Direito Civil

A função social do contrato à luz da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann

THE SOCIAL FUNCTION OF CONTRACT IN THE LIGHT OF THE NIKLAS LUHMANN’S SYSTEMS THEORY

BRUNO GARBELINI CHIQUITO [1]

RESUMO

A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann consiste em método de significação, interpretação e compreensão da realidade social apresentada no momento da observação. O autor em uma análise interdisciplinar, emprega elementos da Biologia, Direito, Sociologia, Economia, e diversas outras áreas do saber, desenvolvendo uma teoria de que a sociedade é um sistema complexo, insculpido com base na comunicação. Este sistema social é formado por diversos outros sistemas parciais (subsistemas), tal como o Direito, a Economia e a Política, que se regem por um código binário próprio e se auto reproduzem a partir desse código. Em virtude da autonomia ínsita aos sistemas, a sua produção e reprodução independem de outros sistemas autopoiéticos, mas este fato, não exclui a possibilidade deles de acoplarem estruturalmente, como ocorre com o sistema político, jurídico e econômico. Dessa forma, no presente estudo, será avaliada a função social do contrato sob o prisma da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.

Palavras-Chave: Contrato; Sistemas; Função social.

ABSTRACT

Niklas Luhmann’s systems theory consists in a method of meaning, interpretation and understanding of the social reality presented at the time of observation. The author in an interdisciplinary analysis, employs elements of Biology, Law, Sociology, Economics, and several other areas of knowledge, developing a theory that society is a complex system, inscribed on the basis of communication. This social system is formed by several other partial systems (subsystems), such as Law, Economics and Politics, which are governed by a own binary code and reproduce themselves from this code. Because of the autonomy inherent to the systems, their production and reproduction are independent of other autopoietic systems, but this fact does not exclude their possibility of structural coupling, as it occurs with the political, legal and economic system. In this way, in the present study, the social function of the contract will be evaluated under the prism of Niklas Luhmann’s systems theory.

Keywords: Contract; Systems; Social Function.

INTRODUÇÃO

A complexidade das sociedades pós-modernas gera a necessidade de garantir uma diferenciação funcional ao sistema do direito, a fim de tornar administráveis os impactos das transformações sociais, econômicas e políticas perante o direito, que por questões de método, tende a evoluir em ritmo mais lento.

Nestes termos, surgem métodos legislativos e decisórios de criação e de aplicação do direito, levando-se em conta os benefícios à sociedade, embora deva ser sopesada as possibilidades de controle e consequências do emprego de conceitos advindos de outros sistemas, sob pena de violar a segurança que deve pairar sobre o sistema jurídico.

Nesta perspectiva e diante de todas as mudanças de Estado – Liberal ao Social – despertou-se na seara contratual a necessidade de profunda análise do contexto social, pois o momento histórico determina o modo de interpretação de cláusulas e conceitos, sempre em estrita observância ao aspecto econômico que o circunda, motivo pelo qual a funcionalidade do contrato restou intimamente alterada ao longo do tempo.

Assim, o contrato deve ser analisado a fundo, sendo que a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann possibilita enxergar como esse instituto eminentemente jurídico pode e deve ser empregado em interdependência com outras áreas do conhecimento, mas sem tolher o caráter jurídico e violar as bases conceituais e operativas que garantem a diferenciação e autonomia do direito perante outros subsistemas sociais.

1 A EVOLUÇÃO DO DIREITO CONTRATUAL

É cediço a superação do liberalismo jurídico decorrente da Revolução Francesa ocorrida no século XIX (1789 ~ 1799), período em que ocorreu a promoção exacerbada da filosofia das liberdades individuais e da autonomia da vontade, sob a falsa presunção de igualdade entre os cidadãos do Estado Liberal. Nesse contexto, adveio a massificação dos contratos sob a veste dos contratos de adesão, com um resultado perverso: a dominação de um contratante sobre o outro, inclusive sob o manto protetor do Estado, eis que vigia a força obrigatória dos contratos em seu mais elevado grau de efetivação, pois a igualdade se dava, apenas, perante a lei.

