A Força Normativa da Constituição – Hesse
Guilherme Ricken*
Referência: HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
Segundo Ferdinand Lassalle, os fatores reais de poder – os industriais, as Forças Armadas, entre outros – formam a Constituição real do país, enquanto o documento comumente denominado de Constituição é nada mais do que a Constituição jurídica da nação. Assim, a coincidência entre a realidade e a norma seria apenas um limite hipotético extremo, estando o Direito Constitucional em contradição com a essência da Constituição e negando até mesmo seu valor enquanto ciência jurídica. De tal forma, à Constituição não caberia o papel de fundamentar uma ordem estatal justa, mas apenas justificar as relações de poder dominantes.
Há uma influência recíproca entre a Constituição jurídica e a realidade político-social, não podendo, dessa forma, ser feita uma análise unilateral da questão. Embora isso pareça óbvio, o pensamento de intelectuais como Jellinek e Carl Schmitt era marcado pelo isolamento entre norma e realidade. É possível constatar que a norma constitucional não existe de forma autônoma em face da realidade, já que é nesta que a norma buscará ser concretizada, tornando-se vigente. Isso ocorre de maneira interdependente, pois o legislador precisa atentar para as condições naturais, técnicas, econômicas e culturais que estão presentes na sociedade onde pretende-se que a regulação tenha efetividade. De tal forma, a Constituição, além de um caráter ontológico, também dispõe de características deontológicas, podendo assim ser tida como determinada determinante.
A despeito do condicionamento mútuo, a Constituição jurídica tem significado próprio, já que sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo no embate das forças que representam a realidade. Quando tal eficácia é realizada, a Constituição adquire força normativa. Contudo, existem limites quanto à constatação empírica dessa eficácia. Esta só poderá ser efetuada quando a Constituição, moldada pelos parâmetros da razão, encontrar-se vinculada a uma determinada situação histórica e suas condicionantes, não podendo ser impostas ao povo de um modo estranho e autoritário. Dessa forma, a Constituição não deve almejar a construção de um Estado abstrato e teórico, mas conectado com as leis culturais, políticas e econômicas assentidas na natureza singular do presente. Entretanto, a força normativa da Constituição não deve basear-se meramente na adaptação apropriada à realidade, mas a própria Constituição jurídica deve converter-se em uma força ativa, que oriente condutas conforme a ordem nela estabelecida. Essa força ativa far-se-á presente quando, além da vontade de poder, estiver incutida na consciência geral a vontade de Constituição, fundamentada na necessidade de uma ordem legal que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido, na compreensão de que essa ordem é legitimada por algo mais do que apenas fatos e na consciência de que tal ordem não será eficaz sem o auxílio da vontade humana.
Além das características supracitadas, também advêm os pressuposto de um desenvolvimento pleno da força normativa da Constituição dos elementos seguintes. Quanto ao conteúdo, este deve corresponder o máximo possível à natureza singular do presente, tornando-se ainda indispensável as condições de adaptação para um novo presente. No mais, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, incorporando – mediante ponderação – até mesmo estruturas que contrariem os princípios fundamentais. Em segundo lugar, o desenvolvimento da força normativa da Constituição depende igualmente de sua práxis. A vontade de Constituição deve sobrepôr-se aos interesses momentâneos, já que estes, quando contrariarem a Constituição jurídica, podem corroer aos poucos o Estado democrático. Outro elemento nocivo à força normativa é a freqüente revisão constitucional sob a alegação de necessidades políticas, o que abala a confiança na inquebrantabilidade da Constituição. Por fim, a interpretação surge como substancial para consolidar a força normativa, pois é por de uma hermenêutica adequada que se consegue concretizar o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.
Assim, a Constituição jurídica não significa um simples pedaço de papel, como disse Lassalle. Embora não esteja desvinculada da realidade histórica na qual se insere, a Constituição não é, simplesmente, condicionada por essa realidade. Em um eventual conflito, a Constituição jurídica não é necessariamente a parte mais frágil, pois ela possui pressupostos realizáveis que permitem assegurar sua força normativa. Apenas quando eles não puderem ser satisfeitos é que a Constituição real prevalecerá, convertendo questões jurídicas em questões de poder. Contudo, isso não nega o significado da Constituição jurídica, mantendo-se o Direito Constitucional em ressonância com a natureza da Constituição e devendo zelar pelo despertar e pela preservação da vontade de Constituição.
Embora haja ocorrido relevantes avanços no que condiz à satisfação dos pressupostos que garantem a força normativa da Constituição, vários requisitos ainda não foram totalmente satisfeitos. Nos dias atuais, nem sempre predomina a tendência de sacrificar interesses particulares com vistas à preservação de um postulado constitucional, bem como duvida-se acerca da efetividade das normas jurídicas em face de uma determinada realidade dominada por correntes e tendências contraditórias. Por fim, é válido lembrar que a tarefa de preservar a força normativa da Constituição, assim como seu pressuposto, a vontade de Constituição, foi confiada a todos nós.
* Colunista do Portal Jurídico Investidura
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.