Direito Civil

O testamento militar no direito brasileiro

THE MILITARY TESTAMENT IN BRAZILIAN LAW

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal analisar o testamento militar no direito brasileiro. Para que seja possível o leitor ter uma noção mais exata a respeito deste instituto jurídico, optou-se por, depois da elaboração de uma breve introdução, apresentar as suas origens histórias, principalmente durante a vigência do direito romano, em todas as suas épocas. Ainda sobre o desenvolvimento do tema ao longo do tempo, entendeu-se que haveria a necessidade de fazer alusão às Ordenações Filipinas, Diploma que vigorou por mais de trezentos anos no Brasil, tendo sido revogado somente em razão da promulgação Código Civil de 1916. Este último texto legislativo, por seu turno, foi analisado concomitantemente com o Código Civil atual em razão de a matéria ter sido regulamentada, em ambas as legislações, de forma um tanto semelhante. Assim, após a elaboração de capítulo específico sobre as características gerais, a atenção se voltou às diversas formas de elaboração do testamento militar, quais sejam, público, cerrado e nuncupativo. Antes da conclusão houve a oportunidade de tratar das hipóteses de caducidade do ato declaratório de última vontade.

Abstract: The main objective of this paper is to analyze the military testament in the Brazilian law. In order to make it possible for the reader to have a more exact notion about this juridical institute, it has been decided, after a brief introduction, to present its historical origins, especially during Roman law, during different epochs. Still on the development of the theme over the time, it has been understood that there would be a necessity to refer to the Philippine Ordinances, a law that had been enforced during more than three hundred years in Brazil, and was revoked only by the Civil Code, in 1916. This last legislative text, in turn, has been analysed in comparison with the current Civil Code because the matter has been regulated, in both laws, in a somewhat similar way. Thus, after the elaboration of a specific chapter on the general characteristics, the attention has been turned to the various forms of the military will, i.e, public, closed and «nuncupativo». Before the conclusion, there is the opportunity to deal with the hypotheses of expiration of the declaration act of last will.

Palavras-chave: Testamento militar – Origem histórica – Características gerais – Espécies de testamento – Caducidade

Keywords: Military Testament – Historical Origin – General Characteristics – Species of testament – Expiration

Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica. 3. Características gerais. 4. Espécies de testamento militar. 3.1. Testamento militar público. 3.2. Testamento militar cerrado. 3.3. Testamento militar nuncupativo. 4. Caducidade do testamento militar. 6. Conclusão. 7. Bibliografia

1. INTRODUÇÃO

O testamento militar, especial forma de declaração de última vontade, é um resquício dos povos antigos nas legislações atuais. Sua utilização remonta à Grécia e teve grande aplicação no império romano. Ou seja, seu emprego, pelo que é possível perceber, foi comum em épocas em que os conflitos entre os povos ocorriam em grande escala.

Uma sociedade que vive constantemente em situação de beligerância deve, é certo, regulamentar de forma minuciosa as regras a serem seguidas por aqueles combatentes que pretendem dispor de seus bens, cientes de que podem morrer. Em razão de o indivíduo se encontrar numa condição especial, que não lhe permite a utilização das formas ordinárias, necessária se faz a criação de um mecanismo para que possa ser obedecida a última manifestação vontade.

O testamento militar, mesmo sendo um ato declaratório excepcional, não deixa de receber a devida regulamentação, se bem que está se dá de forma menos solene. Realmente, enquanto para a elaboração de um testamento ordinário diversas formalidades precisam ser preenchidas, no caso aqui estudado exige-se menos.

Não haveria como ser diferente, pois, caso nenhuma formalidade precisasse ser observada, fácil seria a ocorrência de fraude, o que acarretaria insegurança jurídica. Por outro lado, porém, não seria possível exigir o preenchimento de incontáveis requisitos, pois isso inviabilizaria a prática do ato. Logo, o que precisa ser buscado é o equilíbrio, devendo ser levado em conta a situação excepcional em que se encontra o combatente.

