O poder do Estado vem do povo – mas para onde ele vai?
Joachi Hirsch
Rafael Celeste[1]
Resumo: o presente trabalho tem o intuito de apresentar uma noção de interesse público e sua aplicabilidade nos atos da Administração Pública, porém, destacando o método de ponderação proporcional como instrumento viável à resolução de colisão entre princípios aparentemente contrapostos. O formato do presente trabalho tem o intuito de apresentar de forma descritiva a abordagem feita pelo autor José Sérgio da Silva Cristóvam sobre a noção de interesse público no livro Administração Pública Democrática e Supremacia do Interesse Público. Neste trabalho utilizou-se de pesquisa teórica/bibliográfica e do método indutivo.
Introdução
No atual momento que o Brasil vive muitos debates afloram sem o mínimo de rigor teórico, às vezes sem correspondência com a própria realidade fática. Interesses de grupos de pressão[2] confundidos com os interesses do Estado, objetivos obscuros formulados sob o signo de interesse público e atos administrativos questionados em face do grau de legitimação da aplicabilidade e da eficiência nas conjunturas econômica e política. Isto requer um estado de vigilância permanente, atentando para o fato da utilização do conceito de interesse público de forma instrumental, orientado à finalidades questionáveis, justamente por ser um conceito abstrato e genérico.
Para o estudo no presente trabalho foi realizada a pesquisa teórica, que consiste em um recorte bibliográfico adequado para se aproximar do problema escolhido, propondo-se a uma inicial revisão bibliográfica sobre o tema: o conceito de interesse público. Ademais, o método utilizado é o dedutivo: apresentamos argumentos gerais para chegar aos argumentos particulares, ou seja, “são apresentados os argumentos que se consideram verdadeiros e inquestionáveis para, em seguida, chegar a conclusões formais, já que essas conclusões ficam restritas única e exclusivamente à lógica das premissas estabelecidas” (MEZZAROBA; MONTEIRO, p.65).
É nesse sentido que se faz necessária a busca por um núcleo irradiador de sentido ao conceito de interesse público, com o intuito de afastar a discricionariedade e o arbítrio do Estado, limitando a atuação do agente público para evitar direcionamentos colidentes com a formação de um Estado democrático de direito, alicerçado na defesa dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Desse modo, o presente trabalho abordará as considerações sobre a noção de interesse público expostas pelo administrativista José Sérgio da Silva Cristóvam (2015) de forma descritiva.
Em um segundo momento, passaremos brevemente para a análise de algumas questões abordadas por José dos Santos Carvalho Filho (2010), tais como a noção de finalidade do Estado como reflexo do princípio da supremacia do interesse público, bem como a figura do desvio de finalidade (ou desvio de poder) quando os objetivos do interesse público são prejudicados por condutas individuais/particulares. Ademais, que todo ato administrativo, em essência, é vinculado, podendo ser efetuado o controle da finalidade por via administrativa ou judicial.
Assim, faz-se necessária a abordagem de como lidar com princípios colidentes, ou seja, no caso concreto como prevalece o que é de interesse público. Portanto, no terceiro momento será apresentada à atribuição ponderativa conferida à Administração Pública para a atuação no caso concreto, com o objetivo de decidir em circunstâncias fáticas e jurídicas, intentando satisfazer as vontades normativas prefixadas. Para tanto serão apresentados os parâmetros da proporcionalidade e do modelo ponderacionista como instrumento fundamental para a hermenêutica jurídica e a consecução dos objetivos do Estado como promotor dos direitos fundamentais e da defesa da dignidade da pessoa humana.
Por fim, com o objetivo de elucidar a noção de interesse público e a uma possível solução por meio da ponderação proporcional de interesses públicos colidentes, colocam-se algumas questões pertinentes ao que significa “bem comum”, mas sem encerrar uma posição definitiva sobre o assunto. Assim, poderemos apontar a necessidade de se analisar a prevalência de alguma norma de acordo com o caso concreto e não fundado em bases abstratas e interesses particulares mascarados de públicos. Portanto, sempre na busca de uma solução adequada aos fins do Estado democrático de direito e na defesa dos direitos fundamentais e no princípio da dignidade da pessoa humana.
Bases para uma noção de interesse público
O princípio da supremacia do interesse público é considerado um dos pilares da atuação da Administração Pública, sobretudo sob a ótica da Constituição de 1988, marcada pela defesa dos direitos fundamentais e na primazia da dignidade da pessoa humana. Contudo, urge o debate mais profundo sobre o conceito de “interesse público” com vistas a elucidar a aplicabilidade do princípio no caso concreto sem justificar e legitimar arbitrariedades do Estado.
É importante frisar em qual contexto jurídico-político o presente debate está inserido, caracterizado pela vigência do Estado constitucional de direito, no qual a Constituição assume seu papel de supremacia no ordenamento jurídico e os direitos fundamentais possuem caráter vinculante, “um modelo de Estado de direito pautado pela força normativa dos princípios constitucionais e pela pretensão de consolidação do paradigma da justiça substancial” (CRISTÓVAM, 2015, p. 76).
Nas palavras do administrativista Cristóvam (2015, p. 77):
O Estado constitucional de direito vem marcado pela relação intestina entre o Estado democrático de direito e o Estado social (direitos sociais), com o deslocamento da centralidade das preocupações sociopolíticas e normativas para a pessoa humana, para o seu desenvolvimento cultural, político e social, a partir de um modelo substantivo de justiça social.
