Direito Civil

A boa-fé na formação dos contratos de compra e venda

A BOA-FÉ NA FORMAÇÃO DOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA[1]

Camila Ramos da Silva[2]

Rodolfo Ricardo Bastos Aguiar²

RESUMO

O presente artigo visa demonstrar a importância da boa-fé e a sua utilização na criação de contratos de compra e venda. Sabe-se que ao longo da história das relações humanas, desenvolveram-se diferentes formas de realização de negócios, assim surgiram os contratos. O contrato foi a forma que o homem encontrou para dar estabilidade às suas relações jurídicas. Entre eles, tem-se a mais antiga forma de relação contratual, os contratos de compra e venda. Negócio jurídico em que se pretende a aquisição da propriedade de determinada coisa, mediante o pagamento de um preço. Pela necessidade de regular de forma correta tais relações surgiu ainda o princípio da boa-fé. Este dispõe sobre a forma como as partes devem agir, estando sempre em conformidade com os padrões que socialmente são reconhecidos. A problematização aqui elencada visa esclarecer como a boa-fé, citada no artigo 113 do Código Civil, vem ganhando cada vez mais importância no Direito dos Contratos, sendo uma cláusula garantidora de direitos às partes proposta a fazer com que a negociação ocorra sempre com honestidade e prudência.

Palavras-chave: Contratos, compra e venda, boa-fé, negócio jurídico, Código Civil, Direitos dos Contratos, prudência.

1 INTRODUÇÃO

Os contratos sempre estiveram presentes na história com o intuito de serem o intermediador das decisões entre as partes, que com ele chegariam a um consenso entre as vontades, ou seja, ao invés de utilizar-se de meios inadequados para concretizar um negócio, o homem começou a usar os contratos para obter estabilidade nas relações jurídicas que pactuava.

Através deste estudo, entraremos em questões fundamentais no que diz respeito ao tipo de contrato de compra e venda, atentando-se principalmente para a importância da cláusula da boa-fé na formação deste tipo contratual. No presente artigo, busca-se entender de que forma o princípio supracitado interfere diretamente nas relações jurídicas, sendo ele essencial para fazer com que a negociação ocorra de acordo com os princípios moralmente vinculados em sociedade, principalmente com honestidade e prudência. Além disso, serão trabalhados os conceitos de contratos de compra e boa-fé, buscando-se também conhecer a perspectiva histórica desses dois institutos especificamente.

No Brasil, os contratos são bastante presentes, e existem de várias formas. Entre os vários tipos de contratos amparados pelo Código Civil, destaca-se o mais usual entre eles: o de compra e venda, sendo ele a mais antiga forma de negócio jurídico. Enfatiza-se aqui a importância contratual da boa-fé como cláusula implícita e garantidora de direitos, principalmente nesse tipo de contrato onde, por ser o mais usual, processa-se de diversas formas.

Escolheu-se esse tema devido a constante percepção da utilização desse tipo contratual e a falta de informação que, geralmente, é bem presente sobre uma das partes, sendo ela lesada e não sabendo como recorrer ou apenas aceitando o fato, muitas vezes desconhecendo as formas corretas de recorrer aos direitos que lhe são garantidos.           

A problematização aqui elencada visa esclarecer como a boa-fé vem ganhando cada vez mais importância no Direito dos Contratos, sendo uma cláusula garantidora de direitos às partes, bem como essencial na formalização de negócios jurídicos, que se estende desde a pré-formação do contrato, até o momento de sua extinção, atentando-se para o modo como ela exerce influência na formação dos contratos de compra e venda.

2. CONTRATOS EM ESPÉCIE: COMPRA E VENDA

2.1 Conceito

O contrato de compra e venda, segundo Carlos Roberto Gonçalves, é um tipo de contrato bilateral pelo qual uma das partes, vendedor, transfere o domínio de uma coisa à outra, comprador, não possuindo forma específica e podendo ser celebrado verbalmente e por escrito. Porém, em alguns tipos contratuais a forma já é prevista pelo Código Civil, como em seu artigo 108 que dispõe sobre a forma no contato que diz a respeito à compra e venda de imóveis de escritura pública quando possuir valor maior que trinta salários mínimos.

