Direito Civil

Constitucionalização do Direito Privado

O reconhecimento da supremacia da Constituição Federal [1] e a respectiva projeção das normas constitucionais por sobre todo o ordenamento jurídico deu azo ao que se denominou de constitucionalização do direito.

Na seara do direito privado não existe mais a clássica e rígida separação entre direito civil e direito constitucional, vez que este último passou a irradiar para todo o ordenamento jurídico, uma gama enorme de princípios que se tornaram vetores axiológicos capazes de produção, interpretação e aplicação das normas de direito infraconstitucional.

Foi o pioneirismo alemão expresso no caso Lüth que originou a constitucionalização, indo até o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais nas relações privadas, tendo como base a explicitação dos efeitos da constitucionalização nas leis privatísticas.

O presente texto visa apenas dar um breve estudo doutrinário a respeito da constitucionalização do direito e deu-se ênfase à autoridade exercida pelas normas contidas na Constituição sobre todas as regras que tecem o ordenamento jurídico, explicitando particularmente a dimensão objetiva dos Direitos Fundamentais, nas relações entre particulares.

Concluímos que a constitucionalização afetou os princípios cardeais do direito privado clássico tais como a autonomia da vontade, e propriedade que diante de nova dimensão passarão a ser funcionalizados, tendendo a repercutir positivamente na coletividade.

É estudo contemporâneo observar atentamente a constitucionalização do direito, principalmente a partir da análise de irradiação dos valores constitucionais para todo o ordenamento jurídico brasileiro, e ainda, demonstrar os efeitos dessa projeção axiológica que tanto remodelou o direito privado.

Realmente a nova hermenêutica constitucional nos orienta no sentido de dar maior efetividade aos princípios constitucionais, superando a compreensão de que os direitos fundamentais apenas teriam o poder de proteger o indivíduo em face do Estado.

A ocorrência de afronta aos direitos fundamentais [2] exercida pelos próprios particulares e, em face uns dos outros, e, nesse caso, ao contrário do que ocorre na tradicional concepção de proteção aos direitos fundamentais que entende ser oponíveis apenas em face do Estado, sendo o indivíduo o polo da relação que titulariza os direitos, ao passo que ao Estado cumpre protegê-los, ambas as partes do conflito são pois titulares de direitos e garantias fundamentais, de maneira a ensejar três modos de aperfeiçoamento da ordem jurídica que se preocupa a dar maior concretude a esses direitos principalmente nas relações privadas:

a) quando da criação/atualização da norma de direito privado;

b) quando de sua interpretação;

c) quando da aplicação, seja de forma extrajudicial seja através da atividade jurisdicional.

O fenômeno da constitucionalização do Direito traz consequências específicas e, peculiar repercussão no direito brasileiro. Tanto assim que há decisões da Corte Constitucional alemã que servem de fonte doutrinária e jurisprudencial para nosso direito constitucional.

É sabido que os direitos fundamentais [3] , tal como lhes concebeu a doutrina e a jurisprudências constitucionais desenvolvidas na segunda metade do século XX, passaram a tecer a base de todos os ordenamentos jurídicos, como valores informativos e diretivos, de maneira a figurar, conforme ressalta Robert Alexy, como normas de otimização da aplicação das regras jurídicas.

Essa mudança de concepção do ordenamento jurídico deu-se pelo reconhecimento da superioridade hierárquica da Constituição, e da existência da força normativa de seus princípios, consistiu num autêntico giro de Copérnico porquanto colocou os valores fundamentais como vetores e fundamento da atuação do Estado e dos indivíduos.

Também se deu o reconhecimento da nova hermenêutica constitucional e com efetiva expansão da jurisdição constitucional, tais são os três elementos que, segundo Luís Roberto Barroso viabilizaram a constitucionalização do direito.

Existem, portanto três acepções que procuram definir o que é constitucionalização do direito. Sendo a primeira destas a que o entende como existência, num determinado Estado, de uma ordem jurídica com Constituição própria, dotada de supremacia.

A segunda acepção consiste no entendimento de que a expressão constitucionalização do direito significa o fato de que as normas jurídicas tipicamente infraconstitucionais passam a fazer parte do corpo normativo contido na Carta Magna.

Ambos os entendimentos contém falhas, seja por não especificarem fenômeno nenhum, haja vista o caráter genérico que expressa, como no primeiro caso; seja por compreender a constitucionalização a partir de prisma especificamente positivista e restritiva como no segundo caso.

A acepção mais escorreita de constitucionalização do direito é a que a define como um fenômeno de expansão das normas constitucionais, cujo conteúdo axiológico se irradia, com força normativa, sobre todo o sistema jurídico. Assim os princípios constitucionais passaram a condicionar a validade e o sentido de todo o ordenamento.

A constitucionalização no direito privado é visível através de limitações construídas aos dois institutos mais prestigiados pela doutrina jusprivatística: a autonomia da vontade, a relatividade à liberdade de contratar; e uso da propriedade privada, mediante a subordinação aos valores constitucionais e o respeito aos direitos fundamentais.

É pacífico em doutrina que a constitucionalização do direito é um processo que veio se consolidando a partir da Segunda Guerra Mundial, quando, com a criação do Tribunal Constitucional da Alemanha, em 1949, e diante do reconhecimento da carga valorativa do texto constitucional, evidenciou-se o “giro copernicano” conforme se referiu Jorge Miranda apud Marcelo Lima Guerra.

