A Proteção Constitucional e Infraconstitucional do Patrimônio Cultural
Hernane Elesbão Wiese*
MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPELLI, Sílvia. Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, 4ª ed. P. 93-115.
Capítulo V – A Proteção Constitucional e Infraconstitucional do Patrimônio Cultural
1 a proteção constitucional
“O art. 216 da Constituição Federal de 1988 conferiu ao patrimônio cultural o tratamento que lhe era devido, assegurando proteção legal abrangente de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira […]”[1].
“Consagrou o constituinte a expressão patrimônio cultural como sendo aquela que se contrapõe ao patrimônio natural: este último, formado ao largo de qualquer interferência humana; o primeiro, obra da intervenção humana”[2].
2 As competências em matéria de proteção ao patrimônio cultural
“A Constituição Federal é expressa ao estabelecer a competência concorrente da União, Estados-membros e Distrito Federal legislarem sobre o patrimônio cultural e sobre a responsabilidade por danos causados a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”[3].
“Quanto aos municípios, conquanto não figurem no rol dos habilitados a exercerem essa competência legislativa pelo art. 24 da CF, também eles ostentam competência para a edição de leis que visem a organizar e a tutelar o seu patrimônio cultural”[4].
“[…] a eles [os municípios] cabe legislar suplementarmente à legislação federal e estadual no que couber (art. 30, inc, II), além de ostentarem competência para promover a fiscalização do patrimônio histórico-cultural local”[5].
“No tocante à competência material (exercício do poder de polícia e execução de ações relativas à prevenção, valorização e recuperação do patrimônio cultural), a Constituição de 1988 inova em relação à anterior quando define como concorrente, de modo expresso, a competência entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios (art. 23, incs. III, IV, V e VI, e 30, inc. IX)”[6].
“A forma pela qual cada um dos entes irá atuar não logrou ser explicitada no Texto magno, nem mesmo em lei complementar […]”[7].
“No pertinente ao zelo pelo meio ambiente cultural, parte da doutrina recomenda como divisor de águas o denominados critério de avaliação estimativa, tendo por referencial a expressão cultural do bem em relação a sua abrangência nacional, regional, estadual ou municipal”[8].
“Em que pese a prioridade para a atuação recair sobre o ente federativo com expressão simétrica ao valor estimativo do bem, em momento algum o texto Constitucional afastou o dever de agir dos demais. Dessa posição compartilham [Filippe Augusto Vieira de] Andrade, [Lúcia] Reisewitz e Souza Filho”[9].
“[…] a idéia de cooperação entre os entes é definida por [José Eduardo Ramos] Rodrigues, para quem a idéia de limitar o poder de tombar, por exemplo, ao grau de interesse seria totalmente desarrozada, já que nem a Constituição, nem a lei ordinária criou esse tipo de limitação, expressando, na escrita do art. 216, § 1º, que o patrimônio cultural brasileiro é uno, e não apenas federal, estadual ou municipal”[10].
“[…] importa salientar não ser o tombamento a única forma de reconhecimento da importância cultural de um bem. A própria Constituição Federal, no já citado art. 216, § primeiro, elenca também o inventário, os registros, a vigilância e a desapropriação, dentre outras, como formas de proteção”[11].
3 Instrumentos de proteção ao patrimônio cultural
3.1 Tombamento
“Conquanto, no plano jurídico, seja consagrada a distinção, no jargão popular costuma-se confundir tombamento e preservação como se sinônimos fossem”[12].
“Na verdade, o tombamento é um dos institutos com assento constitucional destinados a assegurar a preservação de um bem de valor cultural ou natural”[13].
“Por intermédio dele, o Poder Público exerce a efetiva tutela do patrimônio ambiental (cultural e natural), protegendo os documentos, obras e locais de valor histórico, paisagístico, estético e arqueológico”[14].
Uma noção do tombamento vem da Secretaria Estadual da Cultura do Governo de São Paulo: “O Tombamento significa um conjunto de ações realizadas pelo poder público com o objetivo de preservar, através da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados”[15].
“[…] homologado o tombamento, passa o bem à condição de imune contra atos do proprietário ou de terceiros que o possam mutilar, alterar ou destruir. É meramente declaratório de um valor cultural que o bem já possuía, porquanto se não o tivesse, não caberia o tombamento. O valor cultural do bem preexiste ao tombamento, daí por que pode e deve ser reconhecido pelo Judiciário, incidentalmente, em demandas que venham a buscar a preservação do patrimônio cultural”[16].
“Quanto à eficácia, o tombamento pode ser provisório ou definitivo (art. 10 do Decreto-Lei n. 25/37), conforme esteja o processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do Tombo.
Quanto aos destinatários, pode ser geral ou individual, conforme atinja um conjunto de bens, um bairro, uma cidade ou, na segunda hipótese, atinja um bem em particular.
No que se refere à proteção ao entorno do bem tombado, o art. 18 do Decreto-lei 25/37 assegura proteção à sua visibilidade. […]
Embora a legislação imponha ao proprietário arcar com os custos com a manutenção do imóvel tombado, há precedentes jurisprudenciais entendendo que, como o tombamento tem a natureza jurídica de servidão administrativa, o encargo de preservação e conservação pode também recair sobre o ente público […]”[17].