No que tange a sua classificação, segundo Marcelo Avelino Bortolini, se classifica como um contrato oneroso, translativo, bilateral e geralmente comutativo. Bilateral porque irá obrigar ambas as partes. Oneroso porque irá gerar vantagens econômicas. Translativo porque tem a capacidade de transferir a aquisição sobre uma propriedade ou um bem. Comutativo porque normalmente as partes conhecem previamente o seu conteúdo.

O contrato de compra e venda é dotado de três elementos: coisa, preço e consentimento

“Concernente à coisa, que deve ser suscetível de apreciação econômica, cumpre destacar que ela também deve ser determinada ou determinável e de existência atual ou futura[…] No que se refere ao preço, este deve ser fixado em dinheiro, sob pena de não ser conceituado o negócio como uma compra e venda. Além do mais, o preço deve ser certo, real e verdadeiro[…] Por fim, o consentimento, que nada mais é que o acordo entre as partes sobre o objeto e o preço, consoante dispõe o art. 482, que preceitua que a compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço (BORTOLINI, Marcelo Avelino. 2014).

2.2 Perspectiva histórica

Antes da ideia de contrato os homens se utilizavam da teoria do mais forte, onde o indivíduo que possuísse maior força teria maior vantagem sobre aquele que possuísse menos. Segundo Hobbes, seria o estado da barbárie, onde o mais forte ao mesmo tempo que intimida pode ser intimidado pelo mais astucioso e a vontade de quem ganhar essa interminável guerra irá prevalecer, ora a de um ora a de outro.

Segundo Stolze, o contrato quando voltado para uma noção histórica do direito civil foi a forma como a sociedade descobriu de sair dessa era que Hobbes determinou de Barbárie, foi o momento que o homem deixou de resolver as coisas, onde uma vontade prevalece sobre outra, e começaram a discutir uma ideia onde ambos teriam opiniões e se vinculariam a um contrato que poderia servir como meio de coerção para que cada parte pudesse exigir o que lhe fora acordado.

Inicialmente, ainda sobre a perspectiva de Stolze, a forma de contratar surge como uma necessidade do homem de, ao invés de utilizar a violência, utilizar o acordo para perseguir os seus fins, imprimindo maior estabilidade as relações jurídicas que pactuava, segundo o seu próprio interesse. A ideia de acordo contratual surgiu apenas na época clássica onde ambas as partes poderiam expressar a sua vontade sobre aquele contrato, chegando assim a um conceito mais estrito e técnico.

Hoje em dia, a concepção possui a ideia moderna de um acordo de vontade por meio do qual as pessoas formam um vínculo jurídico a que se prendem. A compra e venda é a atividade negocial mais comum e difundida em todo o mundo e de maior relevância para o sistema capitalista, desde os vultuosos contratos de fornecimento, pactuados por grandes corporações, à simples aquisição de um doce em uma lanchonete. A compra e venda faz parte da vida do homem moderno.

O contrato de compra e venda no contexto atual sempre tem que prezar pela dignidade da pessoa humana e sempre visar a boa-fé dos contratantes, como vai ser disposto mais a diante, e as partes envolvidas nesse tipo de contrato devem ser dotadas dos requisitos de capacidade e legitimidade, indispensáveis para a perfeita validade não somente da avença em questão, mas, também, de qualquer negócio jurídico.

2.3 Características

O contrato de compra e venda possui características peculiares que o diferencia dos demais tipos, ou seja, além da sua finalidade ser, como o próprio nome sugere, a compra e venda, essas características irão tornar esse contrato válido e o diferenciar dos outros. Entre os pressupostos que o contrato possui, pode-se destacar: as partes, a idoneidade do objeto e a legitimação das partes. Segundo Simone Souza, as partes dizem a respeito dos sujeitos que o contrato irá possuir, um credor e um devedor, tendo esse sujeito que preencher alguns requisitos básicos, a capacidade, por exemplo.