Vislumbrou-se assim, a necessidade de intervenção estatal nas relações negociais, com fomento da solidariedade e consequente advento da concepção social do contrato, ante a inquietação oriunda das assimetrias e desproporcionalidades existentes, notadamente acerca do insatisfatório equilíbrio contratual, pois o instrumento de circulação de riquezas passou a ser utilizado como ferramenta de exploração socioeconômica sob a chancela do Estado.

Diante desse quadro, ocorreu a travessia do Estado Liberal para o Estado Social, com atuação positiva do ente público sobre as relações individuais para garantir interesses sociais indispensáveis à leitura e compreensão dos objetivos “superiores” de toda relação contratual, com relativização das noções de obrigatoriedade e supremacia da autonomia da vontade, por meio do exercício estatal da função de “terceiro regulador” ou “terceiro árbitro”.

A partir do século XX, a teoria geral dos contratos, assim como o próprio Direito Civil, tem sido objeto de inúmeras transformações hermenêuticas, com legítima reinterpretação, revisão e releitura dos institutos privados sob o prisma inafastável do direito civil constitucional, que encontra raízes na doutrina italiana de Pietro Perlingieri, que em sua obra “Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional”[2], eleva a Carta Magna como fundamento do ordenamento jurídico.

Vale lembrar que o processo de constitucionalização do direito civil não foi uniforme em todos ordenamentos jurídicos, tendo se iniciado no Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988, enquanto na Europa, notadamente na Alemanha e na Itália, iniciou-se no período pós-segunda guerra mundial, pois as barbáries presenciadas culminaram em um forte processo de elevação do homem como um fim em si mesmo. Ainda, no interregno anterior, existia forte dicotomia entre o Direito Público (Constituição) e o Direito privado (Código Civil), como se fossem verdadeiros ordenamentos paralelos, o que foi reexaminado em virtude do papel da Carta Magna na órbita do Direito Civil.

No Brasil, em atenção ao avanços histórico-mundiais do direito civil, notadamente do direito contratual, a Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova sistemática de formação e interpretação dos seus institutos, que passam a ser rotineiramente reinterpretados as luzes da tábua axiológica instituída pela Carta Magna, detentora de força normativa além de ser a principal fonte normológica do sistema jurídico, com eficácia imediata e independente, geradora de substanciais impactos na principiologia contratual.

2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONTRATUAL

Com a consolidação do Estado Liberal de base individualista, surgiu um novo panorama político, social e econômico no século XIX, período de vigência suprema dos três princípios clássicos norteadores do direito contratual: o princípio da liberdade das partes (ou autonomia da vontade); o princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda) e o princípio da relatividade de seus efeitos (res inter alios acta nec aliis nocet nec prodest[3]) – de modo que o Estado seria mero garantidor das liberdades individuais e da autonomia contratual.

Este cenário mundial, perdurou até o século XX, destacadamente após a Segunda Guerra Mundial, em face do panorama socioeconômico e político, com intensificação das desigualdades no campo jurídico contratual, sendo necessária e defendida a intervenção do Estado na regulação da atividade econômica a fim de coibir abusos no âmbito da autonomia da vontade e restaurar o equilíbrio econômico orientador do contrato.

Floresceu, pois, o Estado Social de Direito, com mitigação do caráter absoluto dos princípios clássicos norteadores do direito contratual, porquanto o legislador passa a intervir na relação jurídica para reparar os desequilíbrios gerados por ações iníquas, relativizando o conceito de liberdade contratual, conforme premissas assentadas pelas novas Constituições Sociais norteadoras da justiça social e da regulamentação econômica mediante normas de política econômico-social.

No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, a qual inaugurou uma centelha de valores relativos à dignidade da pessoa humana e à paz social, iniciou-se o processo de constitucionalização do direito civil, com hialina influencia na elaboração do Código Civil de 2002, baseado que foi na filosofia da socialidade, da eticidade e da operabilidade[4], primados estes que também regeram a elaboração do novo Código de Processo Civil, e consistem na preocupação com o sentido social, com a realizabilidade e efetividade das garantias constitucionais a serem concretizadas, elevando o princípio da pessoa humana como fonte de todos os valores – em substituição da concepção individualista – e, atraindo a tutela jurídica da parte vulnerável em prol da concepção de uma sociedade plural, justa, livre e solidária.