Com esse momento histórico marcante para os países de tradição romano-germânica, surgiu um novo constitucionalismo cuja ideia fundamental baseado na dignidade da pessoa humana e que serve de fundamento de todos os demais princípios constitucionais. Atende ainda ao fundamento material para dar a unidade axiológica da Constituição Federal, harmonizando todos os demais direitos fundamentais.

Com efeito, a pessoa humana é o valor básico da Constituição, o uno do qual provém os direitos fundamentais não por emanação metafísica, mas por desdobramento histórico, ou seja, pela conquista direta do homem. Só podemos compreender os direitos fundamentais mediante o retorno da noção de dignidade da pessoa humana, pela regressão à origem.

E, havendo colisão [4] de direitos fundamentais [5] em um caso concreto, deve-se referi-los à noção de dignidade da pessoa humana, pois nela todos os princípios encontrarão a sua harmonização prática, descobrindo-se uma solução que considera a existência de todos os direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que se procede a uma hierarquização entre estes, em consonância com a compreensão social do que é mais relevante para se alcançar o fim coletivo e a dignificação da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana serve de pré-compreensão para os direitos fundamentais (emanações), e a compreensão dos últimos, no caso concreto, através do retorno à ideia original, configurará um círculo hermenêutico.

Desta forma, se expressa uma repersonificação juntamente com uma despatrimonialização e uma funcionalização do Direito Civil, na medida em que a proclamação da dignidade da pessoa humana, como vetor do sistema constitucional brasileiro que rende primazia ao sujeito de direitos, visando a afastar o individualismo patrimonialista despersonalizado que dominou, por muitos séculos, a doutrina civilista.

O caminho a percorrer, relatou Fachin é a retomada e decolagem. Uma viagem pedagógica do saber jurídico informado pelas premissas críticas e pelos novos perfis do Direito Civil. Conjugando a virada copernicana que recoloca os papéis e funções do Código e da Constituição, reafirmando a primazia da pessoa concreta, tomada em suas necessidades e aspirações, sobre a dimensão patrimonial, e sustentando, por meio da repersonalização, a inegável oportunidade do debate permanente entre os espaços público e privado.

Ao assim proceder, baseia-se na funcionalização das titularidades para repensar paradigmas contemporâneos, e para introduzir questões de fundo que, associando conteúdo e método no arco histórico, atravessam o evento unitário da codificação.

Nesse sentido, um processo específico constitui o marco jurisprudencial do reconhecimento da constitucionalização do direito. Trata-se de um julgado da Corte Constitucional alemã, datado de 15 de janeiro de 1958, conhecido como caso Lüth. Para melhor compreensão, passamos a descrever de forma resumida esse histórico processo.

O Sr. Lüth iniciou, em 1950, uma campanha, junto aos proprietários e frequentadores de salas de cinema, visando a que um filme fosse boicotado, sob o argumento de que o diretor havia rodado um filme antissemita quando do regime do nacional socialismo.

Iniciado o processo, fora condenado, nas instâncias ordinárias, a não repetir o ato de estímulo ao boicote, com fundamento no parágrafo 856 do BGB (Código Civil Alemão) teria violado o direito fundamental à liberdade [6] de opinião do recorrente, que é assegurado pelo art. 5º, inciso I da Lei Fundamental de Bonn.

Foi nesse julgado que a Corte Constitucional utilizou-se de expressão que se celebrizou, quando se afirmou que a Lei Fundamental, “erigiu na seção referente aos direitos fundamentais uma ordem objetiva de valores (…) que deve valer enquanto decisão fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do direito”.

Diante dessa afirmação se concluiu que o sistema de valores constitucionais [7] “obviamente também influi no Direito Civil [e] nenhuma prescrição juscivilista pode estar em contradição com este, devendo cada qual ser interpretada à luz do seu espírito.”.

A partir desse julgado, afirmou-se peremptoriamente, o efeito de irradiação dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado, através do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais.

Especificamente no Brasil, a acepção de constitucionalização do direito, antes presente na doutrina, ganhou grande reforço com o advento da Constituição Federal de 1980, uma vez traz, em seu bojo, tratamento jurídico de diversos institutos de direito infraconstitucional, como, por exemplo, usucapião, relações trabalhistas, etc.

A inserção dessas matérias no bojo da Constituição, apesar de não caracterizar tecnicamente a constitucionalização do direito, é de enorme finalidade na medida em que, sendo a Constituição o fundamento de validade último de todo o ordenamento jurídico, já traz em si a explicitação dos valores que guiarão a atividade do intérprete e do aplicador da norma infraconstitucional.

Para melhor compreensão do processo de criação de norma de direito privado, tendo como norteador a Constituição Federal, faz-se imperioso explicitar o entendimento de Luís Roberto Barroso para quem a relação Direito Civil/Direito Constitucional tem três fases distintas, quais sejam:

No primeiro momento, havia mundos apartados. Trata-se do primeiro constitucionalismo, decorrente das revoluções burguesas, notadamente a Revolução Francesa, quando prevaleceu entendimento de que a Constituição seria apenas uma Carta Política, disciplinando as relações entre o Estado e o cidadão, em que o Estado abstencionista deveria permitir a livre atuação dos particulares na realização de seus interesses.

O Código Civil, por outro lado, representava, efetivamente um documento jurídico, porquanto disciplinava as relações entre os particulares, sendo compreendido como a “Constituição do direito privado”.

Os poderes da Constituição sofriam limitação, na medida em que representava uma convocação à atuação dos Poderes Públicos, e a efetivação dependia da atuação do legislador.