A idoneidade do objeto é a teoria que disserta sobre os pressupostos válidos do objeto, ou seja, ele tem que ser lícito e possível, por exemplo, um indivíduo não pode fazer um contrato com uma contraprestação uma parte da lua, pois não é um objeto possível, assim como não poderá negociar por meio de contratos a venda de substâncias ilícitas, pois seria um objeto ilícito. Por último tem-se a legitimação das partes, ela disserta sobre o caráter de licitude sobre o interesse entre as partes, ou seja, embora a parte seja legítima e tenha interesse a ser protegido, não poderá dispor de objeto que não seja seu.

Ainda segundo Simone Souza, o contrato também possui requisitos de validade que serão de extrema importância para sua validade e eficácia, pois um contrato só terá força para ser exigido ser for válido. Entre os requisitos pode-se citar o consentimento, a causa, o objeto e a forma. Entende-se por consentimento como a declaração de vontade que as partes terão que expressar para a realização do contrato. Porém, pode existir vícios de consentimento, como o erro, o dolo, a coação, a lesão e o estado de perigo, que pode vir a ocasionar a nulidade posterior do contrato.

O erro poderia ser classificado quando o agente por desconhecimento ou falso conhecimento age de uma forma que não seria a sua verdadeira vontade. O dolo ocorre quando alguém é induzido ao erro por outra pessoa, ou seja, é um artifício para enganar alguém. A coação é o constrangimento de determinada pessoa para que ela realize um determinado negócio jurídico.

O estado de perigo ocorre quando a pessoa para se salvar ou salvar pessoas de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, realiza um negócio excessivamente oneroso. A lesão é quando uma pessoa, ou por inexperiência ou por desconhecimento, se obriga a prestação desproporcional ao valor da prestação oposta, ou seja, caracteriza-se por um abuso praticado em situação de desigualdade.

A causa é a própria motivação econômica do contrato, ou seja, o que leva os contratantes ir atrás do objeto. O objeto é o bem sobre o qual vai decair a proposta que está sendo realizada, sendo a prestação das partes. A forma, segundo o nosso código civil, é livre, podendo ser de qualquer forma, desde que não esteja prevista anteriormente em lei alguma determinada, pode ser verbal ou não verbal.

Quando ocorre a quebra desses pressupostos ou requisitos, o contrato poderá ser nulo, pois como já dito anteriormente, só poderá exigir-se a prestação contratual se o contrato for válido. A nulidade se caracteriza como uma sanção da qual a lei priva de eficácia o contrato que é celebrado contra preceito, podendo ser total ou parcial e ser arguida por qualquer uma das partes e não convalescendo pelo decurso do tempo.

A onerosidade e a comutatividade também são características essenciais do contrato de compra e venda, pois todo contrato de compra e venda é oneroso e possuem prestações certas onde as partes poderão antever os sacrifícios e as vantagens que o contrato pode gerar. Como já dito anteriormente o contrato de compra e venda também é bilateral ou sintagmático, ou seja, geram obrigações recíprocas que poderão ser exigidas por ambas as partes.

2.4 Elementos essenciais

A supremacia da ordem pública é um dos elementos que consegue limitar a autonomia da vontade, pois dar prevalência ao interesse público. A força obrigatória

É a força vinculante das convenções. Pelo princípio da autonomia da vontade, ninguém é obrigado a contratar mas, se o fizerem, devem cumprir o contrato. Existe a necessidade da segurança dos negócios, por geraria a balbúrdia e o caos. Qualquer modificação no contrato terá que ser bilateral (todos os envolvidos têm que participar). Uma exceção a este princípio é a revisão dos contratos através da onerosidade excessiva (art. 478 NCC). (SOUZA, Simone)

