Introdução
Trata-se de uma obra clássica do direito brasileiro, onde o autor Alvino Lima traça, de forma brilhante, uma linha de raciocínio acerca do instituto da responsabilidade extracontratual, passando por exemplos internacionais, com ordenamentos e juristas estrangeiros, e finalizando com a realidade brasileira.
O autor inicia a apresentação afirmando que o conceito e o fundamento da responsabilidade civil extracontratual vêm evoluindo na área acadêmica e também na área da positivação do direito, arriscando dizer que não há, atualmente, conteúdo mais complexo e mais vivo do que o estudo da responsabilidade aquiliana (fl. 15).
Justifica essa assertiva dizendo que “os perigos advindos dos novos inventos, fontes inexauríveis de uma multiplicidade alarmante de acidentes, agravados pela crescente impossibilidade, tanta vez, de se provar a causa do sinistro e a culpa do autor do ato ilícito, forçaram as portas, consideradas até então, sagradas e inexpugnáveis da teoria da culpa, no sentido de se materializar a responsabilidade, numa demonstração eloquente e real de que o Direito é, antes de tudo, uma ciência nascida da vida e feita para disciplinar a própria vida” (fl. 16).
Diante do exposto, sugere-se que seja mantido em mente, ao longo de toda a leitura da obra ou desse fichamento, a constatação exposta acima, feita pelo brilhantíssimo autor Alvino Lima. Isso porque facilitará a compreensão dos passos tomados pela responsabilidade civil extracontratual até os dias atuais.
Pois bem. Em seguida, o autor passa a dar um destaque de importância para o Direito Romano, em especial no que se refere à responsabilidade civil, pois teve o seu ponto de partida na vingança privada. A prática da vingança privada, contudo, evoluiu-se para o domínio jurídico, como uma “reação legalizada e regulada”. Após, passou-se à composição voluntária, uma espécie de conciliação dos dias atuais, até que, finalmente, instituiu-se a lei Aquília, que empresta seu nome à responsabilidade civil extracontratual até os dias atuais (fls. 19-21).
O autor reconhece que a discussão, sobre o fato da lei Aquília ter introduzido ou não a culpa como requisito essencial ao direito de reparação do dano causado, tem apenas interesse teórico. Entretanto, afirma que é incontestável que a “evolução do instituto da responsabilidade extracontratual ou aquiliana se operou, no direito romano, no sentido de se introduzir o elemento subjetivo da culpa, contra o objetivismo do direito primitivo, expurgando-se do direito a ideia de pena, para substituí-la pela de reparação do dano sofrido”. Termina o tópico afirmando que o princípio da responsabilidade aquiliana continua, em sua essência, nas codificações dos povos modernos, ainda que com as suas notáveis e profundas modificações (fls. 22-29).
Na sequência, o autor apresenta as legislações estrangeiras, comparando-as, especialmente as de civil e common law, onde, nesta última, a culpa constitui elemento essencial da responsabilidade, mesmo havendo algumas exceções (fl. 30-31). Por outro lado, nas sociedades de common law, tem-se em algumas situações o entendimento de que o dano não é elemento essencial para a reparação, existindo uma espécie de ressarcimento independente do dano, tendo em vista apenas o direito violado pelo ato ilícito (fl. 32).
I. Da responsabilidade extracontratual sob o fundamento da culpa
O autor inicia o primeiro capítulo da obra afirmando que a culpa continua a ser, em princípio, “o fundamento básico da responsabilidade aquiliana”, possuindo, como requisitos essenciais, a existência de ato ou omissão violadora do direito de outrem, o dano produzido por esse ato ou omissão, a relação de causalidade entre eles e a culpa (fls. 43-44).
Passa-se, então, a conceituar a culpa, citando diversas teorias de autores do mundo inteiro.
Nesse passo, Leclercq qualifica “a simples lesão do direito de outrem como ato culposo, como fato ilícito, só permitindo, como escusa da responsabilidade, o caso fortuito ou a força maior”, afastando a ideia de presunção de culpa, que é vista como a própria violação do direito de outrem (fl. 51).