Entretanto, a noção de “interesse público” não é pacífica entre os autores administrativistas, sobretudo considerando que o conceito de “interesse público” faz parte dos chamados conceitos jurídicos indeterminados. Nesse sentido, cabe o questionamento: a noção de interesse público é objetivamente indeterminável e inapta de definição abstrata?
Assim sendo, o que são os conceitos jurídicos indeterminados? Também chamados de “conceitos práticos”, são aquelas expressões vagas, elásticas, com múltiplos entendimentos. Caracterizados por uma imprecisão conceitual, podem apresentar significações diversas e antagônicas. Contudo, tal imprecisão constitui um espaço de habitação à livre discricionariedade da atividade administrativa? Estaria a indeterminação a priori do conceito de interesse público atrelado aos interesses arbitrários do administrador?
Os autores Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernández (1991, p. 393), citados por Cristóvam (2015, p. 91), afastam o entendimento de que a indeterminação dos conceitos jurídicos seja locus de habitação à discrição na prática administrativa.
Com propriedade, os administrativistas espanhóis defendem que a moldura normativa definida como conceito indeterminado ou prático só possibilitaria uma escolha, a melhor à persecução da finalidade legal, pelo que a fluidez ou indeterminação dos conceitos jurídicos só existiria in abstracto, não substituindo nos casos concretos, por ocasião de sua aplicação. Para Garcia de Enterría e Fernández, “a indeterminação do enunciado não se traduz em uma indeterminação das aplicações do mesmo, as quais só permitem uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso”. (CRISTÓVAM, 2015, p. 91) (grifos no original)
No mesmo sentido, na doutrina brasileira, Eros Roberto Grau (apud CRISTÓVAM, 2015, p. 91) sustenta que a indeterminação do conceito jurídico não pode gerar juízos discricionários, visto que a fluidez do conceito jurídico deve levar à unidade da solução em cada caso específico. “Quando a Administração exerce atividade discricionário, o faz a partir de juízos de oportunidade, ao passo que na aplicação de conceitos indeterminados exerce juízos vinculados à legalidade” (CRISTÓVAM, 2015, p. 91).
Não podemos negar, contudo, que a própria apresentação legislativa e as manifestações concretas da realidade transferem ao agente público a função de definir as ações administrativas mais conformes ao caso concreto, porém, isso “não equivale a dizer que estas escolhas administrativas restariam aninhadas no seio de quaisquer arbitrariedades ou afastadas do controle jurisdicional de legitimidade”. Haja vista “que, no Estado constitucional de direito, a atividade administrativa encontra-se plena e visceralmente vinculada ao sistema normativo constitucional (CRISTÓVAM, 2015, p. 92-93).
Não há espaço para juízos discricionários no sentido de valorações político-administrativas livres de quaisquer controles materiais (substantivos). Todo o agir administrativo, ainda que em diferentes gradações e parâmetros, está inteiramente vinculado à Constituição, de onde extrai seu fundamento de validade normativa e legitimidade política. As regras e princípios constitucionais incidem na atividade administrativa, de modo que já não há como defender um espaço de discricionariedade administrativa, mas uma maior ou menor vinculação a partir da perspectiva da juridicidade administrativa. (CRISTÓVAM, 2015, p. 93)
Assim sendo, no Estado constitucional de direito, a Administração Pública está submetida ao princípio da juridicidade administrativa, portanto, a atividade administrativa “somente pode ser reconhecida como válida, legítima e adequada (justificada), se conforme ao sistema normativo de regras e princípios previstos na Constituição, com especial destaque para a satisfação dos direitos fundamentais” (CRISTÓVAM, 2015, p. 94).
Embora a noção de “interesse público” seja indeterminada, sua aplicabilidade não pode ser traduzida em locus de arbitrariedade do agente público na atividade administrativa. A vagueza do conceito não é uma característica liberatória para quaisquer decisões, de modo que tais ações só serão legítimas se passíveis de um retorno racional ao sistema de regras e princípios disciplinados pelo legislador constituinte e pela ordem normativa infraconstitucional, se orientada com a Constituição. Assim sendo, “todas as decisões administrativas são vinculadas (em maior ou menor gradação) à ordem normativo-axiológica constitucional e infraconstitucional, de onde ressaem a justificativa, o fundamento, a finalidade e a própria legitimação do agir administrativo” (CRISTÓVAM, 2015, p. 95).
Nesse mesmo sentido, Sousa ressalta que a indeterminação de sentido dos conceitos jurídicos não conduz, de forma desavisada e automática, à livre discricionariedade administrativa, alertando que todo o “conceito legal indeterminado é pluridimensional, mas nem toda a pluridimensionalidade de um conceito legal indeterminado é querida pela lei. Neste caso, é possível uma passagem para a unicidade, isto é, é possível que o conceito legal indeterminado passe a ser determinado” (CRISTÓVAM, 2015, pp. 96-97). (grifos no original)
Nesse sentido, a atuação concreta do agente público pauta-se por um juízo ponderativo, considerando a vinculação e submissão ao ordenamento jurídico: regras e princípios, constitucionais e infraconstitucionais. De modo que fundamentará a própria legitimidade da atividade administrativa. Destarte, a presente abordagem tem como fundamento a explanação de Cristóvam (2015) sobre a bidimensionalidade do conceito de interesse público: por um lado, em sentido amplo, “que pode ser reconduzido a uma dimensão político-axiológica do interesse público” e, por outro lado, em sentido estrito, “que, por falta de uma designação mais adequada, pode ser indicada como uma perspectiva jurídico-normativa” (CRISTÓVAM, 2015, p. 107).