“Quanto à forma de constituição, o tombamento pode ser administrativo ou derivado de lei”[18].
3.2 O inventário dos bens de valor histórico-cultural
“[…] pode ser singelamente definido como um cadastro de bens de valor sócio-cultural, bens esses que podem ser de domínio público ou particular”[19].
Poucos Estados e Municípios brasileiros possuem essa relação. Na órbita federal, o inventário carece de lei reguladora.
3.3 A desapropriação
“A desapropriação está prevista nos arts. 5º, incs. XXII, XXIII e XXIV, e 182, § 3º, ambos da CF e detalhada no Decreto-lei n. 3.365/41 e na Lei n. 4.132/62”[20].
“Enquanto modo de aquisição de propriedade por parte de ente estatal, deve ser reservado a hipóteses bem identificadas nas quais se faça necessário ao Poder Público retirar o bem das mãos do particular para ajustá-lo aos seus planos de preservação do patrimônio”[21].
3.4 Zoneamento e Plano Diretor
“O plano direto, ao estabelecer o zoneamento urbano, poderá definir áreas especiais de preservação do patrimônio cultural, nas quais devem vigorar normas diferenciadas para padrões construtivos e outros fatores de limitação ao exercício do direito de propriedade”[22].
“Também é possível que conste do próprio Plano Diretor o rol de bens tombados por quaisquer das esferas de poder […], com a delimitação dos respectivos entornos”[23].
3.5 Transferência do Direito de Construir
“O Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/01) prevê, em seu art. 35, a possibilidade de Lei Municipal, baseada no Plano Diretor, autorizar o proprietário de imóvel urbano, publico ou privado, exercer em outro local ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para preservação, dado o seu valor histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural”[24].
3.6 Direito de Preempção
“Trata-se de direito também previsto no Estatuto da Cidade (art. 25 e segs.), segundo o qual o Poder Público detém preferência na aquisição de imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares”[25].
“De acordo com o art. 26 da Lei 10.257/01, esse direito poderá ser exercido para proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico”[26].
“É importante não confundir esse instrumento com o direito de preferência previsto para os imóveis tombados, a que faz referência o art. 22 do DL 25/37”[27].
4 Proteção ao patrimônio cultural imaterial
“A Constituição de 1988 ampliou a noção do patrimônio cultural brasileiro, abarcando, além do material, também o imaterial […]. […] merece destaque a lição de Massimo Severo Gianini, citado por Paulo Affonso Leme Machado: ‘O bem cultural, segundo a concepção de Gianini, ‘atinge a coisa como testemunho material da civilização, sobrepondo-se ao bem patrimonial que impregna a mesma coisa, não influindo o regime de propriedade (direito privado ou público) sobre os traços essenciais do bem cultural como objeto autônomo de tutela jurídica’.’”[28].
“A vigente Constituição, na dicção do art. 216, assegura proteção a todos os bens dotados de valor cultural, comprometendo-se com o princípio da solidariedade intergeracional que norteia a proteção do meio ambiente”[29].
5 Proteção ao Patrimônio cultural e função social da propriedade
“A questão da preservação dos bens culturais entrelaça-se com o estudo do direito de propriedade. É inegável a correlação entre a tutela do patrimônio cultural e o direito de propriedade […]”[30].
“A Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XXII, garante o direito de propriedade, assegurando, no inc. XXIII, sua função social. Portanto, o direito atribuído ao proprietário de usar, gozar e dispor do bem está internamente limitado pelo princípio constitucional da função social da propriedade, de molde a não poder pensar em tal direito sem restrição existente em prol da coletividade”[31].
“[…] o legislador federal houve por bem inserir na recente lei que define crimes ambientais diversas condutas lesivas ao patrimônio cultural”[32].
“A noção atual do direito de propriedade tem sempre um conteúdo social, enfeixando obrigações negativas e positivas. O detentor do direito, além de exercê-lo de molde a não prejudicar direito de outrem, há de usufruí-lo em benefício da coletividade”[33].
“É por essa razão que se entende não ser indenizável o tombamento de um bem de valor cultural. O ato de tombamento não afeta o núcleo do direito de propriedade, preservando o direito de alienação e mantendo os direitos de uso e gozo sobre a res […]. […] o proprietário pode continuar tirando proveito econômico da coisa, sendo-lhe acrescido o ônus de preservá-la. Devido a esse encargo, defende-se benefícios fiscais aos proprietários”[34].
* Acadêmico de Direito na UFSC e Colunista do Portal Jurídico Investidura.
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[1] P. 93.
[2] P. 94.
[3] P. 94.
[4] P. 95.
[5] P. 95.
[6] P. 96.
[7] P. 96.
[8] P. 96-7.
[9] P. 97.
[10] P. 98.
[11] P. 100-1.
[12] P. 101.
[13] P. 101.
[14] P. 102.
[15] P. 102.
[16] P. 102.
[17] P. 106.
[18] P. 107.
[19] P. 107.
[20] P. 109.
[21] P. 109.
[22] P. 109.
[23] P. 109.
[24] P. 109.
[25] P. 110.
[26] P. 110.
[27] P. 110.
[28] P. 110-1.
[29] P. 111.
[30] P. 112-3.
[31] P. 113.
[32] P. 115.
[33] P. 115.
[34] P. 115.