Com efeito, os princípios clássicos foram gradualmente demudados e revisados, com a introdução de preceitos complementares aos já existentes. Essas mutações objetivaram a ascensão da justiça social mediante o equilíbrio, a proporcionalidade e a vedação à abusos – conceitos gênese do Estado Social pós-moderno.

Salienta-se que ainda não há harmonia na conceituação de qual período histórico vivenciamos, se estaríamos diante de uma pós-modernidade, de uma modernidade tardia, de uma modernidade reflexiva ou de uma supermodernidade, conforme se infere na obra elaborada por Rogério Donnini[5], na qual discorre sobre o assunto em citação a inúmeros autores, tal como Zygmunt Bauman, Anthony Gidens, Ulrick Beck, Georges Balandier dentre outros, mas adotaremos neste trabalho a terminologia “pós-moderno”, para representar o atual momento civilizatório.

Dessa forma, o advento da Constituição Federal de 1988 dá início ao fenômeno denominado de “constitucionalização do direito civil”, consistente na reinterpretação dos institutos jurídicos infraconstitucionais à luz da Constituição Federal, de forma a readequá-los à tábua axiológica nela consagrada, conferindo à Carta Magna papel central no ordenamento jurídico, pois além de figurar como fonte de validade para todas as normas infraconstitucionais, decorrência das regras de escalonamento teorizadas por Hans Kelsen[6], também serviria como parâmetro axiológico para atribuição de conteúdo às normas de escalão inferior que orbitam ao seu redor.

A propósito e a respeito da incidência das normas constitucionais nas relações jurídicas de direito privado, preconiza o italiano Pietro Perlingieri:

A norma constitucional torna-se a razão primária justificadora (e todavia não a única, se for individuada uma normativa ordinária aplicável ao caso) da relevância jurídica de tais relações, constituindo parte integrante da normativa na qual elas, de um ponto de vista funcional, se concretizam. Portanto, a normativa constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de comportamento, idôneo a incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores.[7]

Ingo Wolfgang Sarlet, após discorrer acerca da evolução do sistema jurídico no que tange a constitucionalização do direito civil, preleciona acerca da lógica dialética e dinâmica de influência recíproca entre o direito público e o direito privado, ressaltando, inclusive que durante o constitucionalismo liberal de matriz burguesa, essas relações entre as duas esferas eram tidas como praticamente inexistentes.[8]

Neste panorama, o contrato adquire novos fundamentos, instaurando-se uma nova dimensão para a autonomia privada, e inserindo princípios relativos à justiça contratual, à função social e à boa-fé objetiva. O hodierno mapa principiológico procura estimular e harmonizar a liberdade, a justiça social e a ordem jurídica, sem subtrair a autonomia privada – fator essencial para formação dos contratos.

Eugênio Facchini Neto, citando Antônio Junqueira de Azevedo, faz referência a uma “hipercomplexidade principiológica do contrato, pois princípios diversos devem conviver entre si, relativizando-se reciprocamente”[9], cujo fato é corolário lógico das influencias exercidas pela Constituição Federal de 1988, que manteve o Código Civil como lei básica no Direito Privado brasileiro, mas não global como era no passado.

Verifica-se, portanto, que com o transcorrer da história várias foram as transformações políticas (Estado Liberal ou Social), tecnológicas (Industrialização e globalização), idearias (advento da dignidade humana e solidariedade), econômicas (massificação das relações cambiárias), fatores que somados contribuíram para o incremento da complexidade do instituto contratual, que como ferramenta jurídica, se relaciona diretamente com outras áreas do conhecimento, que adiante serão denominadas conforme a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.

3 A FUNÇÃO ECONÔMICA DO CONTRATO

Feitas estas breves considerações evolucionistas e axiológicas acerca do instituto contratual, vale destacar ainda, o seu inafastável papel econômico, fator relevante como aspecto integrante da relação que se pretenderá realizar ao final do presente estudo.