Não tinha força normativa própria nem aplicabilidade direta e imediata, ao passo que o Código Civil herdeiro do Direito Romano, disciplinava as relações jurídicas dos dois principais atores da vida civil: o proprietário e o contratante.

No segundo momento, dá-se a publicização do Direito Privado. Diante dos abusos perpetrados pelo individualismo que a legislação civil infraconstitucional permitia, fez- necessária à atuação do Estado no sentido de barrar esses abusos, visando a possibilitar a equiparação das partes no trato negocial.

Surge, nesse momento, o chamado Estado Social [8] , projetado no Direito Privado, sobretudo através do dirigismo contratual, que se expressava no momento em que o Estado começa a intervir nas relações privadas, através da edição de normas de ordem pública destinadas à proteção do lado mais fraco da relação jurídica.

Dá-se, aqui, a revisão da autonomia da vontade (que passará a ser autonomia privada) e atribuição de relevância à solidariedade social e à função social de institutos como a propriedade e o contrato (e também à responsabilidade civil, a família e a empresa [9] ).

No terceiro momento da Constitucionalização do Direito Civil quando efetivamente a Constituição ocupa o centro do sistema jurídico, de onde passa a irradiar os valores através dos quais deve ser criado/interpretado/aplicado o Direito Civil.

A própria Constituição já em seu bojo traz as normas que privilegiam os princípios constitucionais, vão de encontro às outras regras infraconstitucionais, de sorte que, no confronto entre as duas, a norma inferior perca seu fundamento de validade.

É fácil identificar no exemplo do que ocorreu como o pátrio poder quando da promulgação da Constituição de 1988, com o fim da supremacia do marido no casamento, sucedeu que o pátrio poder cedeu lugar ao poder familiar, isto é, como base na isonomia que vige entre marido e mulher, na administração dos interesses da família.

Da mesma forma, podem-se citar as alterações diretamente decorrentes da afirmação da plena igualdade entre os filhos (entre os cônjuges), que vedou qualquer forma de discriminação àqueles que não sejam concebidos na relação conjugal.

O legislador, inserido nessa nova realidade de primazia da Constituição sobre todo o sistema jurídico, fica condicionado, na elaboração normativa de todo o direito, inclusive do direito privado, à observância, por exemplo, dos princípios de igualdade, quando for disciplinar matéria de conteúdo contratual [10] e de direito de família; e da solidariedade e da socialidade, na elaboração de normas que digam respeito à propriedade.

Desta forma, a tarefa legislativa adaptar a legislação ordinária às prescrições constitucionais de caráter dirigente, realizá-la por meio da legislação.

No mesmo sentido expressou-se Gustavo Tepedino, quando afirmou: “Não há dúvida que as normas constitucionais incidem sobre o legislador ordinário, exigindo produção legislativa compatível com o programa constitucional, e se constituindo em limite para a reserva legal [11] “.

A elaboração normativa se expressa, num primeiro momento, quando da criação de regramento novo pelo legislador. Nesse sentido, as normas que surgem devem ter o condão de explicitar os valores constitucionais que são afetos ao tema legislado. Assim, a criação legislativa tem o dever de render eficácia à Constituição, através da disponibilização de normas que atendam aos seus princípios norteadores.

Nesse sentido, cita-se como exemplo, o advento do Código de Defesa do Consumidor, visando dar maior eficácia, nas relações jurídicas de direito privado, aos princípios constitucionais fundamentais que tratam da proteção e defesa do consumidor.

Mas o legislador tem o dever, também, de aperfeiçoar a legislação que já se encontra em vigor, de modo que as normas infraconstitucionais sejam otimizadas no sentido de possibilitar uma maior aplicação dos valores constitucionais.

Sobre esse segundo momento de atuação do legislador, pode-se citar, por exemplo, o advento do próprio Código Civil, que traz em seu conteúdo, regras que consagram princípios constitucionais, como a função social da propriedade e do contrato, a instituição do poder familiar em substituição ao pátrio poder, dentre outros.

Ressalte-se que esse mecanismo de otimização da legislação infraconstitucional tem se verificado, na seara civil, também no diz respeito às leis esparsas.

Como, por exemplo, Lei Federal 10.931/04 que, alterando dispositivos do Decreto-Lei 911/69, pôs fim à situação anti-isonômica que se criara em desfavor do devedor fiduciário.

Pela antiga disciplina da matéria, este apenas poderia requerer a purga da mora caso já houvesse adimplido 40% do débito, hipótese que gerava desigualdades em face dos demais devedores que não se encaixassem nessa situação.

O legislador ordinário, desta forma, visando por fim a essa mesma desigualdade, editou a Lei 10.931/04, que, reconhecendo a inconstitucionalidade que então havia, expurgou a exigência de adimplemento mínimo para que se concedesse a faculdade de pleitear a purga da mora.

Em decorrência da afirmação de que a Constituição passa a ocupar o centro do ordenamento, impera a necessidade de se reconhecer que todos os atores da atividade jurídica estão sujeitos à observância dos princípios constitucionais. E, dessa realidade não pode fugir os intérprete da norma, uma vez que a interpretação de toda e qualquer norma está condicionada à observância dos princípios constitucionais.

Nesse sentido, é curial a lição de Luís Roberto Barroso:

“O ponto de partida do intérprete há de ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie.”.

Aos princípios cabe embasar as decisões políticas fundamentais; dar unidade ao sistema normativo e pautar a interpretação e aplicação de todas as normas jurídicas vigentes. Os princípios irradiam-se pelo sistema normativo, repercutindo sobre as demais normas constitucionais e infraconstitucionais.