A onerosidade excessiva ocorre quando

… após a elaboração do contrato, algum fato superveniente, imprevisível e extraordinário, que cause prejuízo a uma das partes, aquela parte prejudicada pode rever o contrato (onerosidade excessiva) […] Esta teoria só pode ser arguida nas prestações continuadas. Além disso, para argui-la, deve-se estar em dia com as obrigações.(SOUZA, Simone)

A Consensualidade é a teoria que define que o contrato é formado como um consenso entre as partes, pois como se sabe, a contratação foi a forma de o homem sair do estado de barbárie que fazia parte se tornando um ser mais diplomático para perseguir os seus objetivos. Em regra geral, o contrato é o consenso entre as partes. Porém, existem contratos como o de adesão na qual uma parte não consegue expressar bem a sua vontade, mas ainda assim, se não concordar ou não tiver vontade de contratar, o contrato não existirá.

A boa-fé, tópico que irá ser explorado mais adiante, em uma visão geral é a teoria que define que as partes têm que se comportar de forma clara e sem segundas intenções, sendo uma cláusula tão importante que é considerada, mesmo que implícita, parte dos contratos. A relatividade é a teoria que define que o contrato poderá ser exigido por terceiros que possuírem vínculo com uma das partes, mas vale ressaltar aqui que não é todo tipo que isso poderá ocorrer, como por exemplo nos contratos personalíssimos. A probidade se confunde com o da boa-fé, sendo considerada por muitos autores como pertencente ao próprio princípio da boa-fé e por último a função social do contrato que diz que ele foi feito como um mecanismo para circulação de riquezas.

3 CLÁUSULA DA BOA-FÉ

3.1 Conceito

A boa-fé foi dividida em duas no ordenamento jurídico brasileiro, uma não mais usual e a outra sendo uma renovação do conceito antes atrelado e que não surtia a real significância do termo na legislação brasileira, quanto em ordenamentos que incidiram sua criação. A boa-fé subjetiva foi conhecida no Código Civil Brasileiro de 1916, consistia em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espirito do agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que expõe. De maneira geral, pode ser entendido como o reconhecimento da ignorância de uma das partes a respeito de determinada circunstância. O legislador amparava uma das partes em vários dispositivos, ao contrário da outra que era possuidora da má-fé, citando-se os arts. 1214 a 1220 e o art. 1242 do antigo Código Civil.

A boa-fé objetiva, entendimento atual na legislação, consiste em uma verdadeira regra de comportamento, ligada a ética e exigibilidade jurídica. Assim, em uma dada relação jurídica, está presente o imperativo dessa espécie de boa-fé, as partes devem guardar entre si lealdade e o respeito que se esperam do homem comum. Devem observar os deveres jurídicos anexos ou de proteção, sendo tais deveres impostos tanto ao sujeito ativo quanto ao passivo da relação jurídica obrigacional, referindo-se a exata satisfação dos interesses envolvidos na obrigação assumida, por força da boa-fé contratual.

Tratada no art. 422, que dispõe:

“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Sobre esse dispositivo, é importante citar a falha do legislador que cita que esse princípio se observa apenas na conclusão e execução do contrato, não sendo essa a regra, pois esse princípio é delineado no código como cláusula geral, o que o faz incidir antes e após a execução dos contratos, sendo assim, nas fases pré e pós contratual.

3.2 Perspectiva histórica

Historicamente a boa-fé (bona fides) inicialmente aparece no Direito Romano e seu significado se relaciona mais com um conceito ético do que propriamente com uma expressão jurídica. Seu implemento no mundo jurídico só ocorre com o incremento do comércio e o desenvolvimento do jus gentium, um complexo jurídico aplicável tanto aos romanos quanto aos estrangeiros.

Os alemães, receptores da cultura romanística, também fizeram uso desse termo, ainda que diferente daquela usada pelos primeiros. E trouxeram o seu desenvolvimento teórico e dogmático. No direito alemão, a noção de boa-fé traduziu-se na fórmula do Treu und glauben (lealdade e confiança), regra que deveria ser observada nas relações jurídicas em geral.

