Filosofia do Direito

Resenha – O Que é Justiça – Aguiar

 

Filipi A. B. Siviero*

 

  

AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. O que é justiça: uma abordagem dialética. 2. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1987

 

 

 

 É necessário desnudar o direito. Nesse sentido é que se insere a dupla dimensão de uma concepção de justiça, fundamentalmente no que respeita aos pressupostos de uma percepção do que é justo, à medida que se concebe uma justiça formal e uma justiça material. Aguiar (1984, p. 59-60) leciona as características das duas justiças ao afirmar que a justiça conservadora tem como função não somente justificar a opressão mas segurar as transformações sociais, paralisar a história, enquanto a justiça transformadora somente poderá ser fruto de um saber crítico, de um saber histórico que expresse as contradições.

 

O que é justiça? A resposta depende do ponto de referência. A principal diferença na concepção da justiça vem da relação opressores x oprimidos. A justiça atual é justa ao ver das minorias – dos opressores –, enquanto para a maioria – os oprimidos – ela não passa de uma ferramenta para torná-los mais pobres e mais fracos.

 

Pode-se identificar já que o livro se baseia nas idéias de Karl Marx, ou seja, na disputa entre classes. Sabe-se que a justiça do capitalismo não existe, pois ela é feita para defender os interesses dos que estão no poder. A justiça é uma ferramenta estatal, sem dúvida os que comandam o Estado são os que determinam o que é e o que deixa de ser justo, tanto pela elaboração de leis, tanto pelo julgamento do caso concreto. Pela visão marxista a justiça é uma arma do Estado burguês para excluir e tornar os proletários esmagados e sem força de reação.

 

Os aparelhos da Justiça servem para a legitimação do poder. Quem está no poder não consegue só pela força bruta manter-se. Busca-se uma “legitimação”. Precisa-se agir sobre a proteção de uma instituição, de um órgão, ou de uma filosofia. A justiça serve para isso, quando alguém tem o poder da justiça, utilizam-na para oprimir os perdedores, através da parábola da segurança, tal como contada por Hobbes.

 

São feitas importantes considerações históricas, sobre a evolução da discussão e do saber a respeito do que é a justiça. Na Grécia antiga, desde Homero o justiça é considerada uma tríade. Deus determina o que é justo, o poder (o Estado) traduz o desejo divino e às pessoas cabe obedecer, já que o poder apenas traduz aquilo que Deus determina. A justiça é algo extra-humano, fora do alcance dos Homens, não cabe a ninguém discutir ou ir contra a determinação dos deuses, aos “meros mortais” cabe apenas obedecê-la e aplicá-la. Neste período histórico nascem grandes pensadores, como Platão e Aristóteles. Este último ditou:  “tratar desigualmente os desiguais”. Outra frase muito utilizada é a que diz que justiça é dar a cada um o que é seu. Tais frases são comumente transcritas em decisões judiciais e nas doutrinas de direito. Logo, são chavões utilizados para impor o desejo dos opressores sobre os oprimidos. O que é de cada um? O que pertence a cada um?

Enfim, a dialética na aplicação da justiça não passa de mera ferramenta de aplicação de determinações estatais para manter a diferença de classes. Disso não se resta dúvida, a justiça na prática não existe, como já dito, o que existe é o direito estatal.

 

Existem duas importantes formas de justiça: a atual, impregnada no sistema capitalista, e uma transformadora que busca a justiça para os oprimidos. A justiça hoje em prática é uma forma de manter a opressão da maioria, é impossível dentro dessa justiça criar uma sociedade realmente justa.

 

O correto é que passemos a aplicar uma justiça comprometida com a transformação, com a melhoria das condições de vida da maioria, que coloque o direito destes acima dos da minoria. Essa, segundo o escritor, é a única forma de Justiça. Por isso cabe aos aplicadores do direito tomar a posição, ou de aplicarem a justiça conservadora da atual situação, ou buscar mudar essa situação. Assim, criou-se no Brasil o chamado Direito Alternativo, juristas que aplicam o direito vendo primeiro a desigualdade e depois a lei, aplicando as leis em favor da maioria, este é o direito que deve ser o verdadeiro aplicador da justiça.

 

Só pode ser considerado justo aquilo que vá de encontro com a maioria. Tudo que possa prejudicar os oprimidos não é justiça. Cabe então aos operadores da justiça que passem a agir desta forma, sendo vinculados ao lado da justiça transformadora, da justiça real, pois a justiça aplicada hoje na maioria não passa de uma ferramenta burguesa para impor seus interesses na sociedade.

 

Porém, nem todos os que trabalham no Judiciário são capazes de mudar a visão do que é justo. Grande parte do controle é não-formal, ou seja, aquele que responde pelo cargo ou função formalmente não que realmente manda, já que seu cargo é condicionado a lei e aos superiores, assim ele é apenas um reprodutor das determinações superiores, nada podendo fazer.  Não passa de um operador da maquinário estatal.

 

Até esse momento, o autor fez uma crítica ao sistema de justiça burguesa.

 

De que forma se alcança a verdadeira justiça? Para a concretização da justiça deve haver uma revolução social, o poder deve ser tomado pelo povo. Esta tomada do poder não pode ser demagoga, deve ser real. Impedindo a minoria derrotada que assuma funções importantes. O que é essa minoria? São os verdadeiros burgueses, aqueles que detêm o maior poder aquisitivo, mas que não passam de uma pequena parcela da população. Que mandam e desmandam no país. Que sujeitam a grande massa a viver para trabalhar.

 

A crítica é válida, a defesa do direito alternativo também demonstra a importância dos tribunais em mudar suas concepções. Importante agora é observar o que o se pretende para o novo sistema que deve emergir.