Quanto à aplicação da norma jurídica, não há mais lugar para o silogismo puro e simples. A estrutura principiológica da Constituição, proclamando valores, confere ao intérprete maior grau de liberdade. Mas há, em contrapartida, a criação de deveres direcionados ao intérprete, uma vez que se exige um comprometimento deste com a própria essência da Constituição.

Esse caráter aberto e fragmentário, que dá ao intérprete maior grau de mobilidade na sua concretização, acarreta maior responsabilidade, porque não se pode prescindir da normatividade constitucional, isto é, não se pode admitir qualquer atribuição de sentido em detrimento da manifestação ontológica da Constituição – pois se trata de algo que se dá como condição de possibilidade de sua interpretação, mas de verificar o grau, a intensidade de vinculação que ela objetivamente suscita no intérprete e na liberdade de concretização que ele possui diante de suas normas.

Predominou, por longo tempo, o entendimento de que os princípios norteadores da ordem jurídica seriam os princípios gerais de direito, a que se refere à Lei de Introdução ao Código Civil [12] .

Essa noção de princípio remete ao jurista para a ideia do brocardo, ou seja, o princípio nada mais seria do que a fonte histórica do instituto, na forma como foi idealizada e aplicada em sua origem.

Ressalta o autor que o complemento, que a escola da exegese é, antes de tudo, uma estrutura de controle daquilo que deve ou não ser admitido em uma nova ordem, o que teria afastado a predominância dos princípios.

Por essa razão, como apontou Gustavo Kohl Muller Neves [13] foram os princípios gerais de direito, quando da época das codificações, relegados, a segundo plano, porquanto remetiam ao direito antigo, que os ideais revolucionários afastavam, como condição para o estabelecimento de uma nova ordem jurídica.

O culto à lei somando ao desprestígio dos princípios, agravado quando da supremacia do positivismo na Europa, fez com que não mais se questionassem as instâncias de valor que deveriam estar contidas na norma. Assim, não se cogitava sobre a justiça ou a legitimidade da regra, bastando que ela fosse elaborada em conformidade com o processo legislativo preceituado na Constituição.

Porém, os graves incidentes da Segunda Guerra Mundial criaram uma necessidade metodológica de se construir uma teoria do direito aliada a valores, somando, às instâncias de validade da norma – decorrentes do processo legislativo – as instâncias de valor.

Foi com esse ânimo que Gustav Radbruch [14] fez publicar uma circular, que distribuiu aos alunos da Faculdade de Direito Heidelberg, intitulada como “Cinco Minutos de filosofia do Direito” em que afirmava: “Não, não se deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, ao invés: só que for direito é útil e proveitoso para o povo.”.

Tornou-se premente assim que o Direito, notadamente o Direito Civil, passasse a ser interpretado em conformidade com os princípios constitucionais, o que permite afirmar que a interpretação do direito privado deve ser pautada, como já afirmou por Luís Roberto Barroso, nos valores contidos na Constituição.

Exige-se do intérprete-integrador-aplicado que proceda segundo os ditames do que denomina “Hermenêutica Total”, observando-se sempre a finalidade da interpretação /integração, que é a busca da Justiça.

Mas, para ser total a Hermenêutica precisa de manter o ser humano em seu patamar de dignidade, ao mesmo tempo em que não permitia que sua individualidade prejudicasse o funcionamento do todo, em cujo âmbito também estão inumeráveis outras individualidades.

Assim, contemplará todos os valores que lhe for viável contemplar; lembrar-se-á da parte interpretante e da parte destinatária; terá sensibilidade para o funcionamento do todo como âmbito de realização das partes e de cada parte como possibilitarão funcional da coordenação no todo. E tudo isso como afã de equilíbrio, ou, no caso do Direito, como fator de consecução de justiça.

Nesse diapasão, tem-se que é obrigação primordial do aplicador na norma de direito privado manter como finalidade precípua a consecução da Justiça, representada, aqui, pela observância aos princípios constitucionais, notadamente aqueles que afirmem e promovam o reconhecimento da humanidade das pessoas envolvidas na relação jurídica.

Importante papel na interpretação do direito e, mais recentemente, do direito privado, é exercido pelo Princípio da Proporcionalidade [15] . Esse princípio constitucional tem exercido enorme influência na atividade hermenêutica, na medida em que tem direcionado o intérprete a encontrar a solução que mais renda eficácia aos preceitos contidos na Constituição.

As situações jurídicas de direito privado em conflito podem ter, cada uma destas, um fundamento em um determinado princípio constitucional, como, por exemplo, o conflito existente entre o direito à informação e o direito à privacidade, representando um conflito de direitos fundamentais [16] que ocorre exclusivamente no âmbito civil.

“O Direito perde, então, inevitavelmente, a cômoda unidade sistemática antes assentada, de maneira estável e duradoura, no Código Civil […] O intérprete passa então a se valer dos princípios constitucionais, como normas jurídicas privilegiadas para reunificação do sistema interpretativo, evitando, assim as antinomias provocadas por núcleos normativos díspares, correspondentes a lógicas setoriais sem sempre coerentes.”.

É exatamente na resolução desse tipo de problema que se manifesta pungente a constitucionalização da interpretação do direito privado, que se dá através da aplicação do princípio da proporcionalidade. Imperioso se fazer menção aos ensinamentos de Willis Santiago Guerra Filho, que aduz:

“Para resolver o grau de dilema que vai então afligir os que operam com o Direito no âmbito do Estado Democrático contemporâneo, representado pela atualidade de conflitos entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma posição que ocupam na hierarquia normativa, é que se preconiza o recurso a um “princípio dos princípios”, o princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução de compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao (s) outro(s) jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu “núcleo essencial”, em que se encontra entronizado o valor da dignidade humana”. [17] .