Portanto, ao longo deste trabalho, se buscará desenvolver, na medida do possível, um estudo sobre esta forma rara de testamento, que em nosso país é de quase nenhuma utilidade prática, não havendo notícias, na história recente, de seu emprego, o que, embora condene o instituto à morte, garante mais vida ao povo brasileiro. Com efeito, num estado em que é comum o uso do testamento militar, certamente, de forma proporcional, é corriqueira a ocorrência de conflitos armados.

Assim, embora a pretensão seja chamar a atenção para o estudo deste instituto, que está esquecido no mundo jurídico, não se intenta vê-lo utilizado efetivamente, pois nenhuma nação ganha quando a paz não se faz presente.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

O testamento militar provavelmente surgiu quando, já estando minimamente desenvolvida a ciência jurídica, inclusive com a criação da figura do testamento ordinário, pensou-se num modelo que permitisse fosse obedecida a declaração de última vontade daquele que, estando em combate, pretendia dar destino aos seus bens.

Os registros históricos dão conta de que na antiga Grécia já havia sido criada esta figura jurídica, mas ainda sem a previsão de uma regulamentação específica. Com efeito, em tal período havia apenas o costume de tomar por termo aquilo que corresponderia à declaração derradeira do militar.

Nos primórdios da civilização, o surgimento de guerras era algo comum. Raros, na verdade, eram os momentos de paz[1]. Isso porque, não estando desenvolvida, ainda que de forma singela, a ideia de respeito aos direitos humanos, praticamente todos as divergências entre os povos eram solucionadas com o emprego da força.

A conquista de novas terras e o constante receio de perda do território até então possuído faziam com que as populações permanecessem durante muito tempo receosas do futuro de seus guerreiros.

Nestes períodos de incerteza era comum então que o combatente emitisse declaração de vontade a respeito do seu patrimônio. O autor da herança, por ato escrito, instituía herdeiros, deserdava outros, ou seja, costumava determinar por testamento o futuro de seus bens.

Lembre-se ainda que, nos primórdios da civilização, época em que o regime familiar tinha elevada importância, não se buscava apenas, com o testamento, dar destino aos bens daquele que iria falecer. A intenção era também estabelecer como e quem daria seguimento ao culto familiar. Portanto, um forte caráter religioso era visto nos atos de última vontade.

Aliás, mencionada característica nada mais era do que um retrato da época, quando até então não havia uma divisão estanque entre o direito e a religião[2]. Ambos observavam a prática de rituais e eram aplicados em decorrência dos costumes. Existia tanto a reiteração de condutas que, se vistas hoje, configurariam aquilo que se pode entender como sendo algo relacionado ao sistema jurídico como atos de cunho místico.

Os militares, em tempos remotos, eram vistos como pessoas especiais. Aliás, até hoje muitas nações têm notável apreço pela figura do combatente, que com o uso da força defende a nação. De todo modo, é indiscutível que, estando no exercício de sua função, ou seja, em um conflito armado, o militar precisa receber um tratamento jurídico diferenciado. Assim, para que o combatente não morresse sem testar, para ele, já em tempos remotos, era aberta a possibilidade de realização de um ato sem a necessidade do preenchimento de diversas formalidades.

Alguns doutrinadores sustentam a tese de que ainda antes da Lei das XII Tábuas já havia surgido essa espécie de testamento[3]. Referido Diploma jurídico, é importante lembrar, foi editado no período pré-clássico do direito romano e é considerado como a primeira lei escrita do referido império. Até então o direito se baseava principalmente em usos e costumes[4]. Portanto, o testamento militar remonta à época em que havia apenas direito não escrito.

Tratando-se de privilégio criado em favor dos soldados[5], eles poderiam deixar de observar, quando da elaboração, tanto exigências intrínsecas como extrínsecas que eram exigidas para a elaboração de um testamento comum[6].

Era permitido, por exemplo, que o militar morresse deixando mais de um testamento, todos eles com validade. Os referidos documentos não perdiam, outrossim, o valor nem mesmo acaso surgisse algum herdeiro não contemplado em algum desses atos de última vontade.