Para Cristóvam (2015, p. 108), no sentido amplo, sob uma perspectiva política-axiológica, é possível construir o conceito de interesse público com base na justaposição aos princípios e valores constitucionais que formam as bases do Estado republicano social e democrático de direito, unindo-se às “pautas axiológico-constitucionais que exprimem as noções de igualdade, liberdade, equidade, segurança, democracia e justiça, veiculadas expressa ou implicitamente pelos direitos e garantias fundamentais”.
Por outro lado, o sentido estrito está fundado nas seguintes bases:
A perspectiva restritiva do conceito de interesse público (sentido estrito), por sua vez, vincula-se àqueles princípios, valores e objetivos que marcam o conjunto de interesses coletivos e sociais estabelecidos pela ordem normativa constitucional, conjugados em favor da comunidade política e não apenas de um ou outro cidadão individualmente considerado. Estes interesses coletivos e sociais devem ser densificados a partir de um processo de concretização ponderativa, tanto pelo Estado, via suas esferas ponderativas constitucionais, legislativas, administrativas e judiciais, como por todos os demais espaços públicos não estatais de defesa e promoção de interesses coletivos e sociais. (CRISTÓVAM, 2015, p. 111)
Isto é, em situações de contraposição, deve-se ater à baliza normativa, constitucional e infraconstitucional, “e pela respectiva via instrumental da ponderação de interesses e não a partir de qualquer parâmetro apriorístico e autoritário de prevalência abstrata do interesse público sobre o privado” (CRISTÓVAM, 2015, p. 111). Porém, independente do sentido (amplo ou restrito), não é possível reduzir a noção de interesse público a um pensamento limitado à realização de uma medida provável do interesse público em uma dada “situação concreta, no sentido de que alguma prossecução do interesse público já seria o suficiente para legitimar ou justificar o agir administrativo ou determinada decisão judicial” (CRISTÓVAM, 2015, p. 111).
Quando a Constituição estabelece uma relação de prevalência de determinado direito ou interesse (nível da ponderação constitucional), não se pode admitir como legítima outra interpretação diversa daquela comprometida com a supremacia constitucional. Da mesma forma, ressalvados os casos de vícios de inconstitucionalidade ou de ponderação de princípios em relação concreta de conflito, há que se reconhecer a prevalência vinculativa das escolhas políticas do órgão legislativo (nível da ponderação legislativa), sob pena, inclusive, da grave ofensa ao próprio princípio democrático e à legalidade administrativa. (CRISTÓVAM, 2015, p. 115-116)
Assim sendo, reconhece-se à Administração Pública um papel instrumental e suplementar de materialização substantiva e conformação ponderativa das insuficiências do conceito de interesse público. “Uma atuação sempre vinculada aos parâmetros constitucionais e infraconstitucionais e à consecução otimizada dos direitos e interesses assegurados pela Constituição e pela ordem normativa infraconstitucional”. Contudo, esses aspectos supletivos e finalísticos não poderão ser legitimamente executados “a partir de qualquer parâmetro vago, autoritário e apriorístico de supremacia do interesse público, e sim, pela via um agir administrativo fundado em critério e parâmetros adequadamente justificáveis”. Pelo contrário, deve se basear num “modelo de ponderação proporcional de interesses, em que são levadas em consideração as circunstâncias e peculiaridades da situação concreta, com base em um processo público, transparente e dialógico de justificação das decisões estatais” (CRISTÓVAM, 2015, p. 116).
É desse modo que será importante avaliar como a ponderação proporcional de interesses pode ser mais efetiva, não carregando problemas de legitimidade e dando soluções equilibradas ao conflito de interesses. Da mesma forma, seguir esse modelo possibilita o controle jurisdicional da atividade administrativa, em busca da conformação constitucional ou legal das medidas administrativas de promoção do interesse público, porém, como aponta Cristóvam (2015, p.116), “com base em justificativas e motivações e não limitado ao quase intransponível dogma da prevalência apriorística do interesse público”.
Finalidade, desvio de poder e controle de finalidade
É certo que não há uma única noção de “interesse público”, pois, como dito acima, é um conceito aberto e abstrato e que faz parte da seara dos conceitos jurídicos indeterminados. Portanto, um conceito que gera muitas posições diferentes e, às vezes, colidentes. Isto posto, como própria da investigação científica, a busca pela verdade – um conceito fechado ou seu extirpamento do sistema categorial – pode estar ofuscados por sofismas. Como aponta José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 68), se a verdade é necessária, não será simples “demonstrar que não o é. Por isso, é comum que o estudioso se socorra de sofismas, através dos quais, partindo de uma premissa verdadeira, procure conduzir a uma conclusão falsa ou compatível com a premissa”.