Não se pode esquecer, ainda, da constitucionalização do direito privado que se opera através da concessão, a determinada regra, de interpretação conforme a Constituição.

Através dessa técnica, é possível conceder, a determinada norma, significado que a amolde à interpretação que a Corte Constitucional confere à constituição, o que se pode dar por duas formas:

a) pela leitura da norma infraconstitucional da melhor forma que realize o sentido e o alcance dos valores constitucionais que lhe são subjacentes;

b) declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, mediante a exclusão de interpretação possível e afirmação de uma outra interpretação compatível com a Constituição.

Conforme aduziu Inocêncio Mártires Coelho:

“(…) presumem-se constitucionais os atos do Congresso; na dúvida, decide-se pela sua constitucionalidade; entre duas interpretações, escolhe-se a que torne esses atos compatíveis com a Constituição, ao invés de preferir a que afronte o texto fundamental; e por fim, diante de vários sentidos que se consideram igualmente constitucionais, deve-se dar preferência ao que, orientado para a Constituição, melhor corresponde às decisões do legislador constitucional.”

Desta forma, verifica-se, que na tarefa de interpretação normativa do direito privado, diante de sua irradiação nas relações entre particulares, deve prevalecer o sentido que melhor atenda os princípios constitucionais, de sorte a conferir eficácia à Constituição.

É a proclamação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que consiste, segundo Marcelo Lima Guerra, nos efeitos jurídicos decorrentes do reconhecimento dos direitos fundamentais como valores fundamentais constitutivos da ordem jurídica, que faz com que se possa aplicar, nas relações privadas. A proteção constitucional desses mesmos direitos fundamentais.

Willis Santiago Guerra Filho, proclamando a irradiação dos direitos fundamentais na relação entre particulares, afirma:

É nesse contexto que se supera, igualmente, a visão clássica dos direitos e garantias fundamentais enquanto direitos e garantias individuais, liberdades publicas, voltados exclusivamente contra o Estado, o qual, perante tais direitos, teria o dever de tão somente abster-se da prática de atos que os ameaçasse ou violasse.

Atualmente, não apenas se concebem os direitos fundamentais como dotados de um aspecto prestacional, a exigir ações por parte do Estado para implementá-los, mas também, sendo o que aqui nos importa particularmente destacar, se atribui a tais direitos uma eficácia reflexa, ou eficácia perante terceiros (Drittwirkung), tornando-os aptos a proteger seus titulares também contra ameaças e violações por parte de seus co-cidadãos, individualmente considerados ou coletivamente organizados, de modo especial na forma de “poderes sociais” (soziale Gewalten), representados por grandes organizações da sociedade civil organizada e/ou do setor empresarial (…).

É assim que o clássico direito de propriedade, pedra angular sobre a qual se erige grande parte do sistema de direito privado, deverá ser conformado pelos princípios fundamentais constitutivos do Estado Democrático [18] de Direito em nosso País, dentre os quais figuram, por força ao art. 1º, incisos III e IV, a dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, respectivamente.

Da mesma forma que essas formas sociais podem prejudicar o sistema político, em razão de sua alta concentração de poder, o mesmo ocorre no âmbito jurídico. Essas corporações, ainda que privadas, alcançam uma posição de dominação, sobretudo por meio da concentração financeira, que lhes confere um tal poder de decisão mas suas relações com os indivíduos, que qualquer relação jurídica entre ambos, a despeito de se fundar aparentemente na autonomia da vontade, é, na verdade, uma relação de dominação, que ameaça tanto quanto a atividade estatal, os direitos fundamentais dos particulares.

Foi a partir do reconhecimento da possível violação de direitos fundamentais levada a cabe por particulares que a Corte Constitucional alemã, como visto, concedeu provimento ao recurso interposto no caso Lüth.

A partir de então, reconhece-se a legitimidade do Judiciário, para, através da aplicação da Constituição nas relações entre particulares, dar nova interpretação às normas de direito privado, de modo a garantir a observância de preceitos constitucionais fundamentais.

A distinção que se levou a cabo, a partir desse julgamento, consiste em reconhecer que, ao contrário das relações indivíduo- Estado, em que apenas eram titulares de direitos fundamentais, nas relações privadas ambas as partes titularizam esses direitos, de sorte que, na atuação do Poder Judiciário, quando da resolução de conflitos desse jaez, se apresenta de fundamental importância o princípio da proporcionalidade [19] , na medida em que viabilizará o sopesamento dos princípios em jogo, a fim de reconhecer qual valor fundamente da regra infraconstitucional deverá prevalecer, assegurando, ainda o menor prejuízo possível à parte que sucumbir.

O reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais possibilitou, assim, a atuação dos magistrados, no sentido de, através da interpretação e da aplicação da norma infraconstitucional, aperfeiçoar o sistema jurídico, adaptando-o à Constituição [20] .