O guerreiro podia testar de forma diversa dos outros integrantes da sociedade romana. Lhe era permitido contemplar qualquer pessoa. Outra característica do testamento militar dizia respeito à impossibilidade de declaração de inoficiosidade. Outro privilégio assegurado diz respeito sobre a possibilidade de inobservância da lei Falcídia[7].

À medida em que a legislação romana evoluía, surgiam novos requisitos para que a pessoa pudesse testar. Como visto, porém, as formalidades não se aplicavam em sua grande parte para os militares, que dispunham de um sistema diferenciado.

O testamento militar atual se abeberou, de acordo com parte da doutrina, no testamento in procinctu, previsto nas leis romanas. Referida espécie era utilizada por aqueles que pretendiam dispor de seus bens perante o Exército formado em ordem de batalha[8].

O testamento ordinário em Roma, ou seja, o comicial era utilizado por aqueles que tinham capacidade para testar. Sua feitura deveria ser realizada em uma das duas oportunidades no ano, vale dizer, em um dos dois comícios que se realizavam. Isto para dar publicidade ao ato.

Já para os militares, para que o ato de última vontade tivesse validade, era necessário a realização do auspicium, que era uma solenidade dos combatentes, equiparando-se assim aos comícios.

Júlio César foi o primeiro imperador romano a conferir aos combatentes o testamento militar nos termos mencionados, isto é, o in procinctu[9]. Justiniano, no entanto, reduziu sua aplicabilidade e abrangência.

As Ordenação Filipinas, que vigorou no Brasil por mais de trezentos anos, garantiram alguns privilégios aos militares no que toca a sua maior possibilidade de testar. Seus privilégios eram defendidos nos seguintes termos: “pelos trabalhos e perigos da vida, a que os soldados se oferecem por a defensão e conservação da república, com razão se lhes concedem por direito muitos privilégios, principalmente nas disposição de suas últimas vontades. O que nestes reinos muito deve haver lugar por o muito serviço, que a Deus Nosso Senhor e a Nós fazem nas contínuas guerras, que em muitas províncias da Ásia e África temos com os inimigos de nossa Santa Fé Católica”.[10]

3. CARACTERÍSTICAS GERAIS

O código Civil atual, no art. 1.893 trata do testamento militar dispondo que: “O testamento dos militares e demais pessoas a serviço das Forças Armadas em campanha, dentro do País ou fora dele, assim como em praça sitiada, ou que esteja de comunicações interrompidas, poderá fazer-se, não havendo tabelião ou seu substituto legal, ante duas, ou três testemunhas, se o testador não puder, ou não souber assinar, caso em que assinará por ele uma delas”.

Este artigo é quase uma reprodução do art. 1.660 do Código Civil de 1916, que por sua vez é muito semelhante aos arts. 1.944 e 1.945 do Código Civil Português de 1867, conforme observa Ferreira Alves[11].

O novo Diploma, ao invés de utilizar a expressão “Exército”, empregou os termos “Forças Armadas”, a qual, por ser mais abrangente, engloba o Exército, a Marinha e a Aeronáutica.

A redação dos referidos dispositivos normativos não é suficientemente clara, segundo afirma Pontes de Miranda[12]. Para este autor, o Código Civil Alemão e a o Diploma Suíço usaram de melhor técnica.

De todo modo, é possível perceber que o intuito do legislador foi permitir fosse feito testamento pelo militar quando este estivesse em guerra. Porém, a letra da lei dá a entender que não apenas nestas hipóteses se permitirá a utilização da mencionada espécie de ato de última vontade.

Da mesma maneira, observa-se que o legislador não só permitiu sua utilização por militares, uma vez que, lê-se do artigo “demais pessoas”, abrindo assim a possibilidade de uma interpretação extensiva. Maria Helena Diniz, neste ponto, afirma que a possibilidade de feitura de testamento militar por “médicos, enfermeiros, reféns, repórteres, engenheiros, telegrafistas, capelães etc”.[13]

Orosimbo Nonato, por seu turno, entende que o dispositivo em comento abrange, além dos membros que integram regularmente os quadros do exército, também os demais indivíduos armados, guardas e voluntários organizados ou autorizados pelo governo para manutenção da ordem pública ou para a defesa da integridade da pátria[14].