Desse modo, Carvalho Filho (2010, p. 68) faz considerações sobre o ponto de vista sociológico:
Do ponto de vista sociológico, a insatisfação relativamente aos paradigmas clássicos propicia inquietação e intranquilidade. Quando parte do grupo social assimila a aparente inovação, vão-se criando as etapas de seu desenvolvimento, só se atingindo a finalidade modificativa se a inovação for acolhida inteiramente. Distinguem-se, portanto, em Sociologia os estágios da agitação, excitação, formalização e institucionalização no desenvolvimento da inquietude social. No caso das verdades sofismáticas, porém, pode ser atingida no máximo a etapa da formalização, mas nunca será conquistada a institucionalização como viés aceito de maneira consensual e universal.
O entendimento clássico do conceito de interesse público exerce função mais expressiva a começar da “constituição do Estado de Direito, de cujos postulados fundamentais ressai o que identifica sua função basilar, qual seja a de gerir os interesses das coletividades alvejando o bem-estar e a satisfação dos indivíduos” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 69).
No entanto, fez-se necessária a reflexão sobre o sentido do interesse público com as circunstâncias dos tempos modernos, haja vista que o surgimento do Estado de Direito e a consequente ascensão dos direitos e interesses da coletividade passou a destacar-se o “sentimento de que o Estado, em última instância, só se justifica em função dos interesses da sociedade, ou seja, o móvel de sua instituição repousa no intuito de servi-la e administrar-lhe direitos e interesses” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 71).
O Direito Administrativo, então, passou a realçar o elemento finalidade nas atividades administrativas: o fim último do Estado é o interesse público. Em cada conduta estatal caberia perscrutar o elemento teleológico da Administração e, dependendo do alvo a alcançar, poder-se-ia distinguir a legalidade ou a arbitrariedade da conduta. Ao mesmo tempo, a finalidade se atrelaria à própria causa dos atos: “O fim a atingir pelo ato administrativo só pode descortinar-se através dos motivos revelados no processo gracioso ou expressos na fundamentação”, destacava MARCELO CAETANO. (CARVALHO FILHO, 2010, p. 71)
Assim sendo, da relação entre interesse público e as finalidades dos atos do Estado surgiu o desvio de finalidade (ou desvio de poder). De acordo com Rivero (1977, p. 250), citado por Carvalho Filho (2010, p. 71), sucederia o desvio quando a Administração empreendesse fim diferente “daquele previsto no direito, desviando-se, por conseguinte, do fim legal que o poder lhe confiara. Na verdade, averbava o autor, a Administração não poderia direcionar-se para outro fim que não o interesse público”.
O interesse público, portanto, se antagoniza com a ideia do isolacionismo e do egocentrismo. Ultrapassa as fronteiras dos interesses individuais e representa uma demanda de satisfação por parte das comunidades. Ainda que nem sempre sejam personalizados, os grupos sociais têm anseios próprios e interesses específicos a serem satisfeitos. Quando o Estado administra tais interesses, deve ter em mira os grupos e os benefícios que reclamam. Infere-se, pois, que o interesse público não é o somatório dos interesses individuais dos componentes do grupo social, mas traduz interesse próprio, coletivo, gerador de satisfação geral, e não individual; enfim, busca o bem comum. (CARVALHO FILHO, 2010, p. 73)
Portanto, sustenta-se que princípio da supremacia do interesse público decorre da natureza daquela lógica. Isto é, se o interesse é público tem que prevalecer sobre o interesse privado quando estiverem em conflito, pois a premissa é de que seria o caos na organização social se as demandas gerais não superassem as individuais. Continua Carvalho Filho (2010, p. 74) “o que caracteriza aquelas é a unidade, por seu caráter grupal, enquanto que estas últimas são marcadas pela heterogeneidade, oriunda, como não poderia deixar de ser, das personalidades individuais da sociedade”.
Abre-se um parêntese, no entanto, para questionamentos fundamentais sobre a noção de bem comum, pois contestado por análises diversas das administrativistas, tal noção carrega significados ideológicos ainda não explícitos, como questiona Joachim Hirsch (2010, p. 9).
Como se pode falar de bem comum quando frequentemente poderosos interesses particulares se fazem presentes no Estado? Por que o governo do interesse público não age no interesse da maioria? E quem pode ter a sensação de ter participado concretamente da construção e da atividade do Estado?
Fechando o parêntese, como já foi dito acima, aquela posição de supremacia do Estado não pode sustentar arbitrariedades do agente público, pois o intuito do princípio é a proteção e garantia dos direitos fundamentais. “Como permeia a finalidade (ou fins) dos atos administrativos como um de seus elementos, o interesse público acaba sendo ponto de referência para o controle de legalidade quando a Administração se desvia do objetivo a que se dirige o ato” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 75). De modo que o desvio de finalidade ou desvio de poder representa uma afronta ao interesse público, por isso é fundamental o controle dos atos e condutas eivados de vícios.
