A mulher casada e a nova Constituição
Maria Berenice Dias*
Sumário: 1. A divergência jurisprudencial; 2. A nova Carta Constitucional; 3. Postura dos Tribunais ante a nova Carta; 4. O âmbito dos Embargos de Terceiro; 5. Conclusão.
Darás à luz com dor os filhos e estarás sob o poder do marido,
e ele te dominará.
(Gênesis 3:16).
1. A divergência jurisprudencial
Longa foi a trajetória da mulher, para chegar ao seu atual estágio de completa igualdade e independência, agora erigida à categoria de preceito constitucional.
Dispunha a mulher casada da condição de relativamente incapaz, situação que persistiu até 1962, quando a Lei nº 4.121/62 lhe reconheceu a plena capacidade civil. Apesar do largo passo que representou o chamado Estatuto da Mulher Casada, ainda restaram algumas restrições à mulher, permanecendo em um plano de inferioridade com relação ao cônjuge varão. Mesmo tendo passado a ser considerada colaboradora e companheira do marido, ele era o cabeça-do-casal. Competia-lhe a representação legal da família, a chefia da sociedade conjugal e o direito de fixar o domicílio familiar. Também detinha o poder de administrar os bens comuns, incumbindo-lhe o ônus de prover o sustento do lar.
Em benefício da mulher, foi reconhecida a existência do chamado bem reservado, patrimônio formado pelos frutos e bens de qualquer natureza, adquiridos com o produto de seu trabalho profissional. O capital assim amealhado, pela regra do parágrafo único do art. 246 do CC,[1] não respondia pelas dívidas do marido, só perdendo esse caráter de incomunicabilidade se os encargos tivessem sido assumidos em benefício da família. Em face dessa regra de caráter excepcional, consolidou-se o entendimento de que o patrimônio comum responde pelas dívidas do marido, em face da presunção de que foram contraídas em favor da família.
A divergência que se estabeleceu na jurisprudência diz tão-só com a identificação de quem possui o ônus de provar que houve o favorecimento familiar, para dar ensejo ao comprometimento da meação da mulher. Mais acirrada se mostra a polêmica, quando a obrigação decorre da prestação de aval, chegando-se ao detalhe de diferenciar se a garantia decorreu de mero ato de liberalidade ou foi outorgada a pessoa jurídica da qual participa o avalista.
Consolidou-se a posição ditada pelo Supremo Tribunal Federal, que entende tratar-se de uma presunção juris tantum, por assentar-se em prova prima facie de haver o beneficiamento, imputando à mulher, que busca livrar sua meação, o ônus de comprovar que a dívida não foi contraída em proveito familiar. Essa postura vem-se mostrando prevalente, de forma não-unânime, nas 2ª, 4ª e 5ª Câmaras Cíveis do Tribunal de Alçada do RS, sendo a posição majoritária do 2º Grupo Cível, em sede de embargos infringentes, conforme acórdão publicado na respectiva Revista, v. 66, p. 197.
Já o Superior Tribunal de Justiça, bem como as 1ª, 3ª e 6ª Câmaras da mesma Corte Estadual, também sem unanimidade, imputam ao credor o ônus de comprovar que a dívida restou contraída em benefício da família, para que a constrição judicial venha a abranger bens da meação da mulher.
2. A nova Carta Constitucional
A divergência posicional ainda se encontra viva, mesmo após o advento da Constituição Federal, cujo art. 5º, inciso I, consagra que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, estabelecendo o § 5° do art. 226: os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
Com o surgimento do novo ordenamento jurídico, restou derrogada toda a legislação infraconstitucional, só sendo recepcionadas pelo novel sistema as normas que com ele não guardam divergência. Sérgio Gischkow Pereira[2] proclama a revogação de todos os dispositivos legais que contemplam normas capazes de colocar a mulher em situação de subordinação e inferioridade.
Pedro Sampaio afirma que a nova disciplina veio a modificar o poder de que estava investido o chefe de família de gerir os bens comuns do casal, sendo que todos os atos concernentes à chefia da sociedade conjugal, elencados nos incs. I, II, III e IV do art. 233 do CC, devem ser praticados conjuntamente pelo marido e pela mulher para estarem juridicamente perfeitos.