Sobre a influência da dimensão objetiva dos princípios constitucionais sobre o Poder Judiciário, afirma o Marcelo Lima Guerra: No tocante à atuação dos órgãos jurisdicionais, que é o que interessa mais de perto, no presente trabalho, advirta-se que a dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o que determina, por exemplo:

a) que o órgão jurisdicional identifique e deixe de aplicar normas excessivamente restritivas de direito fundamental, independentemente de qualquer manifestação de um dos eventuais titulares do direito restringido;

b) “que os direitos fundamentais, uma interpretação conforme à Constituição, no sentido de extrair direito fundamental relacionado a esta;

c) que o órgão jurisdicional leve em consideração, na realização de um determinado direito fundamental, eventuais restrições a este impostas pelo respeito a outros direitos fundamentais independentemente mesmo de qualquer consideração quanto à dimensão subjetiva desses últimos”.

É essa alteração de posicionamento que se vem verificando na jurisprudência brasileira, irradiando da nova ótica que se tem dado aos julgados do STF que apesar de não ser propriamente caracterizado como Corte Constitucional, como assevera Marques de Lima, tem exercido, através de sua atuação, um papel pedagógico [21] relativamente aos demais tribunais, buscando vivificar os princípios constantes na Constituição Federal.

Isso não implica afirmar que essa específica atuação legitimadora dos direitos fundamentais nas relações entre particulares esteja restrita ao STF, porquanto, pela organização jurisdicional brasileira, qualquer magistrado, independentemente da instância de julgamento, tem o dever constitucional de velar pela Constituição.

Não há mais que se cogitar em proteção de Direitos fundamentais do indivíduo apenas em face do Estado, na medida em que os particulares, nas suas relações privadas, podem vir a praticar alguma ofensa a direitos fundamentais uns dos outros.

A partir da decisão de 1958, no caso Lüth, pela Corte Constitucional alemã, deflagrou-se o entendimento de que há, de fato, uma expansão da eficácia das normas constitucionais, de sorte a se poder tutelar, nas relações privadas, notadamente aquelas de direito civil, os direitos fundamentais mantenham ligação com os interesses privados em jogo.

Essa constitucionalização do direito privado tem ampliado seu âmbito, se sorte a influenciar os três momentos principais da norma jurídica: sua criação/ atualização pelo legislador; sua interpretação; e sua aplicação pelos magistrados.

Essa influência pode ser especificada na necessidade de busca de formas de se conceder a maior eficácia possível às normas constitucionais que fundamentem as regras infraconstitucionais em que se fundem os interesses particulares em questão, reconhecendo-se, por outro lado, a necessidade de conservação do princípio que, por força da escolha decorrente do princípio da proporcionalidade, deixou de ser aplicado.

Limita-se, assim, a atuação dos particulares, sobretudo diante dos dois princípios cardeais do direito privado clássico, a autonomia da vontade e a propriedade, que diante dessa nova compreensão, deverão ser funcionalizados para que, através do exercício dos negócios jurídicos, tendam a repercutir positivamente na coletividade.

Direito e justiça terminam por reencontrar-se numa nova perspectiva ética e filosófica, de modo que “uma leitura hermenêutica da Constituição” não poderá ser outra essência que é dar o respeito moral e material à dignidade humana.

Referências:

GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Execução Civil. São Paulo: Ed. RT, 2003.

MIRANDA, Daniel Gomes. Modos de Constitucionalização no Direito Privado. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/07_494.pdf Acesso em 10/06/2014 .

NEVES, Gustavo Kohl Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. Diálogos sobre o Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea . Organizador: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002).

TAVARES, André Ramos. Pedagogia Suprema. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/139300-pedagogia-suprema.shtml . Acesso em 13/06/2014 .

STRECK, Lenio Luiz. O direito de obter respostas constitucionalmente adequadas em tempos de crise do Direito: a necessária concretização dos

direitos humanos. Disponível em: http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/hendu/article/viewFile/374/602 Acesso em 13/06/2014.



[1] Evidentemente o constitucionalismo como movimento de limitação dos poderes estatais, está intrinsecamente ligado ao surgimento dos direitos fundamentais. Há várias correntes que divergem, sobre quando teria se manifestado pela primeira vez a limitação do poder do Estado por meio de uma Constituição ou texto fundamental assemelhado. A maioria dos autores defende que o fenômeno constitucional surgiu com a Magna Charta Libertatum, assinada por João Sem-Terra (Inglaterra, em 1215). Refere-se a um documento que fora imposto ao Rei pelos barões feudais ingleses. Atualmente, o constitucionalismo contemporâneo passou a lutar por vários objetivos como a democracia efetiva, desenvolvimento econômico e ambiental. Mas, mesmo assim, não perdeu de vista a defesa dos direitos fundamentais que continua sendo uma de suas matérias básicas.

[2] Vige uma panaceia terminológica em termos doutrinários para cingir o conceito de direitos fundamentais. Então se registram autores que utilizam nomes díspares como direitos humanos, direitos humanos fundamentais, liberdades públicas, direitos dos cidadãos, direitos da pessoa humana, direitos do Homem. É preciso, porém, sedimentar uma terminologia adequada para tão essencial questão. Podemos definir os direitos fundamentais como os direitos considerados básicos para qualquer ser humano, independentemente de condições pessoais específicas. São direitos que compõem um núcleo intangível de direitos dos seres humanos submetidos a uma determinada ordem jurídica.

[3] Curial, no entanto, esclarecer que os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Assim STF, Pleno, RMS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso Mello, DJ 12.5.2000, p. 20: “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante

interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”.