No que se refere a situação de beligerância ou outras ocasiões, uma interpretação possível seria aquela que permitisse o uso da declaração de última vontade toda vez que o militar ou outra pessoa, a serviço das Forças Armadas, estivesse a trabalho com o fim de salvação pública.

Assim, se por acaso ocorresse uma calamidade pública como por exemplo uma enchente, em que o exército fosse acionado para salvar as pessoas que tivessem sido atingidas pela catástrofe, poderia o integrante da corporação utilizar do testamento militar, pouco importando se se trata de uma ocasião bélica ou não.

É compreensível a interpretação extensiva desta regra. O militar que se encontra numa guerra, ou perante uma catástrofe, está em situação de perigo, não dispondo, portanto, dos meios necessários para a feitura de um testamento, o qual deve seguir algumas formalidades.

Por razões as mais diversas, o combatente pode não dispor naquele momento de beligerância ou de calamidade pública de meios para que possa através de ato solene dispor de seus bens.

Não se deve, todavia, utilizar-se de uma interpretação extensiva de modo que se possa englobar nos termos da lei aquele que apenas acompanha os expedicionários. O que a lei visa é proteger os indivíduos que estão em situação de risco por obrigatoriedade de seu serviço.

Há casos, porém, em que se deve entender possível a utilização do testamento militar, mesmo não sendo o testador um daqueles elencados pela lei, ou seja, não se trate de militar ou de qualquer outra pessoa a serviço da Forças Armadas. De acordo com Pontes de Miranda, “aqui, intercedem princípios superiores de direito. Seria desumano, anti-social, negar validade a quem penetrou nos campos de batalha para ver um marido, um filho, ou irmão, um noivo, um pai e lá adoecem, astá a falecer, e quer dispor de seus bens”[15].

Nalgumas hipóteses, por serem situações especiais, se tornaria injusto não conferir validade ao ato praticado, simplesmente por não ter ele seguido a forma prescrita em lei. Portanto, a declaração de última vontade, caso não obedeça por total impossibilidade material o preenchimento de todas as formalidades deve na medida do possível ser considerada válida.

4. ESPÉCIES DE TESTAMENTO MILITAR

O testamento militar pode ser feito de três maneiras, são elas: pública, particular e nuncupativa. Na verdade, não são estas formas idênticas àquelas previstas para o testamento ordinário. Por esse motivo, seria de melhor didática dizer que as três formas de se elaborar o testamento militar se assemelham, respectivamente, ao testamento público, ao testamento cerrado e ao testamento nuncupativo.

Nos próximos tópicos serão explicadas e traçadas as principais características cada uma das espécies.

4.1 Testamento militar público

Esta forma de testamento está disposta no art. 1.893 do Código Civil. Para que tenha validade, não basta apenas o militar mencionar sua vontade de testar. Algumas formalidades devem se seguidas.

Segundo Clóvis Beviláqua faz-se mister: “1º Que o testador, militar ou civil esteja a serviço do exército; 2º Que seja feito em campanha, ou em praça sitiada, ou de comunicações cortadas; 3º Que seja escrito por oficial, o comandante do corpo, ou da seção de corpo destacado, ou, se o testador fôr o oficial mais graduado, por aquele que o substituir; 4º Que seja feito perante duas testemunhas, que assistam ao ato e o assinem depois de lhe ouvir a leitura; 5º Que seja assinado pelo testador, ou por uma terceira testemunha, se ele não souber ou não puder assinar; 6º que do instrumento lavrado conste não haver tabelião no lugar”[16].

O testamento será redigido pelo oficial militar, via de regra. No entanto, caso o testador esteja adoentado e recolhido em hospital, o documento será escrito pelo oficial médico ou pelo diretor do estabelecimento.

O ato causa mortis deve ser feito perante duas testemunhas caso o testador possa assinar. E perante três em não podendo.

Se o autor da herança faça parte do corpo destacado ou seção de corpo destacado, o testamento será redigido pelo seu comandante. Isso ocorrerá mesmo no caso de ser tratar de oficial de menor graduação.