O controle da finalidade das condutas administrativas representa o próprio controle do interesse público. Quando se fala em controle de finalidade é de se considerar que o desvio de conduta não se consuma apenas quando o administrador se envolve com fins privados, mas o desvio ocorre da mesma forma quando o fim, aparentemente de interesse público, é diverso do que a lei indicou. Nesse caso, o desvio é mais ostensivo do que no anterior – este usualmente escamoteado pela aparência de legalidade. (CARVALHO FILHO, 2010, p. 75)
Por fim, não é a existência de desvios de finalidade (desvios de poder) que afetará o núcleo conceitual e sua necessária influência na realidade concreta, haja vista o próprio ordenamento jurídico produzir normas que auxiliem no controle da finalidade e na defesa do interesse público. Assim como Carvalho Filho (2010, p78), o autor do presente trabalho, aposta que “a negação do princípio configura-se, efetivamente, como postura anticívica e egocêntrica, já que confere proeminência a interesses privados, como o fez, desastrosamente, o liberalismo conservador do século XIX”. Ademais, é possível considerar reacionária a prática de submeter o interesse social aos interesses privados, embora existam exemplos que a satisfação de um interesse público se realize quando o Estado defende necessidades particulares, em outros momentos, os interesses privados atendidos significam prejuízos ao bem comum, afrontando o princípio da supremacia do interesse público.
Como ponderar dois interesses públicos?
Admite-se que o atual cenário jurídico-administrativo, inserido no modelo de Estado constitucional de direito, deslocou-se “para o cidadão, a partir da personalização da ordem constitucional, do primado da dignidade humana e da prevalência dos direitos fundamentais” (CRISTÓVAM, 2015, p. 122). Contudo, urge o dilema: como fazer a ponderação necessária em caso de dois interesses públicos divergentes? Antecede à resposta apontar os traços característicos desse debate uma (ou a) noção de ponderação.
Conforme visto, o Estado constitucional de direito vem marcado por alguns traços fundamentais, do que resulta uma estrutura aberta e maleável de princípios constitucionais, certa fluidez conceitual da noção de interesse público, a centralidade do sistema de direitos fundamentais e a personalização da ordem normativa constitucional sob o primado da dignidade humana. Segundo Binenbojm, esse caldo político-jurídico conduz a um genuíno Estado de ponderação (Abwägungsstaat), fundado na supremacia de uma ordem constitucional que “impõe ao legislador à Administração Pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização”. (CRISTÓVAM, 2015, p. 175) (grifos do autor)
Desse modo, na indeterminação constitucional e infraconstitucional sobre juízos ponderativos de prevalência de certo interesse público ou privado, “remanesce a incumbência/atribuição ponderativa conferida à Administração Pública e, também, ao Poder Judiciário, para decidirem pela prevalência concreta e relativa de determinado direito ou interesse”, de acordo com as respectivas circunstâncias concretas e jurídicas, sempre almejando “à máxima satisfação daquelas vontades normativas preestabelecidas” (CRISTÓVAM, 2015, p. 175).
Em um contexto como este, marcado pela constante relação concreta de conflitos e colisões entre direitos e interesses, dos mais variados matizes, todos aninhados no seio dessa dinâmica e multifária ordem jurídica-política constitucional, os parâmetros da proporcionalidade e do modelo ponderacionista representam elementos instrumentais a esse novo paradigma emergente, característica indelével de uma renovada hermenêutica constitucional. Nas palavras de Binenbojm, neste quadrante surge “o dever de ponderação proporcional como fator de legitimação do Estado democrático de direito e princípio reitor da atividade administrativa”. (CRISTÓVAM, 2015, p. 178) (grifos do autor)
Urge apontar que a atividade interpretativa do agente público, em suas atribuições como representante da Administração Pública, deve atentar para os critérios de razoabilidade e proporcionalidade na consecução dos atos administrativos, fundados no respeito aos direitos fundamentais e na defesa da dignidade da pessoa humana. Faz-se necessário, portanto, apresentar o conceito de “ponderação” referenciado pelo administrativista Cristóvam (2015, p. 178):
[…] por ponderação de interesses deve-se entender “um processo racional, um método de desenvolvimento do direito, na medida em que soluciona conflitos entre princípios, impondo restrições recíprocas, apenas limitando um deles na medida do indispensável à salvaguarda do outro”. Assim, não há lugar para o entendimento do modelo de ponderação proporcional como um subjetivo ou irracional “comando de precedência/preferência, mas em um critério argumentativo, de fundamentação racional dos enunciados que estabelece essa primazia. Trata-se de uma avaliação de qual dos interesses opostos, abstratamente, no mesmo patamar, possui maior peso no caso concreto”. (grifos do autor)
Isto é, a teoria ponderacionista não pode ser traduzida em um insuprimível espaço de indeterminações “jurídico-políticas, de diuturna relativização de direitos, progressiva corrosão da noção de segurança jurídica e consequente deficit de instabilidade social, política e econômica da comunidade” (CRISTÓVAM, 2015, p. 190).