“A fórmula Treu um glauben demarca o universo da boa-fé obrigacional proveniente da cultura germânica, traduzindo conotações totalmente diversas daquelas que a marcaram no direito romano: ao invés de denotar a ideia de fidelidade ao pactuado, como numa das acepções da fides romana, a cultura germânica inseriu, na fórmula, as ideia de lealdade (Treu ou treue) e crença (Glauben ou glaube), as quais se reportam a qualidades ou estados humanos objetivados. (COSTA, Judith Martins, p. 124)”.

Por fim, o direito canônico também trouxe um significado e uso da boa-fé, em termos semelhantes aos do direito alemão, embora introduzissem uma maior significância relacionando-se a sua linha de pensamento: a boa-fé é vista como ausência de pecado, ou seja, como estado contraposto à má-fé.

No Brasil, a primeira manifestação da boa-fé encontra-se no art. 131 do Código Comercial de 1850. A boa-fé foi colocada em contraposição ao sentido literal das cláusulas contratuais, na medida em que deveria incidir não apenas na relação entre o declarado e o suposto, mas igualmente sobre o núcleo, mesmo da vontade intencionada, podendo inclusive redundar em sua desconsideração.

A boa-fé reapareceu no ordenamento jurídico no Código Civil de 1916. Judith Martins-Costa cita que a pretensão de Clóvis Beviláqua à plenitude e a sua excessiva preocupação com a segurança, certeza e clareza não permitiram a inserção de cláusulas gerais e, por essa razão, a boa-fé ficou restrita às hipóteses de ignorância escusável, mormente em matéria de direito de família e em questões possessórias.

Somente com o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, é que a boa-fé objetiva foi consagrada no Brasil. Legislação derivada de ditames constitucionais, a boa-fé passou a ser utilizada tanto para a interpretação de cláusulas contratuais como também para a integração das obrigações pactuadas, revelando ser fundamental que as partes se comportem com correção e lealdade até o cumprimento de suas prestações.

Contudo, é no Código Civil de 2002 que a boa-fé alcança seu apogeu no ordenamento jurídico pátrio. Ao deixar de ser utilizada apenas em casos de ignorância escusável (aspecto subjetivo), passa a incidir também como fonte de deveres autônomos sobre todos os contratos, sejam eles civis ou empresariais, não ficando mais restrita às relações contratuais consumeristas (aspecto objetivo).

3.3 Características

Tratando da boa-fé, é importante citarmos do dispositivo que está intimamente ligado com a função social do contrato (art. 421) e que expõe a boa-fé objetiva como princípio de direito, o art. 422 que trata:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Analisando o que dispõe o artigo, percebemos que o legislador deixou explícito que a boa-fé somente é observável na conclusão e durante a execução do contrato. Porém, deve este princípio incidir mesmo antes e após a execução do contrato, na fase de pré-contrato e pós. A quebra, portanto, dos deveres éticos de proteção poderá culminar, mesmo antes da celebração da avença na responsabilidade civil do infrator.

Por isso, embora imperfeita a atual redação legal e com um possível projeto de correção da lei, não se pode esquecer baseado no macroprincípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a boa-fé objetiva deve ser observada também nas mencionadas fases anteriores e posteriores à celebração do contrato. Pensar em sentido contrário seria defender que o sistema jurídico brasileiro admitiria em tais fases a prática de condutas desleais, somente sancionando-se na fase contratual, isto é um absurdo, visto que o direito é forma de resposta a esse tipo de conduta.