Caso o testador seja o oficial mais graduado o testador, deverá o ato ser redigido por aquele que tem poderes para o substituir.

O comandante “a que se refere o Código Civil é o da unidade imediata: a primeira patente superior que comanda. Se a seção do corpo se acha separada – de guarda, de vigia, de reconhecimento, de exploração – o chefe dêste grupo sozinho é o oficial público a que se refere a lei”[17].

4.2 Testamento militar cerrado

Esta segunda forma de elaboração de testamento militar, como o próprio título do subitem diz, se assemelha ao testamento cerrado.

Trata-se de uma forma mais simplificada. Encontra previsão no disposto no art. 1.894 do Código Civil, assim redigido “se o testador souber escrever, poderá fazer o testamento de seu punho, contanto que o date e assine por extenso, e o apresente aberto ou cerrado, na presença de duas testemunhas ao auditor, ou ao oficial de patente, que lhe faça as vezes neste mister”.

No parágrafo único, a regra a ser seguida é a de que “o auditor, ou o oficial a quem o testamento se apresente notar, em qualquer parte dele, lugar, dia, mês e ano, em que lhe for apresentado, nota esta que será assinada por ele e pelas testemunhas”.

A redação do mencionado artigo não deixa dúvida. Basta que o testador seja letrado, e que de próprio punho redija sua declaração de última vontade em documento a ser apresentado de forma aberta ou cerrada ao auditor, ou na sua falta ao oficial de patente, devendo, também datar e assinar de forma extensa.

O documento deverá ser apresentado ao auditor ou oficial na presença de duas testemunhas. O auditor recebendo este documento deverá anotar em seu bojo, ou seja, em qualquer lugar, o lugar, dia, mês e ano em que lhe foi apresentado, devendo também as duas testemunhas assinar a nota.

Portanto, são requisitos desta forma de testamento militar: “1º Que o testador escreva o testamento do seu punho, date e assine por extenso; 2º Que o apresente, cerrado ou aberto, na presença de duas testemunhas ao auditor, ou ao oficial de patente que lhe faça as vezes neste mister; 3º Que o auditor ou oficial note, em qualquer parte do testamento, o lugar dia, mês e ano em que lhe foi apresentado; 4º Que essa nota seja assinada por ele e pelas testemunhas”[18].

4.3 Testamento militar nuncupativo

Esta é a terceira forma elaboração de testamento militar. Trata-se de uma espécie diferente de ato declaratório de última especial, que somente em casos excepcionais pode ser utilizada, certo que carece de muitas formalidades.

Segundo o art. 1.896 do Código Civil “As pessoas designadas no art. 1.893, estando empenhadas em combate, ou feridas, podem testar oralmente, confiando a sua última vontade a duas testemunhas.

Parágrafo único. Não terá efeito o testamento se o testador não morrer na guerra ou convalescer do ferimento”.

O Código Civil revogado, no art. 1.663, tratava a matéria de maneira muito semelhante, não estabelecendo tal como o Diploma atual a maneira pela qual as testemunhas que receberam declaração de vontade do testador tinham de agir posteriormente para que pudesse efetivamente ser cumprido o testamento.

Mesmo não havendo regra expressa neste sentido, é necessário apresentar alguma solução para que a vontade do de cujus possa ser efetivada.

Cumpre, portanto, às testemunhas que presenciaram o ato reduzirem a termo as declarações do moribundo, assinando-o. Outrossim, o quanto antes deverão apresentar o termo ao auditor ou o oficial que o fizer as vezes. Tal comportamento é preciso que seja adotado, justamente para que não se perca, com o decurso do tempo, as lembranças a respeito daquilo que foi dito pelo testador.

Em sobrevindo a morte do autor da herança, já tendo sido elaborado o documento particular pelas testemunhas, “será reduzido a pública forma o testamento nuncupativo-militar, perante o juiz competente, com o depoimento das testemunhas e citação dos interessados”[19].