 

É importante a troca do poder para que haja a transformação da justiça. Um governo comprometido com a minoria jamais mudaria a justiça. O poder deve estar na mão da maioria, para que essa reestruture a justiça e coloque o direito das maiorias na pauta. Para isso não é necessário “exterminar” a minoria, basta não alocá-los em funções essenciais do Estado, para evitar que tentem mudar a justiça. Mas o governo novo jamais pode ser simplesmente demagogo, um poder que se diz do povo e na realidade é uma ditadura da minoria disfarçada em nada mudará na justiça. Este novo poder deve ser comprometido com a reestruturação total do Estado, criar políticas que proporcionem a justiça transformadora, com decisões coerentes aos interesses da maioria.

 

Outro ponto relevante é a economia. Em um novo Estado da maioria muitas mudanças devem ser feitas nesse setor. A posse da terra deve ser muito mais importante que a propriedade, aquele que produz e vive da terra deve ser priorizado em relação ao que somente possui um papel dizendo que a terra é sua. Em épocas como essa de luta eleitoreira, são feitas referências a reforma agrária, mas ninguém fala que o nosso país ainda é comandado pelas elites aristocráticas do século XVIII. Um país que só depende de sua produção primária para alavancar sua balança comercial tem algo de errado.

 

Temos que mudar a concepção do homem para com o homem. O ser humano é um produto, só tem valor enquanto dá lucro, enquanto gera resultado. O corpo é um produto de venda nas mãos das empresas. O corpo perfeito é estigmatizado como a forma de felicidade infinita, o capitalismo faz com que só sejamos felizes se vestimos tal roupa, se usamos tal tênis, se andamos em tal carro. Assim o próprio capitalismo cria os ditos “criminosos”, que sem ter dinheiro, que sendo colocados a margem, não conseguem comprar e por isso se acham infelizes, assim roubam para alcançarem a felicidade.

 

A liberdade não é só o direito de ir e vir, na realidade deve-se buscar na nova justiça a liberdade como independência. Como forma de não depender de outros para viver e não ser oprimido. Quem é explorado economicamente e socialmente jamais pode ser livre, somente o explorador é livre nestas situações.  A busca da liberdade de fato e não da formal.

 

Outra mudança fundamental é na educação. Esta é alienadora, transforma as crianças em adultos sem discussão, impregnados em um sistema dito pronto e sem mudanças. Uma nova educação baseada na independência de cada um, no desejo e nas possibilidades de cada criança, não tratando todas como algo igual, mas sim com diferenças importantes e que devem ser respeitadas.

 

Por fim, o direito deve ser mudado. Como são os legisladores os criadores do direito, estes nunca legislam contra si mesmos, pois representam a minoria que nunca sai prejudicada. A mudança no poder deve tirar essa minoria da função de criar direito para que a maioria possa enfim determinar as novas regras. Se a mudança no poder for apenas demagoga de nada adiantará, pois os legisladores continuarão a criar um direito ligado a seus interesses. Entretanto, mesmo dentro deste direito corrompido da minoria o juiz pode tomar decisões que contrariem os legisladores, usando de pressupostos maiores e verdadeiramente justos. Trata-se do direito alternativo.

 

Enfim, a tomada do poder pelo povo deve colocar seus interesses dentro do direito estatal, fazendo com que assim sejam realmente justas as decisões dos tribunais que aplicam a legislação.

 

A justiça é um processo que para mudar precisa de uma reforma completa na sociedade.

 

Mudar todo o sistema de aplicação do direito para que ele seja justo parece ser impossível, nenhum sistema será justo para todos. Defender um direito mais igual e uniforme, que não pese mais para determinada pessoa, classe, raça, povo é uma possibilidade real.

 

O autor demonstra pontos de conflito que explicam grande parte das desigualdades hoje existentes, mas buscar uma justiça transformadora que simplesmente imprima a vontade de uma maioria não parece ser a expressão do justo, mas sim de uma briga de classes que nunca terá fim, já que a maioria de hoje pode ser minoria amanhã e vice-versa, quem oprime pode se tornar opressor. Assim o direito passaria a ser uma forma de dominação mais forte do que já é atualmente, não servindo pra as relações da humanidade.

 

A questão opressores x oprimidos não é capaz de explicar tudo, e a justiça como idéia filosófica não é algo explicável simplesmente pela dialética. A uma grande diferença entre a Justiça teórica e a justiça prática. Os tribunais usam de uma dita justiça prática para funcionar, esta é apenas formal, os tribunais na verdade utilizam o Direito posto, por isso deveriam se chamar tribunais de direito e não de justiça. Nestas cortes a justiça como virtude, como idéia não existe. O que existe é a utilização de métodos burocráticos e técnicos que, embasados na materialidade da lei que irão determinar alguma pena ou decisão vinculada ao desejo do Estado de manter a sociedade sob o prisma legal dos legisladores.

 

É pouco provável que haja uma definição universal de justiça que agrade a todos, por isso a sentença vinda dos tribunais de “justiça” nada tem de justo e sim de direito, porque é nele, no direito escrito ou não, que se baseiam os juízes e os tribunais em suas decisões. Assim a justiça pode ocorrer para um e não para outro, mas para o Estado e para os tribunais o direito está posto e esse é o seu real objetivo.

 

 

* Acadêmico de Direito da UFSC 

  

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Como citar e referenciar este artigo:
SIVIERO, Filipi. Resenha – O Que é Justiça – Aguiar. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resenhas/filosofiadoreito/o-que-e-justica/ Acesso em: 08 out. 2024
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