Não podemos esquecer que a boa-fé possui seus efeitos, nos mais diferentes campos e devemos estar atentos ao uso de expressões correntes para caracterizar seus desdobramentos:

  •  Venire contra factum proprium: consiste na vedação do comportamento contraditório.
  • Supressio: Consiste na perda de um direito (supressão) pela falta de seus exercício por razoável lapso temporal. Diferencia-se do instituto da prescrição, que se refere à perda da própria pretensão. No supressio, o que existe é um comportamento omissivo para o exercício de um direito, e o movimento posterior soa incompatível com as legítimas expectativas até então geradas. A luz do princípio da boa-fé, o comportamento de um dos sujeitos geraria no outro a convicção de que o direito não seria mais exigido.
  • Surrectio: Costuma-se citar que este é o outro lado da moeda do supressio. O instituto do surrectio se configura no surgimento de um direito exigível, como decorrência lógica do comportamento de uma das partes.
  • Tu quoque: Sua aplicação se constata em situações em que se verifica um comportamento que, rompendo com o valor da confiança, surpreende uma das partes da relação negocial, colocando-a em situação de injusta desvantagem. Um exemplo é a previsão do art. 180, CC-02. Outro exemplo reside no instituto do exceptio non adimpleti contractus. Se a parte não executou a sua prestação no contrato sinalagmático, não poderá exigir da outra parte a contraprestação.
  • Exceptio doli: Visa sancionar condutas em que o exercício do direito tenha sido realizado com o intuito, não de preservar legítimos interesses, mas de prejudicar a parte contrária. Uma aplicação deste desdobramento é o brocardo agit qui petit quod statim redditurus est, em que se verifica uma sanção à parte que agem com o interesse de molestar a parte contrária e, portanto, pleiteando aquilo que deve ser restituído. Exemplo seria o art. 940, CC-02. Cita-se também a aplicação da figura do assédio processual, consistindo na utilização dos instrumentos processuais para simplesmente não cumprir a determinação judicial.
  • Cláusula do stoppel: É usada no campo do direito internacional, em que se busca preservar a boa-fé e, com isso, a segurança das relações jurídicas neste campo. Em síntese é o efeito do venire contra fractum proprium no plano do direito internacional. Foi observado no problema entre Brasil e Bolívia, no caso da exploração de petróleo pela Petrobrás, em que houve quebra do pactuado, mesmo tendo sido autorizada a realização de vultuosos investimentos: A Bolívia criou legítima expectativa no Governo Brasileiro através da Petrobrás para investir naquele país, e em seguida, baixou ato contrário ao esperado, rompendo a norma ética que se traduz na Clásula do Stoppel.

4 A IMPORTÂNCIA DA BOA FÉ NO MOMENTO DA FORMAÇÃO DOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA

Como já visto, compreende-se pelo contrato de compra e venda o negócio jurídico pelo qual uma das partes, vendedor, transfere o domínio de uma coisa à outra, comprador, não possuindo forma específica e podendo ser celebrado verbalmente e por escrito, gerando assim, obrigações para ambos.

No processo de formação contratual, primeiramente é muito comum a apresentação de uma proposta escrita do possível comprador interessado, considera-se em muitos casos, a proposta, o início do vínculo contratual que se formará entre o vendedor e o consumidor final. Depreende-se daí a chamada policitação. Quem faz a oferta de compra é chamado de proponente ou policitante, e quem a recebe para análise é conhecido no meio jurídico como oblato.

O proponente é quem dá início a formação do contrato através de uma declaração unilateral de vontade, que neste momento, como regra geral, tem força vinculante apenas em relação ao mesmo, pois caso seja aceita pelo oblato, o primeiro será obrigado a cumprir o acordo proposto. Verifica-se assim que até esse ponto da negociação, existe obrigação apenas para quem faz a oferta, nos exatos termos da policitação.

A proposta deve conter os elementos essenciais do negócio jurídico a ser concretizado, de forma que seja precisa e inequívoca, apresentando todos os termos do contrato a ser firmado entre as partes. No caso da compra de um imóvel, por exemplo, o destinatário da mesma é certo, qual seja, o vendedor, sendo que em situações específicas esse pode ser determinável.

Diante de tais condições, fala-se ainda na presença dos requisitos essenciais da compra e venda, sendo eles a coisa, o preço e o consentimento.