Observa-se, portanto, que as inúmeras definições de culpa se baseiam, em síntese, na reunião de dois elementos: o objetivo, que seria a simples lesão do direito de outrem, e o subjetivo, que consiste num elemento psicológico, questionando se o autor do ato poderia ter previsto o atentado ao direito de outrem (fl. 52).
Contudo, diante a extrema dificuldade, para não dizer impossibilidade, de possuir uma previsão específica em lei para cada ato humano, regulando-o, recorreu-se para a preceituação genérica das condutas (fl. 55).[1]
Assim, surge-se a responsabilidade extracontratual, num contexto em que a lesão a direito de outrem, causando-lhe um dano, caracteriza um ato ou omissão lesivo além dos limites da conduta normal do homem diligente (fl. 56). Surge-se, em decorrência disso, a discussão sobre se a conduta do agente do ato lesivo deve ser analisada em cada caso concreto ou por meio de uma visão de como a conduta normal dos indivíduos em geral nas mesmas circunstâncias (fl. 57). Verificou-se, adiante, que o elemento culpa dependerá da análise da “conduta normal do homem adaptado à vida social, ao ambiente em que vive” (fl. 60).
Em seguida, o autor da obra discorre sobre a teoria da culpa objetiva, que figura como uma teoria central, diferentemente da apreciação da culpa in concreto, mas compara a conduta do agente do ato danoso com o bonus pater famílias, conforme mencionado acima (fl. 62), através da fixação da imputabilidade moral (fl. 65).
O autor continua, definindo a culpa como sendo um “erro de conduta, moralmente imputável ao agente e que não seria cometido por uma pessoa avisa, em iguais circunstâncias de fato” (fl. 69) e afirmando que a sua presunção absoluta seria “a consagração da teoria da responsabilidade objetiva, da responsabilidade sem culpa” (fl. 75). Dizer o contrário equivale-se a travestir com um nome o que realmente ocorre.
Nas páginas posteriores, apresentou-se a aplicação da teoria da culpa em diversas hipóteses reais em que os problemas surgem nas condutas humanas.
Por exemplo, na guarda das coisas, a teoria da culpa criou, na França, o princípio da responsabilidade do fato da coisa, paralelo ao princípio da responsabilidade do fato pessoal baseado na culpa clássica (fl. 84). Já na teoria da culpa anterior, também conhecida como preexistente, o autor afirma que “procurar esta culpabilidade em causas anteriores é derrogar os princípios da teoria clássica”, em razão de que o fato culposo anterior não possui nexo causal com o dano posterior (fl 89).
Continua discorrendo sobre a teoria da culpa desconhecida, que, segundo Alibert, estaria declarado a teoria do risco criado (fl. 90). Na teoria da culpa na responsabilidade entre vizinhos, considerado por muitos a maior fonte de casos de perturbação de direito alheio (fl. 90), o autor afirma que há uma espécie de culpa especial (immissio), geradora de uma responsabilidade excepcional, que “surge a despeito da observância escrupulosa das leis e dos regulamentos e das precauções tomadas para evitar o dano” (fl. 98).
Por fim, antes de mencionar a existência de culpa da pessoa jurídica, o autor apresenta a teoria da culpa coletiva, onde a violação de direito de outrem seria verificada “em virtude da prática de atos simultâneos, por duas ou mais pessoas, sem que se possa determinar qual foi o autor do fato causador do dano” (fls. 98-99). Essa culpa, portanto, seria resultado exclusivamente do ambiente criado por todos os componentes do grupo, que dificulta a possibilidade da vítima de individualizar as condutas danosas (fl. 102).
II. Da responsabilidade extracontratual sem culpa
Em sentido oposto ao capítulo anterior, e seguindo a lógica dos casos expostos no seu fim, o autor agora apresenta a existência da responsabilidade extracontratual sem culpa, afastando-se do elemento moral do agente.