A disposição constante do texto constitucional, igualando os direitos dos casados como chefes da sociedade conjugal, leva à clara conclusão de que qualquer ato praticado por um dos cônjuges deve ser efetuado com a anuência do seu par e vice-versa.[3]
O reconhecimento da absoluta paridade jurídica do casal também levou à unânime conclusão de que não mais existem bens reservados. Ora, desigualdade patrimonial típica está embutida no art. 246 do CC. Permite ele somente à mulher que os bens adquiridos com o produto do seu trabalho sejam de sua exclusiva propriedade, mesmo sendo de comunhão universal o regime de bens. Porque é desigualdade, não deve prevalecer.[4]
3. Postura dos tribunais ante a nova Carta
A posição sustentada pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo voto vencedor do Ministro Athos Gusmão Carneiro, atenta no novo disciplinamento, mas resta apenas por atribuir o ônus probatório ao credor, como se vê da decisão de sua 4ª Turma, datada de 20/3/1990.
O Segundo Grupo Cível do Tribunal de Alçada do Estado assim se manifestou no julgamento dos Embargos Infringentes de nº 187053822: Ao estabelecer a nova Carta Constitucional a paridade de direitos e obrigações entre o homem e a mulher na sociedade conjugal (art. 226, parágrafo 5º), longe de afastar a presunção supra, só fez crismar a sua permanência, ao neutralizar a superada inspiração protetiva da mulher que impregnava o Código Civil e o Estatuto da Mulher Casada.
No julgamento da Apelação Cível nº 190111692, o voto vencido, da lavra do eminente Juiz José Maria Rosa Tesheiner, merece especial destaque ao afirmar:
Confesso. Não consigo extrair, da sistemática do Código Civil, tal como ora vige, a conclusão de que a mulher deve responder pelas dívidas do marido, por presunção de que foram contraídas a benefício da família.
… A sociedade mudou. Mudou a posição da mulher na família e, portanto, também a do marido. Há uma lei nova, estabelecendo o princípio de que as obrigações assumidas pelo marido não obrigam a meação da mulher. Contudo, julga-se como se não tivesse havido lei alguma. Como se ainda estivéssemos na primeira metade do século, ou no século passado.
… A igualdade entre os cônjuges é um princípio superior ao do domínio/sujeição. A lei nova é melhor do que o velho Código Civil. Por isso é que me insurjo e me revelo contra uma interpretação que teima em manter vivo um passado já morto.
… Por fim, soa-me ridícula a invocação do artigo 226, parágrafo 5º, da Constituição da República, em apoio à tese da maioria. Efetivamente, exatamente em virtude da igualdade dos cônjuges em direitos e obrigações é que a declaração de vontade do marido não responsabiliza a meação da mulher, assim como as obrigações assumidas ou garantidas pela mulher não importam em responsabilidade da meação do marido.
Não fosse sua posição referente à possibilidade de o credor comprovar o benefício em prol da família para ensejar o comprometimento da meação da mulher, não teria a menor dúvida em subscrever na íntegra a tão bem dimensionada manifestação. No entanto, coloco-me em antagonismo tão-só quanto à possibilidade de haver a sujeição dos bens que integram o patrimônio da mulher em atendimento de dívida que não assumiu. Tenho para mim que desimporta eventual beneficiamento da família. Se não houve a vênia marital, não pode a meação responder por dívida do par.
4. O âmbito dos Embargos de Terceiro
Segundo afirma Liebman, os embargos de terceiro são uma ação proposta por terceiro em defesa de seus bens contra execuções alheias.[5] Em se tratando de demanda possessória, com carga de eficácia preponderantemente mandamental, como afirma Araken de Assis, dispõe de legitimação para a mesma os que tiverem seus bens sujeitos a atos executórios, mas que não estão sujeitos à responsabilidade executiva.[6]
Nesses termos, o pressuposto para a ação é a comprovação do domínio ou posse do bem que restou constrito judicialmente. A não-participação do autor na relação de direito material sob execução lhe atribui a qualidade de terceiro.
O eventual benefício advindo a alguém em face da obrigação cujo adimplemento é perseguido judicialmente não o integra na relação jurídica nem pode atingir seu patrimônio, uma vez que o art. 591 do CPC consagra a responsabilidade patrimonial dos bens do devedor. O inc. IV do referido dispositivo só leva ao comprometimento dos bens do cônjuge quando eles respondem pela dívida.