Ao se debruçar sobre qualquer matéria ou assunto afeto aos contratos, não se pode esquecer que esta ferramenta jurídica retrata uma realidade exterior a si próprio, uma centelha de interesses reais, situações sociais e relações econômicas, sendo estas últimas o cerne substancial de qualquer contrato, o qual, segundo os ensinamentos de Enzo Roppo, pode ser resumido na ideia de “operação econômica”[10].

Nesta esteira, o contrato, na acepção técnico-jurídica do vocábulo, resume e assinala de forma sintética uma cadeia de princípios e regras jurídicas orientadoras das implicações e consequências legais passíveis de aplicação pelos juízes e que se ligam efetivamente a determinada operação econômica. Funciona, pois, como substrato necessário e imprescindível para conferir materialidade e formalização à circulação de riquezas, aqui compreendida como efetiva ou potencial transferência de utilidades suscetíveis de avaliação econômica de um sujeito para outro.

Trata-se de uma ferramenta jurídica que tem por função resguardar uma determinada seara de interesses e relações intersubjetivas e, especialmente no âmbito do direito, regulamentar relações econômico-sociais. Enfim, os contratos cumprem uma função instrumental economicamente viabilizadora, sem a qual a circulação de valores seria impraticável – daí a importância de sua conceituação.

Dessa forma, para se conhecer verdadeiramente o papel e importância do instrumento contratual, bem como o grau e emprego de proteção necessária à sua manutenção e de suas estruturas fundamentais, é necessário verificar a realidade econômico-social que lhe subjaz.

Corriqueiramente, os indivíduos alheios a área jurídica, utilizam a terminologia “contrato” como sinônimo de aquisição ou troca de bens e serviços ­– o negócio em si – entendido aqui em sua materialidade, sem refletir acerca da ideia de formalização legal empregada por aqueles que se utilizam da linguagem técnica do direito. Aqui resta evidente, conforme elucidado por Niklas Luhmann, que a linguagem jurídica se diferencia das outras por possuir aspectos característicos próprios do sistema.

Surgem, portanto, duas interpretações acerca do instituto: o contrato “conceito jurídico” e o contrato “operação econômica”, cuja análise dependerá do contexto linguístico em que seja empregado o termo. A formalização jurídica em questão não possui um propósito em si mesma, ela se realiza e se concretiza em função da operação econômica que representa (tal como um invólucro, uma cártula, uma veste formal).

Nesse sentido, NELSON NERY JUNIOR conceitua o contrato como o “acordo de vontade entre duas ou mais partes para constituir, regular e extinguir entre elas uma relação jurídica patrimonial”, acentuando que “ao celebrá-lo, as partes devem fazê-lo com ampla liberdade, sempre respeitando as exigências da ordem pública”. Para o autor, em resumo, trata-se o contrato de um “negócio jurídico bilateral pelo qual as partes obrigam-se mutuamente à circulação de riquezas transferindo-as de um patrimônio para outro”.[11]

Assim, o contrato “conceito jurídico” consubstancia, em verdade, o instrumento técnico do contrato “operação econômica”. Daí resulta que, em função da necessidade de uma conceituação técnica adequada, o contrato, em sentido jurídico, foi concebido pelo raciocínio segundo o qual as relações econômicas podem – e devem – ser reguladas pelo direito por meio de uma categoria científica idônea pertinente, em que se produza o adequado arranjo de regras e princípios que funcionalizem o instituto, a fim de que este atinja seus fins e interesses, seja na seara individual, seja na social.

Em resumo, antes mesmo de ter sido criado e regulamentado pelo Direito, o contrato já existia na qualidade de fenômeno econômico, motivo pelo qual não pode ser afastado do campo das operações de mercado.

4 A TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN

Através de uma abordagem interdisciplinar abrangente, com utilização de conceitos desde a termodinâmica física e biogenética até a cibernética e a teoria da informação, Niklas Luhmann apresenta sua teoria dos sistemas sociais como parte integrante de uma teoria geral de sistemas. Tal postulado teórico analisa a matéria em movimento, em constante mudança, cuja vertente sociológica se aplica notadamente a um mundo social no qual ocorrem céleres alterações, como método de análise da realidade.