[4] Os direitos fundamentais podem entrar em conflito uns com os outros. Exemplo: direito à vida versus liberdade de religião (o caso de transfusão para as testemunhas de Jeová); direito à intimidade versus liberdade de informação jornalística. Nesses casos de conflito, não se pode estabelecer abstratamente qual o direito que deve prevalecer: apenas analisando o caso concreto é que será possível, com base no critério da proporcionalidade (cedência recíproca), definir qual direito deve prevalecer. Mesmo assim, deve-se buscar uma solução de “consenso”, que, com base na ponderação, dê a máxima efetividade possível aos dois direitos em conflito (não se deve sacrificar totalmente nenhum dos direitos em conflito).

[5] São características dos direitos fundamentais: a historicidade, a relatividade, a imprescritibilidade, inalienabilidade, indivisibilidade e eficácia vertical e horizontal. Nessa última característica, o caso-líder é o Lüth, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão em 1958. Erich Lüth era crítico de cinema e conclamou os alemães a boicotarem um filme dirigido por Veit Harlam, conhecido diretor da época do nazismo (dirigira, por exemplo, Jud Sü?, filme ícone da discriminação contra os judeus). Harlam e a distribuidora do filme ingressaram com ação cominatória contra Lüth, alegando que o boicote atentava contra a ordem pública, o que era vedado pelo Código Civil alemão. Lüth foi condenado nas instâncias ordinárias, mas recorrera à Corte Constitucional. Ao fim, a queixa constitucional fora julgada procedente, pois o Tribunal entendeu que o direito fundamental à liberdade de expressão deveria prevalecer sobre a regra geral do Código Civil que protegia a ordem pública. Esse foi o primeiro caso em que se decidira pela aplicação dos direitos fundamentais também nas relações entre os particulares.

[6] Cogita-se nos direitos de primeira geração que foram os primeiros a ser conquistados pela humanidade e relacionam à luta pela liberdade e segurança diante do Estado. Por isso, caracterizam-se por conterem uma proibição ao Estado de abuso do poder: o Estado não pode desrespeitar a liberdade de crença, nem a vida. Trata-se de então impor ao Estado obrigações de não-fazer. São direitos relacionados às pessoas individualmente (como por exemplo: propriedade, igualdade formal, liberdade de crença, de manifestação de pensamento, direito à vida e, etc.).

[7] Já os direitos fundamentais de segunda geração são os chamados direitos sociais (são direitos positivos de cunho social, econômico e cultural). São entendidos como os direitos de grupos sociais menos favorecidos, e que se impõem ao Estado uma obrigação de fazer, de prestar (direitos positivos, como saúde, educação, moradia, segurança pública, e, ainda com a EC 64/2010 o direito à alimentação). Baseiam-se na acepção de igualdade material no pressuposto de que não adianta possuir liberdade sem as condições mínimas (educação, saúde) para exercê-la. Começaram a ser conquistados após a Revolução Industrial, quando grupos de trabalhadores passaram a lutar pela categoria.

[8] No Brasil, a Constituição Federal de 1934 foi a pioneira ao tentar instituir feições sociais, este avanço se mostrou até hoje incapaz de subordinar as opções políticas do poder público. Diante da ausência de pressupostos de sustentabilidade do Estado Social e da alta demanda pela concretização dos direitos sociais, nosso país tem assistido evidente processo de judicialização das políticas públicas, no qual o Judiciário tem dado a última palavra a respeito da exigibilidade destes direitos, em especial o direito à saúde. Corresponde a um segundo estágio de evolução do constitucionalismo galgando conceitos sobre a isonomia material, alcançável através de prestações estatais positivas e direitos fundamentais de segunda geração.

[9] A função social da empresa representa um conjunto de fenômenos importantes para a coletividade e, é indispensável para a satisfação dos interesses indispensável para a satisfação dos interesses inerentes à atividade econômica. Assim engloba a ideia de que a empresa não deve apenas visar o somente o lucro, mas também preocupar-se com os reflexos que suas decisões têm perante a sociedade, seja de forma geral, incorporando ao bem privado uma utilização voltada para a coletividade. Trazendo a realização social ao empresário e para todos aqueles que colaboraram para alcançar tal fim. A ideia da responsabilidade social da empresa está ligada ao conceito de função social da propriedade e da livre iniciativa. Desta forma, o empresário pode utilizar todos os meios possíveis para alcançara finalidade de sua atividade, desde que observe os ditames legais.

[10] Muito se cogitou no Brasil sobre o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de direito privado e de direito público. São reflexões acerca da justiça contratual como condictio sine qua non de validade comum, trazendo o enfoque tanto o Código Civil (Lei 10.502/2002) e a Lei geral das Licitações (Lei 8.666/93). O princípio do equilíbrio econômico e financeiro visa, pois, garantir a manutenção da equação inicialmente contratada, ou seja, manter a proporção entre os encargos imprescindíveis à execução da avença e a contraprestação ou remuneração pactuada, de forma que uma parte não se locuplete mediante empobrecimento da outra.

[11] Há de se discernir reserva legal simples da reserva legal qualificada. A reserva legal simples surge em função da chamada liberdade de conformação. Porém, casos em que a própria Constituição determina que o legislador regularmente um determinado direito fundamental, especificando-o desde que o faça por meio de lei. Já a reserva legal qualificada é quando a Constituição exige lei específica para tratar de um determinado assunto, e a própria Constituição já estabelece as restrições que a lei poderá estabelecer (como por exemplo, na quebra do sigilo das comunicações telefônicas, em que a Constituição á prevê as possibilidades de quebra).

[12] Passou a se denominar Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, conforme a redação dada pela Lei 12.376/2010. Vide inteiro teor disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm .

[13] (In: NEVES, Gustavo Kohl Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. Diálogos sobre o Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea. Organizador: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002).

[14] Gustav Radbruch (1878-1949) foi professor de Direito na Universidade de Heidelberg. Integra a corrente de filósofos do direito jusnaturalista que entende que o direito deve estar fundamentado no justo e não somente numa mera adequação como sendo aquilo que a lei diz que é direito em determinado momento histórico. Mas ao mesmo tempo, Radbruch sublinha a importância da segurança jurídica afirmando que tão somente o direito extremamente injusto deixa de ter validade.

[15] O vocábulo “proporcional” deriva do latim proportio, que se refere principalmente à divisão em partes iguais ou correspondentes a uma dada razão. É umbilicalmente ligado à ideia de quantidade, de justa medida, de equilíbrio. Começou a ser utilizado na Ciência Jurídica moderna por influência do direito germânico, notadamente da jurisprudência do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal Alemão), que, na resolução de casos concretos, formulou uma verdadeira teoria sobre o princípio. Por meio desse princípio, é possível analisar a legitimidade das restrições a direitos fundamentais, para verificar se respeitam a justa medida, a proporção entre causa e efeito, entre meio e fim.

[16] Os direitos de terceira geração (difusos e coletivos) São os chamados transindividuais, isto é, direitos que são de várias pessoas, mas não pertencem a ninguém isoladamente. São os chamados direitos metaindividuais (estão além do indivíduo) ou supraindividuais (estão acima do indivíduo isoladamente considerado). Têm origem na revolução tecnocientífica (terceira revolução industrial), a revolução dos meios de comunicação e de transportes, que tornaram a humanidade mais conectada em valores compartilhados. Passou a se perceber que na sociedade de massa, há determinados direitos que pertencem a grupos de pessoas, grupos esses, às vezes, absolutamente indeterminados. No Direito Processual Civil, faz-se a distinção entre direitos coletivos em sentido estrito, direitos individuais homogêneos e direitos difusos. A definição desses direitos está no art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor: “I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato ;II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”.

[17] Os direitos fundamentais podem entrar em conflito uns com os outros, o que determina se imponham limitações recíprocas. Assim, por exemplo, o direito à liberdade de expressão não é absoluto, porque pode chocar-se com o direito à intimidade. Nenhum direito fundamental pode ser usado como escudo para a prática de atos ilícitos. Com efeito, os direitos fundamentais só protegem o seu titular quando este se move na seara dos atos lícitos, pois seria uma contradição em termos definir uma mesma conduta como um direito e um ilícito. Logo, se o direito define uma conduta como ilícito (crime, por exemplo), não se pode considerar como justo o exercício de um direito fundamental que leve a essa conduta. Não é válido, por exemplo, alegar liberdade de manifestação do pensamento para propagar ideias racistas ou discriminatórias, conforme reiterada jurisprudência do STF (Caso Ellwanger, HC 82.424/RS).

[18] Se vivemos sob a égide de uma Constituição democrática e dirigente, parece ser óbvio esperar que os juristas já tivessem construído um sentimento constitucional-concretizante. Mas o legislador ficou aquém e foi além do comando constitucional, e assumiu a tarefa de realizar o que se pode denominar de “filtragem hermenêutico-constitucional” apontando as inconstitucionalidades (controle difuso e concentrado) e, fazendo os necessários apelos ao legislador, além de construir uma teoria ou doutrina capaz de abarcar as demandas de um novo paradigma de direito e de Estado: o Democrático de Direito.

[19] Como afirma Ingo Sarlet, “o princípio da proporcionalidade quer significar que o Estado não deve agir com demasia, tampouco de modo insuficiente na consecução de seus objetivos”. Exageros, para mais (excessos) ou para menos (deficiência), configuram irretorquíveis violações ao princípio.

[20] Proporcionalidade Sentido positivo: (proibição da proteção deficiente) O Estado tem a obrigação de proteger os direitos fundamentais de modo suficiente Sentido negativo: (proibição do excesso); Adequação: meio usado para restringir o direito deve ser adequado ao fim que se quer alcançar; Necessidade: o meio usado para restringir o direito deve ser estritamente necessário (meio menos gravoso possível); Ponderação (proporcionalidade em sentido estrito): o direito fundamental deve ser restringido o menos possível.

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[21] A verdade é que a “revelação” do STF ocorrida a partir da Constituição de 1988, aliada à exuberante exposição na mídia do julgamento do mensalão o que fez com que muitos o considerassem como o julgamento do século, foi responsável por reduzir significativamente a distância entre a capital federal e o povo brasileiro. E, tal redução num Estado democrático como é o nosso, não corresponde à submissão do direito e da corte à vontade contingente da opinião pública, e exposta à pressão de multidões. Decisões foram tomadas em apertada maioria, prevalecendo o princípio da colegialidade. Assim o papel pedagógico do STF implica em considerar que os significados de suas decisões produzirão na mente e na conduta de agentes políticos, para citar ao menos um exemplo, mais reluzente e que se encontra no imaginário da sociedade brasileira. Essas forças presentes no STF e de suas decisões são sempre notáveis, calcadas na hierarquia e simbologia constitucional envolvidas, especialmente quanto a algumas cláusulas délficas (para alguns normas enigmáticas da Constituição). (In: TAVARES, André Ramos. Pedagogia Suprema. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/139300-pedagogia-suprema.shtml , acesso em 13/06/2014). 

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Constitucionalização do Direito Privado. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/constitucionalizacao-do-direito-privado/ Acesso em: 21 nov. 2024
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