Em cada um desses requisitos a cláusula da boa-fé mostra-se essencial para a formação do contrato. Pela coisa entende-se como o objeto a ser adquirido pelo contrato; esse objeto deve estar livre de vícios, ou seja, sem defeitos. Isso dá-se pelo fato de o comprador, ao adquirir algo, tem o direito líquido e certo de conhecer todos os detalhes do que irá adquirir, visando-se evitar principalmente possíveis aborrecimentos e até mesmo arrependimentos pelo fato do vendedor ter agido de má-fé ao vender um produto viciado.

Em relação ao preço, tem-se pela quantia certa e determinada que irá ser transferida ao vendedor pela entrega do produto decorrente do contrato de compra e venda. Podendo esse valor ser pago à vista ou a prazo. Quando se fala na questão do pagamento, a boa-fé é extremamente presente, pois quando se inicia um contrato, ele não se extingue até o momento que ocorre a tradição e o pagamento total do que fora adquirido. Assim, na formação do contrato, pactua-se entre as partes a forma como irá ocorrer o pagamento e também todas as condições para que o mesmo se processe de forma célere e sem complicações.

Agir de má-fé nessas situações, por incrível que pareça, é muito comum e observa-se diversas questões judiciais envolvendo problemas de pagamento em contratos de compra e venda.

Ainda, tem-se o consentimento para a celebração do contrato, que como característica principal deve estar livre de qualquer vício. Dessa forma, a manifestação de vontades das partes não pode estar defeituosa, fato este que caso ocorra, prejudicará a validez do contrato.

Podemos citar um grande exemplo de jurisprudência em relação ao assunto , de autoria do Desembargador Carlos Cini Marchinatti Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento do caso Apelação Cível nº70051409118, assim ementada:

“Apelação cível. Ação denominada de rescisão de contrato de compra e venda de fundo de comércio. Inadimplemento dos adquirentes quanto a parcelas do preço. Declaração, no contrato, de inexistência de dívidas. Dívidas ocultadas, descobertas pelos adquirentes, que superam o valor do negócio. Inadimplemento absoluto.

A existência de dívida, não revelada por ocasião do contrato, mais do que o dobro do preço, justifica a retenção do pagamento e elide a resolução contratual.

O co-demandado, ainda que tenha sido funcionário da empresa, não possuía meios de conhecer completamente a situação financeira da empresa, que comprometia o fundo de comércio e o prosseguimento do exercício das atividades, considerando-se o fato relevante de que não exercia as suas funções junto à contabilidade ou ao setor financeiro.

O contrato prevalece, deve ser mantido e interpretado conforme a boa-fé objetiva, sem prejuízo da ação de cobrança das parcelas impagas por parte dos compradores e acerto recíproco”. (Apelação Cível Nº 70051409118, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 19/12/2012)

Sugere-se o presente acórdão, pois, diferentemente, do que se observa nas decisões mais corriqueiras que discorrem sobre a violação do princípio da boa-fé objetiva nos contratos de compra e venda de estabelecimento empresarial, no presente acórdão, a parte que postula a resolução contratual é a que infringiu a boa-fé objetiva, uma vez que omitiu, expressamente, informações de extrema relevância para o deslinde do contrato.

A boa-fé é algo que não se pode desconhecer ou desprezar, pois se trata de preposição jurídica, com significado de regra de conduta. Sendo assim, a omissão de informações durante a realização de um negócio jurídico infringi, diretamente, o presente este princípio.

Ainda, a teoria da boa-fé objetiva ilustra que, além das obrigações e requisitos essenciais do contrato (consentimento, coisa, preço), as partes devem agir em conformidade com os padrões socialmente reconhecidos de lisura e lealdade, fato que acarreta na confiança das partes. Ou seja, aos contratos não envolvem, somente, obrigações de transferir e pagar, mas, também, estes possuem obrigações de conduta. Nesta seara, destacam-se três pontos decorrentes da boa-fé objetiva, o dever de proteção (o qual a parte deve proteger a outra parte em sua pessoalidade), o dever de lealdade (confiança), e o dever de negociar com honestidade.