O chamado Estado de ponderação não pode ser convertido em um Reino do “tudo depende”, na relativização dos conceitos e dos institutos jurídicos, que fundam as regras e os princípios constitutivos da ordem jurídica vigente. Não se pode abrir espaços para práticas decisionistas dos poderes constituídos, em especial para a subjetividade da atividade administrativa e judicial. A ponderação proporcional deve estar fundada em um método racional de ponderação de interesses, no sentido de assegurar a prevalência relativa daqueles direitos ou interesses pelas respectivas condições de precedência. (CRISTÓVAM, 2015, p. 190)
Da mesma forma, Cristóvam (2015, 190) recorre a Sarmento (2000, p. 102) para apontar que este intenta apresentar uma tipo de metodologia de aplicação da ponderação de interesses, “segundo a qual a primeira necessidade seria a exata identificação do real conflito entre princípios”. Cristóvam (2015, p. 190) continua:
Isso é importantíssimo, porquanto há muitos casos em que a delimitação do âmbito de abrangência de cada um dos princípios supostamente contrapostos já é suficiente para harmonizá-lo, em uma espécie de diagnóstico dos “limites imanentes” daqueles direitos e interesses aparentemente em colisão. Se confirmado o conflito, com base nas situações concretas, caberia ao intérprete “impor ‘compreensões’ recíprocas sobre os interesses protegidos pelos interesses em disputa, objetivando lograr um ponto ótimo, onde a restrição a cada interesse seja a mínima indispensável à sua convivência com o outro”. (grifos do autor)
Assim, como aponta Cristóvam (2015, p. 201), o método da ponderação de interesses exige a aplicação de uma lógica e atos racionais, com o objetivo de alcançar a finalidade de “concretização otimizada daqueles direitos e interesses reconhecidos pela ordem normativa vigente. Trata-se de uma atividade que deve ser dimensionada com base em uma ordem hierarquizada, a partir das balizas constitucionais” .
Assim sendo, o primeiro ponto de averiguação da relação de colisão é o sistema constitucional e sua “ordem de regras e princípios positivados”. O segundo ponto da ponderação proporcional, leva-nos ao campo da “legislação infraconstitucional e de todo o arcabouço normativo, que somente pode ser aplicado após o teste de constitucionalidade e o exercício de ponderação e harmonização ao conjunto normativo constitucional. (CRISTÓVAM, 2015, p. 201)
Destaque para o que significa o espaço de concretização da ponderação.
O espaço, por excelência, de efetiva concretização da ponderação decisória, no caso de conflitos entre interesses públicos e privados, gravita em torno do aparato da Administração Pública e sua estrutura orgânica, na sua dinâmica e precípua atividade finalística estatal de densificação do conjunto de normas constitucionais e infraconstitucionais que compõem a ordem normativa vigente. Há, ainda o espaço da ponderação proporcional comum às decisões judiciais de concretização de direitos, com a solução de conflitos entre direitos e interesses públicos e privados contrapostos (judicialização das colisões entre interesses públicos e privados), além do amplo espectro de medidas relacionadas ao controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos em geral. (CRISTÓVAM, 2015, p. 201).
Cabe ressaltar que antes de qualquer análise ponderativa de interesses, é preciso identificar se há de fato a existência de uma colisão entre direitos ou interesses a ser solucionada pelo postulado da ponderação proporcional. “Isto porque, antes de cogitar em ponderação de interesses, importa averiguar se há um verdadeiro conflito concreto entre interesse público e interesse privado, ambos de mesma estatura constitucional” (CRISTÓVAM, 2015, p. 202).
No entanto, é importante enfatizar que a Constituição Federal não abriga qualquer teoria de prevalência abstrata e absoluta, até mesmo no caso dos direitos fundamentais. “No sistema constitucional nacional não se pode cogitar de uma estática relação de hierarquia entre interesses públicos e privados, ainda que veiculados por meio de direitos fundamentais” (CRISTÓVAM, 2015, p. 203). Desse modo, para os casos de efetivo conflito entre interesses públicos e privados, o âmbito “comum ao debate ponderacionista povoa o sistema constitucional e seu vasto conjunto normativo de princípios expressa ou implicitamente positivados, a veicular os mais variados direitos e interesses constitucionalmente assegurados” (CRISTÓVAM, 2015, p. 204).
No âmbito da ponderação constitucional, o legislador constituinte originário dispõe de ampla liberdade jurídica para normatizar ponderações entre bens, valores, interesses e direitos, estabelecendo ordens de prevalência. Neste quadrante, um exemplo de preferência ao interesse público pode ser encontrado no art. 5º, XXV, da Constituição Federal, quando prevê que, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Por outro lado, há exemplos de prioridade aos interesses individuais, como prescreve o art. 5º, XI, ao assegurar que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. (CRISTÓVAM, 2015, p. 204) (grifos do autor)
Recorrendo aos ensinamentos de Humberto Ávila (2009), Cristóvam (2015, p. 209) disserta:
Neste quadrante, com elevada consistência teórica e preocupação prática, depois de estabelecer um sólido juízo crítico acerca do infundado e insubsistente desprestígio operativo e normativo a que vêm sendo relegadas as regras jurídicas, Ávila apresenta três diretrizes fundamentais à construção de um modelo de ponderação intersubjetivamente controlável e compatível com o sistema de separação de poderes, que podem ser assim descritas: 1. O respeito à força normativa das regras constitucionais imediatamente aplicáveis ao caso; 2. O respeito à força normativa das regras infraconstitucionais, se editadas nos limites da ordem constitucional; 3. O respeito a padrões mínimos de racionalidade e justificação no processo de ponderação proporcional.
No primeiro caso, “importa ressaltar que o processo de ponderação horizontal entre princípios constitucionais somente poderá ser estabelecido se inexistente uma regra constitucional impositiva da solução normativa para o caso concreto”. Haja vista que a presença de “regra constitucional imediatamente aplicável representa uma ponderação constitucional com pretensão jurídica de definitividade, que não pode ser simplesmente ignorada pela autoridade legitimada para aplicar a norma” (CRISTÓVAM, 2015, p. 209).
