía larga produção bibliográfica, incluindo interesses temáticos que vão da Historiografia e da Metodologia da História até os estudos sobre Antiguidade e, mais particularmente dentro deste campo, a Egiptologia. Também foi responsável por uma revisão significativa da discussão conceitual acerca do escravismo colonial brasileiro, contribuindo para o estabelecimento do conceito de “Modo de Produção Escravista Colonial” nos anos 1980. Um dos primeiros livros, talvez o que o tornou mais conhecido do público acadêmico nos primeiros tempos por ter se propagado como uma manual importante no campo da metodologia da história, foi Os métodos da História, livro que escreveu em parceria com Hector Perez Brignole no período em que foi professor da Universidade da Costa Rica, durante o período repressivo da Ditadura Militar no Brasil. A morte de Ciro Flamarion Cardoso causou impacto na comunidade de historiadores brasileiros. Em nome da Associação Nacional de História (ANPUH), Sílvia Petersen emitiu nota de pesar pelo seu falecimento. A Revista de História da Biblioteca Nacional também prestou suas homenagens.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. À procura da definição de República. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-procura-da-definicao-de-republica/ Acesso em: 03 jul. 2025
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