O autor, na construção de sua teoria, parte da distinção entre sistema e ambiente, pois a teoria sistémica tem como escopo descrever como são produzidos os limites do sistema em relação ao ambiente. Sistema não seria um agrupamento congruente de regras, mas sim um conjunto de operações fáticas, que na qualidade de operações sociais, correspondem às comunicações. Portanto, a teoria proposta por Niklas Luhmann conduz à análise do sistema social total, aqui considerada a sociedade e seus diversos sistemas parciais integrantes, sem perder a noção do todo, tendo em vista que cada sistema possuiu elementos próprios e se auto reproduz de maneira autônoma, sensibilizado aos outros sistemas. Ainda, tanto os sistemas como o ambiente compõem um todo denominado “mundo”.

Este sociólogo buscou estudar a sociedade em conjunto com os subsistemas (ou sistemas parciais) que a integram, buscando superar o pressuposto da separação entre o direito e a sociedade, o que inclusive seria utópico, pois inexiste direito fora da sociedade. Dessa forma, os sistemas sociais, assim como os biológicos, são fechados e autorreferenciais, ou seja, autopoiéticos.

Etimologicamente, a palavra autopoiese vem do grego autós (por si mesmo) e poiesis (criação, produção), significando, portanto, o sistema que é construído por elementos que ele próprio constrói. Portanto, o direito como sistema social é capaz de autoproduzir os elementos constitutivos internos por meio de sí mesmo, de maneira circular e recursiva.

Vale destacar que os sistemas sociais têm como elemento constitutivo a comunicação, sendo que a delimitação do sistema perante o ambiente ocorre por meio desta operação. Outrossim, a sociedade constitui o sistema “macro” que abarca todas as comunicações concretizadas nos sistemas parciais. Estes se diferenciam ou especificam segundo a sua função, de maneira que os subsistemas (economia, educação, política, direito) se diferenciam uns dos outros pelo sentido, pela função que assumem de acordo com um código binário eleito.

É importante frisar que a sociedade é ambiente do sistema jurídico, mas todas as operações deste sistema se realizam dentro daquele e, ao mesmo tempo em que tais operações servem para diferenciar os dois sistemas, acabam por ratificar a sociedade, sendo possível verificar, então, a relação aí existente.

O autor trabalha com o conceito de fechamento operativo do sistema social, dentro do qual o subsistema jurídico está estabelecido, remetendo-se às suas próprias operações e reproduzindo-se autopoieticamente, de forma circular, pois a comunicação jurídica remete-se a uma anterior e cria condições para a próxima. Dessa forma, o fundamento de validade do direito não é buscado fora do direito, mas internamente, pois embora exista uma referência ao ambiente durante o processo de seleção de elementos, a alteração do sistema decorre exclusivamente de operações comunicacionais próprias.

Este fechamento operacional dos sistemas parciais, contudo, não é absoluto, pois os estímulos e ruídos provenientes do ambiente podem irritar o sistema, que inicia um processo de reação, entrando em contato consigo mesmo, ativando operações internas pelos seus próprios elementos internos. O sistema descreve a si mesmo e verifica ser algo distinto do ambiente, não podendo com ele se confundir, sob pena de acarretar sua diluição, pois o ambiente sempre deve ser mais complexo do que o sistema.

Para que o sistema jurídico se feche operativamente e adquira autonomia, é preciso a identificação da função do direito, ou seja, do seu código binário, segundo o qual as comunicações serão lícitas ou ilícitas (direito e não direito). Frisa-se que o fechamento do sistema não pode ser absoluto, haja vista a possibilidade de troca de informações entre o ambiente e o sistema, que são abertos cognitivamente, pois realizam processos de filtragem conceitual internos, com reprodução dos elementos constitutivos mediante recepção de irritações externas.