Portanto, três etapas precisam ser observadas. Primeiro as testemunhas ouvem aquilo que corresponde ao ato declaratório de última vontade. Na sequência, reduzem as declarações a termo, valendo-se, em razão da urgência, de um documento particular, o qual é apresentado ao oficial. Feito isso, por fim, o juiz é comunicado a respeito do falecimento do testador e, recebendo o documento elaborado pelas testemunhas, toma-o por termo público e designa audiência para ouvi-los.

Trata-se é certo, como é possível perceber, de uma forma de testamento que deve ser poucas vezes utilizada. Sua aplicação se restringe aos casos de impossibilidade total do autor da herança poder redigir. É ainda necessário que o testador esteja em efetiva atividade guerreira, já que o artigo em estudo se refere a “combate”.

No que toca à expressão “feridas”, deve ser ela entendida não apenas no caso de o militar estar fisicamente lesionado, sendo também possível uma interpretação extensiva. Assim, em estando o combatente em perigo de morte, ainda que não tenha sofrido nenhum dano em sua integridade física, poderá se utilizar desta forma excepcional de testamento militar.

A referida espécie de ato declaratório de última vontade é resquício do Direito Romano e seu emprego pode redundar em finalidade diversa daquela que foi pretendida pelo testador, pois nada impede que as testemunhas dolosamente afirmem ter o de cujus testado de maneira que não ocorreu. Também é possível que, em virtude das condições em que o ato foi praticado, qual seja, uma situação de emergência, os receptores da declaração interpretem-na mal e, consequentemente, acabem por reduzi-la contrariando a real intenção do testador.

Segundo Clóvis Beviláqua, “as diferentes legislações modernas não deixaram em olvido a forma militar do testamento, mas se mostraram menos eivadas de romanismo do que a nossa, na qual se deparava, outrora, o excesso do testamento riscado no solo com a ponta do gládio ou escrito na folha da espada com a tinta rubra do sangue, que jorra das feridas”[20].

Se o testador não morrer na guerra ou dos ferimentos durante este período causado, o testamento perderá a validade.

5. CADUCIDADE DO TESTAMENTO MILITAR

O art. 1.895 do Código Civil estabelece que “caduca o testamento militar, desde que, depois dele, o testador esteja, noventa dias seguidos, em lugar onde possa testar na forma ordinária, salvo se esse testamento apresentar as solenidades prescritas no parágrafo único do artigo antecedente”.

O Diploma Civil de 1916, no art. 1.662 dispunha que seria caduco o testamento militar, desde que depois dele o testador estivesse três meses seguidos em lugar onde pudesse testar ordinariamente. Ou seja, não dispunha da ressalva que foi criada pelo legislador de 2002.

Assim, caso o militar, depois de testar, permanecer durante 90 dias ininterruptos em lugar onde possa fazer novo testamento, ordinário, o ato militar de última vontade perderá a validade.

A lei prevê uma única exceção, qual seja, a de o testamento militar ter sido feito seguindo as regras do art. 1.894, parágrafo único, do Código Civil. Este é o caso que prevê o auditor ou oficial receber o testamento cerrado ou aberto, feito de próprio punho pelo combatente, presenciado o recebimento por duas testemunhas que também assinaram a nota, a qual deve constar o lugar, dia, mês e ano do recebimento.

Caso esta hipótese ocorra, o testamento terá plena eficácia, não sendo afetada pela regra em estudo, pouco importando tenha passado o prazo de noventa dias.

Silvio Rodrigues, comentando o Diploma Civil revogado, dizia: “acho que, se acaso se levar avante a reforma do Código Civil, o legislador deverá abolir da legislação estes testamentos especiais, que de modo nenhum se justificam”[21]. Não foi isso o que ocorreu.

6. CONCLUSÃO

O testamento militar, como visto, é uma das espécies de testamentos especiais. Sua diminuta utilização faz com que seu estudo seja, na grande maioria das obras doutrinárias, reduzido a quase insignificância. Como se pode observar, são poucos os autores que dedicam um capítulo próprio para esta espécie de ato de última vontade.

Foi-se época em que sua previsão legal se fez útil e necessária. No entanto, nos dias atuais, em razão da situação vivenciada pela sociedade brasileira, não deixa de ser mero conjunto de normas sem maior utilidade.