Da mesma forma, na inexistência de uma regra constitucional aplicável de imediato, deve-se observar se existe alguma norma que defina os limites e atribuições do Parlamento para legislar sobre matérias específicas.
Presente a referida regra atributiva de competência legislativa, se cumprida a mediação legislativa dentro dos limites constitucionais por meio de regras jurídicas parametrizadas com a Constituição, a autoridade administrativa ou judicial deve conduzir suas decisões a partir daqueles comandos normativos infraconstitucionais. Isto não significa, por certo, negligenciar a inegável possibilidade de interpretação de regras jurídicas a partir dos princípios constitucionais, com a adoção do sentido que melhor se ajuste à ordem constitucional, a partir da justificada equalização restritiva ou ampliativa da regra normativa para o otimizado alcance da sua finalidade, havendo até a possibilidade do seu afastamento, em casos de inegável condição de extraordinariedade. Mas nunca simplesmente desconsiderar a regra jurídica, a partir de um juízo obscuro e ilegítimo de preferências subjetivas. (CRISTÓVAM, 2015, p. 210).
Por fim, no caso da terceira diretriz fundamental, importante ao objetivo de racionalidade da ponderação proporcional, diz respeito à necessidade de justificação das decisões ponderativas. Nessa questão, se inexistente uma regra constitucional ou infraconstitucional diretamente aplicável à situação, Cristóvam (2015, p.211) aponta que Ávila (2009) sustenta a importância de três momentos fundamentais ao processo ponderativo, “que são a indicação dos princípios objeto de ponderação (pré-ponderação), a ponderação em si e a sua fundamentação”. Ademais, continua Cristóvam (2015, p. 211):
Para essa fundamentação, emergem cinco elementos basilares à argumentação ponderativa: 1. As razões de justificação da preferência ponderativa de determinado(s) princípios(s) em detrimento de outro(s); 2. Os critérios usados para a definição do peso e da prevalência daquele(s) determinado(s) princípios(s) em detrimento do(s) outro(s), bem como, a relação entre esses critérios; 3. O “procedimento e o método que serviram de avaliação e comprovação do grau de promoção de um princípio e o grau de restrições de outro”; 4. A “comensurabilidade dos princípios cotejados e o método utilizado para fundamentar essa comparabilidade”; 5. O conjunto de fatos relacionados ao caso que foram considerados relevantes para a ponderação e “com base em que critérios eles fora juridicamente avaliados”.
Portanto, crucial o debate sobre a análise ponderativa, sobretudo sobre a ótica da ponderação proporcional. Com o intuito de solucionar conflitos entre interesses públicos e interesses privados, ou de dois interesses públicos colidentes, a melhor persecução do princípio da supremacia do interesse público deve ater-se aos pilares de um Estado Democrático de Direito, pautado pelos direitos fundamentais e na defesa da dignidade da pessoa humana.
Cabe, finalmente, apontar que o método de decisões ponderativas não é, ou não deveria ser, portador de discricionariedades, que, por vezes, justificaria ações arbitrárias do Estado contrárias ao interesse público, escondendo a defesa de interesses privados egoístas e individualistas. Da mesma forma, tais condutas não estariam justificadas pela engenharia do Estado constitucional de direito, apontado acima como uma estrutura aberta e maleável de princípios constitucionais.
Por fim, em acordo com Ávila (2009), citado por Cristóvam (2015), o presente trabalho associa-se aos três momentos imprescindíveis para a metodologia da ponderação proporcional, quais sejam, a) verificar se há uma norma constitucional que seja aplicável ao caso concreto, evitando, assim, um debate desnecessário de fácil solução; b) o recurso às normas infraconstitucionais, se respeitadoras da Constituição; e, por último, c) o respeito à racionalidade e justificação no método de ponderação proporcional.
Considerações finais
Como considerações finais é importante retomar que a discussão no presente trabalho trata de uma abordagem sobre a noção de interesse público, apresentada pelo administrativista José Sérgio da Silva Cristóvam (2015), bem como apontamentos realizados por José dos Santos Carvalho Filho (2010). Por fim, aponta a importância do método de ponderação proporcional, sempre atento ao ordenamento jurídico vigente para evitar contradições no próprio exercício de escolha de interesses contrapostos.
Considerado um dos princípios basilares da Administração Pública, o princípio da supremacia do interesse público ganhar subst6ancia com a Constituição de 1988. Mudança significativa no quadro normativo e principiológico da república, a Constituição sedimentou em sua estrutura o Estado Democrático de Direito, calcado nos direitos fundamentais e na defesa do princípio da dignidade humana.
Isto posto, o presente trabalho intentou apresentar uma noção de interesse público com o objetivo de compreender a aplicabilidade do princípio no caso concreto, sem que isso justifique ou legitime arbitrariedades do Estado. Não é a abstração e indefinição do conceito que permitirá que o agente público, no âmbito de suas atribuições administrativas, atue conforme seus interesses, valores, pelo contrário, seus atos, ainda que portadores de valorações, são vinculados à ordem constitucional.