Dessa forma, a alterabilidade do sistema social e dos seus subsistemas, aí incluído o sistema jurídico, ocorre conforme critérios internos específicos, que acarretam a reciclagem do sistema sensível ao ambiente. Com efeito, o fechamento operativo constitui condição de possibilidade para abertura do sistema.

Em relação ao sentido de código, vale elucidar que ele não significa norma, mas sim a estrutura de um organismo que possibilita a imputação de valores às comunicações, sendo responsável pela estrutura do sistema, assegurando a sua unidade. Já o programa consiste na regra de decidibilidade acerca da adjudicação de valores, ou seja, como os valores do código direito/não direito, no caso do sistema jurídico, devem ser atribuídos corretamente. Decorre daí que os códigos não podem ser autossuficientes, pois dependem dos programas para gerar a autopoiese.

Temos também que o sistema pratica também a heterorreferência, consistente na observação de outros sistemas, com os quais pode realizar acoplamentos estruturais, pois o sistema não vive absolutamente independente de seu ambiente, pois precisa adaptar-se a ele. Os sistemas envolvidos em acoplamento estrutural interagem entre si de acordo com a perspectiva do outro sistema, que de forma recíproca, também realiza a heterorreferência.

Assim, na teoria dos sistemas sociais, os acoplamentos estruturais são condições de manutenção da própria autopoieses, pois a partir dele, os sistemas interagem e buscam estímulos mútuos, fazendo trocas de informações na via dupla da contingência, onde a informação é uma diferença que gera diferença. Ressalta-se com os sistemas não são simétricos, pois cada um possui um código binário próprio que explica sua função.

5 O ENFOQUE CONTRATUAL E SUA FUNÇÃO SOCIAL

Assim como a teoria dos sistemas proposta por Niklas Luhmann, o tema “contrato” nos remete a uma distinção entre sistema e ambiente. Cumpre relembrar que o sistema é operativamente fechado e reproduz seus componentes constitutivos, enquanto também é cognitivamente aberto, pois admite interferência do ambiente (irritação), a qual gera uma nova diferença.

Desse modo, o contrato considerado dentro de uma perspectiva social (função social), se preocupa com a sociedade amplamente considerada e não com especializações disciplinares. Assim, pode-se afirmar que o contrato, na esteira do quanto já exposto, funciona como mecanismo de acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o sistema econômico, que são autônomos e exigem condições mínimas para realizarem sua autopoiese, conforme os seus próprios códigos binários (direito/não direito – valor econômico/desvalor econômico).

Deste modo, o contrato, sob a ótica da teoria dos sistemas, também se revela como denominação jurídica ocorrida no sistema econômico, constituindo operação de dois sistemas, ou seja, possuindo dois lados distintos. Isso implica que um interesse econômico pode ser selecionado pelo sistema jurídico, que em certa medida desclassifica seu viés estritamente valorativo-quantificativo e opera mediante o código direito/não direito, lícito/ilícito.

Segundo a teoria proposta por Niklas Luhmann, a interpretação do contrato não deve se restringir a análise jurídica desse instituto, pois deve ser avaliado a consequência interdisciplinar (v.g. econômica e política), surgindo, portanto a sua função social, tendo em vista a existência de interesses sociais-econômicos que deverão ser avaliados sobre o crivo da legalidade (restrição à liberdade de contratar), desencadeando consequências relativas ao princípio, tal como a realização do bem comum e preservação da dignidade humana, em benefício do sistema social em geral.

Ressalta-se aqui que a própria natureza do princípio e utilização da técnica legislativa das cláusulas gerais, tal como utilizado no art. 421 do CC/2002, o próprio sistema jurídico cria imposições que desencadeiam a adequação do ordenamento a novas realidades, pois não se pode esquecer que o direito, como subsistema social, gera efeitos em outros subsistemas sociais, haja vista o acoplamento estrutural, que pode gerar reações diversas em ambos sistemas, dependendo a ressonância das estruturas próprias dos sistemas, que precisam ser capazes de desenvolver mecanismos de adaptação às novas influências, mantendo suas operações internas e a autopoiese.