Por ser resquício da tradição jurídica, o legislador atual, por motivos os mais diversos, não retirou o testamento militar do ordenamento, mais especificamente do Código Civil. Perdeu, é certo, grande oportunidade, pois, como já dito, sua utilização, se não for nula, é realmente excepcional.

Na época dos povos bárbaros, em que a luta, ou melhor dizendo, a guerra armada era amplamente utilizada como meio de conquista e soberania, é certo que uma regulamentação de um testamento para a situação era algo efetivamente necessário.

Com o passar dos séculos, como é possível perceber, as guerras felizmente, foram surgindo com menor regularidade, resultando, por esse motivo, uma menor utilização deste instituto.

No Brasil, a estipulação de normas para reger o testamento militar é, na melhor das hipóteses, algo esdrúxulo. Além de não ser da tradição do brasileiro a elaboração de testamento, não se tem notícia de que, das poucas guerras em que a nação se envolveu, alguém se animou a utilizar as mencionadas formas especiais de declaração de última vontade.

Portanto, como se teve oportunidade de ver, o estudo sobre o testamento militar não passa de mera curiosidade, sem utilidade prática.

7. BIBLIOGRAFIA

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Gilberto Azevedo de Moraes Costa

Mestrando em Direito Civil pela PUC/SP e em Processo Penal pela USP

Juiz de Direito

betoamc@uol.com.br



[1] Orosimbo Nonato. Estudos sobre a sucessão testamentária. Rio de Janeiro: Forense, 1957. v. 1. p. 323.

[2] Rudolf Von Ihering. O espírito do direito romano. Tradução Rafael Benaion. Rio de Janeiro: Alba, 1943. V. 1. p. 192-193.

[3] Orosimbo Nonato. Op. cit. p. 324.

[4] José Carlos Moreira Alves. Direito romano. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. v. 1. p. 12-13.

[5] M. Ortolan. Explicación histórica de las instituciones del imperador Justiniano. Tradução Francisco Perez de Anaya. 7. ed. Madrid: Leocadio López, 1922. v. 1. p. 523.

[6] Orosimbo Nonato. Op. cit. p. 324.

[7] Max Kaser (Direito romano privado. Tradução Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2011. p. 381) anota que “peregrinos e latinos podem ser herdeiros ou legatários, a sucessão intestada é compatível com a testamentária, permite-se a instituição de herdeiro a prazo ou sob condição resolutiva bem como a instituição de herdeiro de coisa singular, não é preciso deserdar os sui heredes, não se aplica a lex Falcidia nem as limitações da capacidade de adquirir das leges Iulia e Papia, não se admite a querela inofficiosi testamenti, em caso de vários testamentos o posterior não anula necessariamente o anterior, etc.”

[8] Carlos Maximiliano. Direito das sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. v. 2. p. 20.

[9] M. Ortolan. Op. cit. p. 523.

[10] Ordenações Filipinas, Livro LXXXIII

[11] Ferreira Alves. Direito das Sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos. p. 144

[12] Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973. v. 59. p. 298.

[13] Maria Helena Diniz. Código Civil Anotado. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 1326.

[14] Op. cit. p. 327.

[15] Pontes de Miranda. Op. cit. p. 300.

[16] Clóvis Bevilaqua. Direito das Sucessões. Campinas: Red Livros, 2000. p. 279.

[17] Orosimbo Nonato. Op. cit. p. 330.

[18] Clóvis Beviláqua. Op. cit. p. 279.

[19] Arthur Vasco Itabaina de Oliveira. Tratado de Direito das Sucessões. São Paulo: Max Limonad, 1952. v. 2. p. 461-462.

[20] Op. cit. p. 280.

[21] Silvio Rodrigues. Direito civil: direito das sucessões. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. v. 7. p. 125.

Como citar e referenciar este artigo:
COSTA, Gilberto Azevedo de Moraes. O testamento militar no direito brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/o-testamento-militar-no-direito-brasileiro/ Acesso em: 06 jul. 2025
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