Da mesma forma, considerando o interesse público como o bem comum que deve ser promovido pelo Estado à coletividade, é fundamental apontar que nasce dessa lógica a figura da finalidade, que baliza os atos administrativos, orientando-os ao fim prometido por um Estado democrático de direito, atento aos direitos sociais e na proteção e garantia dos direitos fundamentais para consecução do bem comum. Além disso, funda-se nesse sentido a ideia de desvio de finalidade (ou desvio de poder), quando as ações do Estado, por meio dos agentes públicos, distanciam-se das finalidades adotadas no programa estatal de defesa dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.
Há, portanto, aqui, a necessária abordagem sobre o controle da finalidade, importantíssimo para limitar e rever os atos administrativos eivados de ilegalidade (arbitrariedade). Cabe salientar que a própria Administração Pública pode rever os seus atos viciados, porém, quando o órgão for o promotor dos vícios, o Poder Judiciário pode servir de caminho para impedir abusos e proteger e garantir o interesse público.
No entanto, o que fazer quando dois interesses públicos estão contrapostos? Foi o objetivo do presente trabalho apresentar uma alternativa, segundo o administrativista Cristóvam (2015), com algumas lições do autor brasileiro Humberto Ávila (2009), o método de ponderação proporcional é adequado para a solução de interesses públicos em rota de colisão.
Para isso foram apontados cinco elementos basilares à argumentação ponderativa:
1) Devem ser apresentadas as razões que justifiquem a preferência ponderativa de um determinado princípio em detrimento de outro;
2) Devem apontar os critérios utilizados para a definição do peso e da prevalência do princípio escolhido em detrimento de outra, assim como a relação entre os critérios;
3) É necessário apresentar o procedimento e o método que possibilitaram a avaliação e comprovação do nível de promoção de um princípio e o nível de limitação de outro;
4) Da mesma forma, a comensurabilidade dos princípios aferidos e o método adotado para fundamentar a comparabilidade;
5) As circunstâncias fáticas que levaram a essa escolha.
Da mesma forma, retomando o ponto final do tópico anterior, concordamos com Ávila (2009), quando citado por Cristóvam (2015), ao associar-se aos três momentos imprescindíveis para a metodologia da ponderação proporcional, quais sejam, a) verificar se há uma norma constitucional que seja aplicável ao caso concreto, evitando, assim, um debate desnecessário de fácil solução; b) o recurso às normas infraconstitucionais, se respeitadoras da Constituição; e, por último, c) o respeito à racionalidade e justificação no método de ponderação proporcional.
Mesmo sabendo que o conceito de “interesse público” está presente na seara dos conceitos jurídicos indeterminados, novamente, não é possível dizer que a abstração e a vagueza do conceito seja espaço de discricionariedades, abusos, arbitrariedades do agente estatal. É nesse sentido que deve ser analisada a questão com base na estrutura do Estado brasileiro, sedimentado em um Estado democrático de direito, baseado nos direitos fundamentais e no princípio da dignidade humana.
Por outro lado, mesmo questionando o que é “interesse público” e “bem comum”, como faz Hirsch (2010), não podemos nos eximir de resolver as colisões de princípios que balizam a ordem constitucional e social de um país, atentando para o caso concreto, por métodos racionais e justificativas plausíveis e em consonância com os preceitos constitucionais estabelecidos pelo constituinte em 1988 e pelas normas infraconstitucionais surgidas depois de décadas da incipiente democracia que estamos vivendo.
É verdade que muitas leis são produtos de relações obscuras e interesses colidentes com os interesses públicos, tais como as bancadas formadas no Congresso Nacional, porém, vivemos em uma República e o processo democrático nos fornece os instrumentos para mudar o quadro político e institucional, seja votando diferente, seja entrando com ações judiciais e administrativas que visem a correção dos atos administrativos eivados de vícios que ferem o bem comum e afrontam direitos fundamentais.
Por fim, é nessa complexidade da vida real que estamos inseridos e é nela que devemos atuar para a melhor solução no caso concreto, assim servindo de baliza para construir o nosso republicanismo e consolidar o processo democrático. Não podemos, portanto, afastar um conceito, como o de “interesse público”, por não existir uma definição fechada ou por não estar expresso como norma-princípio no texto constitucional. Esse apagamento só serviria para interesses egoístas, mesquinhos e individualistas de ideologias contrários à coletividade, como a neoliberal.
Caminhando nessa senda de consolidar métodos racionais e justificativas baseadas em critérios válidos para tomar decisões que a Administração Pública pode atuar na promoção dos direitos fundamentais e na defesa da dignidade humana, estruturando cada vez mais o nosso inicial Estado democrático de Direito, que ainda engatinha, mas com um proeminente futuro.
Referências bibliográficas
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Interesse público: verdades e sofismas. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 67-84.
CRISTÓVAM, José Ségio da Silva. Administração Pública democrática e supremacia do interesse público: novo regime jurídico-administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. Curitiba: Juruá, 2015.
PENA, Gustavo Teodoro Andrade. Grupos de Pressão. Revista Âmbito Jurídico. Rio Grande-RS, jun. 2019. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8352>. Acesso em: 02 jun. 2019.
HIRSCH, Joachi. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
[1]Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: rrafaceleste@gmail.com
[2]Para entender sobre o conceito de “grupos de pressão”, consultar: PENA, Gustavo Teodoro Andrade. Grupos de Pressão. Revista Âmbito Jurídico. Rio Grande-RS, jun. 2019. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8352>. Acesso em: 02 jun. 2019.