Nestes termos, diante da função social do contrato, que preza por relações justas e equilibradas, bem como por reflexos benéficos perante a sociedade, o direito continua operando o contrato mediante o emprego de seu código binário próprio, porém o que caracteriza o direito e o não direito muda de acordo com interferências do ambiente (sistema em choque), o que reforça o acoplamento estrutural.

Desta forma as operações econômicas geram irritações perante o sistema jurídico, que em contrapartida, também acarreta irritações no sistema econômico. Destaque-se que não pode ocorrer a fusão dos dois sistemas, que devem preservar a autonomia das operações internas, considerando o outro sistema em uma espécie de plano secundário.

Ainda, verifica-se em relação ao contrato, que este não gera apenas o acoplamento estrutural do sistema jurídico com o sistema econômico, mas também daquele com o sistema político, pois conforme visto acima, com as transformações ocorridas após a superação do liberalismo clássico e advento do Estado Social, o fenômeno contratual se adaptou, mediante irritações externas, a nova realidade ideológica (deixa de ser visto em caráter exclusivamente individual, com satisfação de interesses pessoais e, se volta a satisfação do interesse do outro e de toda a coletividade, sob os primados da cooperação, solidariedade e dignidade humana).

Com efeito, percebe-se uma alteração da visão tradicional do contrato, o qual não se limita a aspectos exclusivos de transação de mercado, mas também às interferências políticas representadas pelo objetivo de adequar o pacto às bases ideológicas do Estado vigente, razão pela qual o contrato deve ser avaliado pelo código binário jurídico nas mais diversas contextualidades. Recorda-se aqui que o contrato, na vigência do Estado Liberal, caracterizou-se pela ampla liberdade de contratação, sem qualquer controle do equilíbrio entre as prestações, mas hoje há salutar interferência Estatal nesta relação, sendo que o dirigismo contratual nada mais é do que o acoplamento entre direito, economia e política.

Neste sentido elucida Celso Fernandes Campilongo:

A globalização cria complexidade e aumenta a interdependência do sistema jurídico ao seu ambiente externo. Surgem novos temas, comportamentos inéditos, atividades econômicas atípicas, agregações políticas pouco usuais e outros eventos que carecem de regulação jurídica. O sistema jurídico, apesar de toda essa turbulência no ambiente, está sempre aberto aos influxos e requisições que a economia e a política, por exemplo, lhe apresentam. Só não pode desfigurar seu sistema – abandonar sua estratégia específica de operação, fechada no código direito/não direito.[12]

Portanto, sob o manto da função social do contrato, constata-se a os subsistemas sociais (direito, política e economia), os quais se diferenciam funcionalmente, se acoplam para prover uma regulação geral da sociedade, pois esta, em virtude dos fenômenos evolutivos, se torna cada vez mais hipercomplexa e, consequentemente, aumenta a irritabilidade nos subsistemas sociais, que se autoproduzem para reduzir complexidade.

CONCLUSÃO

Diante do estudo ora desenvolvido, é possível constatar determinada adequabilidade social do direito, o que acaba por reforçar o próprio sistema jurídico. O subsistema do direito é, preliminarmente normativo, mas já prevê a possibilidade de desvios, na perspectiva em que insere princípios e clausulas gerais em suas operações, exigindo, muitas vezes, a busca conceitual ou interdisciplinar em outros sistemas, o que pode ser considerado como corrupção sistêmica, mas não gera a quebra da autopoiese do direito, pois é o próprio sistema jurídico controla e define o que seria a corrupção sistêmica.

Há que se convir que a teoria dos sistemas evita que o sistema econômico ou político lance suas funções sobre o sistema jurídico e vice-versa (corrupção sistêmica), pois cada sistema, com a sua especificidade e código binário, trabalhando cognitivamente aberto e operativamente fechado, reproduzirá, a partir dos próprios elementos e técnicas os efeitos necessários para solução do caso. Há relação de interdependência sistêmica, mas não de subordinação.

O sistema do direito, portanto, é sensível à realidade externa (ao ambiente), sendo que a função social do contrato aparece como mecanismos do direito gerador de conflitos intersistêmicos, notadamente em relação ao sistema econômico, político e jurídico, capaz de gerar a auto reprodução, a co-evolução dos mesmos, o que concede uma maior elasticidade e capacidade de adaptação sistêmica.