Sendo assim, negociar sem observar as condutas de lealdade e honestidade, requisitos previstos pelo princípio da boa-fé objetiva, omitindo ou escondendo informações relevantes do negócio, fere de forma direta a autonomia da vontade da pessoa contratante o que vicia o consentimento.

Importante também frisar que tanto no processo de formação de um contrato de compra e venda, a presença da boa-fé é requisito crucial e que sem ela acarretaria até mesmo na nulidade do negócio jurídico, ela faz-se também necessária na execução por inteira do contrato e também no momento pós-contrato, pois as partes devem agir em conformidade com os padrões de ética, honestidade e transparência, de forma que o contrato possa atingir todas as expectativas almejadas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS        

Demonstrou-se aqui a importância do princípio da boa-fé nos contratos de compra e venda, atentando-se principalmente no que diz respeito a formação desta espécie contratual.

Historicamente, a cláusula da boa-fé começou a se fazer presente em todas as espécies contratuais. A boa-fé objetiva, consiste em uma verdadeira regra de comportamento, ligada a ética e exigibilidade jurídica. Assim, em uma dada relação jurídica, está presente o imperativo dessa espécie de boa-fé, as partes devem guardar entre si lealdade e o respeito que se esperam do homem comum.

Por tais considerações, fixa-se o entendimento doutrinário e jurídico de que os pactuantes devem negociar durante todas as fases contratuais em conformidade com o princípio da boa-fé, uma vez que se este for esquecido por algum dos contratantes, a outra parte poderá requerer a resilição do contrato, como reconhecido pela jurisprudência.

Concluiu-se, que o princípio da boa-fé objetiva, além de poder ser utilizado pela parte prejudicada em ambos os polos do conflito, uma vez que se pode requerer a resilição contratual quando visar o status quo ante, visto que se agiu em desconformidade com os bons costumes e a lealdade contratual, omitindo informações relevantes para o tipo de negócio.

O fato é que os contratos devem ser celebrados com cláusulas específicas que busquem equilibrar as relações contratuais, visando dessa forma minimizar os riscos para que o negócio jurídico ocorra da melhor forma possível para ambas as partes, atentando-se principalmente para a formação da relação, que deve sempre estar livre de vícios ou qualquer fato que possa levar à uma possível questão prejudicial.

REFERÊNCIAS

BORTOLINI, Marcelo Avelino. Aspectos Elementares do Contrato de Compra e Venda. 2014. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8888/aspectos-elementares-do-contrato-de-compra-e-venda>. Acesso em 14 de junho de 2015.

BRONSTEIN, Sérgio; POTENZA, Guilherme Peres. Princípio da boa-fé objetiva e os contratos de M&A. Revista Capital Aberto n. 98, 2011.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, 3: contratos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

CASTELO BRANCO, Pedro Hermílio Villas Bôas. Poderes invisíveis versus poderes visíveis no Leviatã de Thomas Hobbes. Rev. Sociol. Polit., Nov 2004, no.23, p.23-41. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782004000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 16 de junho de 2015.

COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

FRANCO, Vera Helena de Mello. Contratos no direito Privado: direito Civil e empresarial.  São Paulo: Ed, Revista dos Tribunais, 2009.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. NOVO CURSO DE DIREITO CIVIL- CONTRATOS: TEORIA GERAL. 11. ed. São Paulo: Saraiva. 2015.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais – 7ª ed. São Paulo: Saraiva. 2010.

REIS, João Emílio de Assis. Boa fé objetiva: historicidade e contornos atuais no direito contratual. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?

n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8281> Acesso em 24 maio 2015.



[1] Artigo apresentado à disciplina Direito Civil III – Contratos.

[2] Acadêmicos do curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Camila Ramos da; AGUIAR, Rodolfo Ricardo Bastos. A boa-fé na formação dos contratos de compra e venda. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/a-boa-fe-na-formacao-dos-contratos-de-compra-e-venda/ Acesso em: 28 jun. 2025
Sair da versão mobile