Não mais vigorando os pressupostos que ditaram a posição jurisprudencial de presunção de que os débitos contraídos pelo marido o são em benefício da família, encontra-se afastada totalmente a possibilidade de comprometimento patrimonial da meação da mulher que não subcreveu a obrigação. Não mais cabendo ao cônjuge varão a administração dos bens do casal, a representação legal da família e o ônus pelo seu sustento, não mais se pode presumir que as obrigações que assumiu o foram para atender a dita obrigação legal. Gerada pela norma constitucional a responsabilidade igualitária de ambos os cônjuges, não há como falar em solidariedade presumida por parte de quem não mais é representado por outrem.
Igualmente, o pressuposto outro que lastreava as posições judiciais e que decorria da norma do parágrafo único do art. 246 do CC – de que os bens reservados da mulher respondiam pelas dívidas do marido contraídas em benefício da família – não mais vige, em face da ab-rogação do indigitado dispositivo.
Havendo deixado de existir qualquer norma legal a impor a um dos cônjuges obrigação com relação ao outro, bem como não havendo sido outorgados deveres díspares de administração, não é possível sequer presumir a possibilidade de assunção de obrigação para atender a esses encargos que, sob tal rótulo, venham a comprometer o patrimônio alheio.
5. Conclusão
Com o advento do novo regramento de ordem constitucional, reviveu o art. 3º da Lei nº 4.121/62, em toda a sua magnitude, ao estipular: Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmados por um só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares e os comuns até o limite de sua meação.
Essa regra não gera qualquer presunção, pois desimporta o fato de haver a dívida beneficiado outrem, para o comprometimento de patrimônio alheio. Nem necessita o cônjuge alegar que o débito não foi contraído em benefício da família para legitimar o uso, com sucesso, dos embargos de terceiro. Também não constitui fundamento bastante para excluir a pretensão desconstitutiva o fato de haver ocorrido eventual aproveitamento da sociedade familiar. Basta a comprovação pelo cônjuge de que foi atingida sua meação, por ato judicial decorrente de demanda da qual não é parte, para que ocorra a desoneração patrimonial.
De outro lado, não se apresenta como fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da embargante a alegação do credor de que o débito veio em seu benefício ou da família, como forma de persistir a penhora sobre a totalidade do bem. Tal tipo de exceção não serve para o comprometimento de patrimônio de quem não assumiu a obrigação, não havendo presunção a elidir.
Assim, a partir do novo ordenamento jurídico, descabe qualquer discussão a respeito do ônus probatório, tema que tanto vem agitando a jurisprudência, já que essa prova não mais serve para atingir patrimônio de quem não assumiu qualquer obrigação. Não mais possui o marido legitimidade para contrair dívidas que possam comprometer a meação da mulher. Se o desiderato é o beneficiamento do casal ou da família, para atingir o patrimônio comum mister que a obrigação seja assumida por ambos, co-administradores da entidade familiar.
Se o chamado Estatuto da Mulher Casada, apesar da clareza de suas disposições, não logrou vencer a conservadora posição dos doutos, ante a norma constitucional descabe a permanência de qualquer resquício que enseje o reconhecimento da superioridade ou supremacia do homem frente à mulher na esfera jurídica.
[1] A referência é ao Código Civil de 1916.
[2] PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas questões de Direito de Família na nova Constituição. Revista AJURIS, Porto Alegre, 1989, v. 45, p. 135, e O bem reservado e a Constituição Federal de 1988. Revista AJURIS, Porto Alegre, 1991, v. 51, p. 41.
[3] SAMPAIO, Pedro. Alterações Constitucionais nos Direitos de Família e Sucessões, Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 21.
[4] PEREIRA, Sérgio Gischkow. O bem reservado e a Constituição Federal de 1988. Revista AJURIS, Porto Alegre, 1991, v. 51, p. 41.
[5] LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de Execução, 3ª ed., S. Paulo:Saraiva, 1968, p. 96.
[6] ASSIS, Araken de. Manual do Processo de Execução, Porto Alegre: Lejur, 1987, v. II, p. 1.046.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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