É imperioso reconhecer que a teoria dos sistemas pode explicitar como o contrato, do ponto de vista do sistema jurídico, transformou-se no curso da história, notadamente em decorrência da migração do Estado Liberal para o Social, e, também, diante das constantes mutações do mercado econômico.

Assim, o contrato é vislumbrado como mecanismo de acoplamento estrutural, ou seja, a ligação entre o sistema jurídico, econômico e até mesmo político. Tal acoplamento estrutural impede que o direito seja analisado separadamente da sociedade que o circunda, contudo, malgrado o sistema jurídico sofrer interferência de outros subsistemas sociais, somente ele atua com o código binário direito/não direito, logo, lhe reserva o direito de poder criar o direito.

Nesse contexto, a utilização da clausula geral da função social do contrato possibilita a entrada no direito de valores estranhos a sua especificidade, que acaba por se atualizar e remodelar por via da ação da doutrina e da jurisprudência, tendo em vista que o alcance e conteúdo da função social do contrato deve ser fixado no momento de aplicação, ou seja, diante do caso concreto.

Deste modo, o contrato, no contexto atual, deve atender e realizar sua função social, na medida em que busca conciliar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF), da solidariedade (art. 3º, I da CF) e da livre iniciativa (art. 170, caput, da CF), prestando ao mesmo tempo como ferramenta de circulação de riquezas (sistema econômico) e ideário da Justiça Social (sistema político).

REFERÊNCIAS

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Teoria do direito e globalização econômica. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.

DONNINI, Rogério. Responsabilidade Civil na pós-modernidade: felicidade, proteção, enriquecimento com causa e tempo perdido. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2015.

HANS KELSEN. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Trad. Javier de torres Nafarrate, 2. ed. México: Universidade Iberoamericana, 2006.

_________________. Introdução à teoria dos sistemas. Trad. de Ana Cristina Arantes nasser. 3. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

NERY JR., Nelson. Contratos no código civil – apontamentos gerais. O novo código Civil – estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. São Paulo: LTR. 2003.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina de Cicco. 3ªed., ver. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

ROPPO, Enzo. O Contrato. Trad. Ana Coimbra e Manuel J. C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009.

TIMM, Luciano Benetti e MACHADO, Rafael Bicca (coord.). Função Social do Direito. São Paulo: Quartier Latin.



[1] Advogado. Mestrando em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP. Bolsista pelo CNPQ.

[2] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina de Cicco. 3ªed., ver. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p., 5.

[3] “o contrato somente vincula as partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros”.

[4] Tais princípios podem ser extraídos da leitura da exposição de motivos do Código Civil de 2002, de lavra do professor Dr. Miguel Reale, notadamente às fls. 26, 27 e 32. A íntegra do documento está disponível em:   http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf00019a.pdf – Acesso em 16.06.2017.

[5] DONNINI, Rogério. Responsabilidade Civil na pós-modernidade: felicidade, proteção, enriquecimento com causa e tempo perdido. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2015, p. 13-21.

[6] HANS KELSEN. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 155-194.

[7] PERLINGIERI, Pietro. Op. Cit., p. 12.

[8] TIMM, Luciano Benetti e MACHADO, Rafael Bicca (coord.). Função Social do Direito. São Paulo: Quartier Latin, p., 70-71.

[9] Ibidem. p., 124.

[10] ROPPO, Enzo. O Contrato. Trad. Ana Coimbra e Manuel J. C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p. 8.

[11] NERY JR., Nelson. Contratos no código civil – apontamentos gerais. O novo código Civil – estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. São Paulo: LTR. 2003, p. 415.

[12] CAMPILONGO, Celso Fernandes. Teoria do direito e globalização econômica. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 147.

Como citar e referenciar este artigo:
CHIQUITO, Bruno Garbelini. A função social do contrato à luz da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/a-funcao-social-do-contrato-a-luz-da-teoria-dos-sistemas-de-niklas-luhmann/ Acesso em: 13 mai. 2024
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