Afirma que “rebuscar um novo fundamento à responsabilidade extracontratual, que melhor resolvesse o grave problema da reparação dos danos” era algo imprescindível para assegurar a justiça da vítima (fl. 114).
Através da verificação de que são crescentes os diversos fatores de ordem material e social, em especial “o desequilíbrio flagrante entre os “criadores de risco” poderosos e as suas vítimas”, fundamentou-se a responsabilidade extracontratual tão somente no nexo causal entre o dano e o fato gerador, na lei econômica da “causalidade entre o proveito e o risco” (fl. 116).
Justifica tal fundamento na ideia de que, “partindo da necessidade da segurança da vítima, que sofreu o dano, sem para ele concorrer”, os autores dos danos, que colhem todos os proventos gerados, devem carregar, em contrapartida, todos os ônus da atividade danosa (fl. 119). Relembra-se a teoria da culpa na guarda, que cria uma verdadeira presunção juris et de jure da culpa, proclamando, portanto, a teoria do risco (fl. 125), pois a responsabilidade se reduz, basicamente, pelo fato da coisa (fl. 130).
Na sequência, o autor tece alguns comentários acerca da responsabilidade extracontratual sem culpa nas hipóteses de ruína de edifício (fl. 131), dos patrões e comitentes pelo fato de seus prepostos, também conhecido como fato de outrem, onde verifica-se a doutrina clássica, já abandonada, da culpa in vigilando, culpa in elegendo e culpa in instruindo, a teoria da representação e a teoria denominada “comitente-caução”. Por fim, o autor discorre acerca da teoria do risco, onde o comitente assume os riscos gerados pela atividade do preposto, diante da ideia de dar “à vítima uma garantia da responsabilidade do preposto, quase sempre insolvável” (fls. 138-140).
Afirma, em seguida, que a teoria do risco (teoria objetiva) se apresenta, da mesma forma, nos fatos ensejadores da responsabilidade do proprietário ou guarda dos animais, onde a responsabilidade decorreria do fato provado, tendo somente o caso fortuito ou força maior capacidade para elidir a responsabilidade do proprietário ou guarda do animal (fl. 146). Já na hipótese de responsabilidade dos alienados e a sua defesa, o autor afirma que é, “sem dúvida, a mais significativa realização da teoria objetiva no direito comum, derrogando, sem rebuços e sem subterfúgios, o princípio da teoria clássica da culpa” (fls. 153-154).
Na questão da responsabilidade decorrente das relações de vizinhança, os defensores da teoria do risco, como Josserand, Cozzi, entre outros, “sustentam que a responsabilidade entre vizinhos decorre do risco criado na exploração da propriedade, a fim de colher nesta exploração um determinado proveito” (fl. 170-171), sendo, contudo, a teoria da immissio a mais predominante atualmente na doutrina e nas legislações (fl. 174). Essa teoria, “sob o critério da anormalidade ou da intolerância”, consagra a teoria da responsabilidade sem culpa, pois não basta que o agente causador do dano tenha tomado todas as precauções e cuidados, mas que o ato atenda ao local, à situação e à natureza da propriedade em questão (fl. 177).
Por fim, apresenta-se a responsabilidade quando o agente causador do dano se encontra no estado de necessidade, hipótese em que a responsabilidade sem culpa afasta do debate a responsabilidade subjetiva, pois “não se indaga qual tenha sido a conduta do autor do ato de necessidade”, ele deve reparar o dano causado ao terceiro (fl. 189).
A parte mais importante do capítulo, no entanto, encontra-se ao final, onde o autor apresenta as críticas a defesas da teoria do risco.
Em síntese, a teoria do risco se depara com críticas que afirmam que a mesma se trata de uma influência positivista, que se apoia na ideia de socialização do direito, que estagna a atividade individual, paralisando as iniciativas e arrastando o homem à inércia, que aplica as primitivas concepções materiais e, por último, que não tem posição verdadeira e definida no terreno jurídico (fls. 190-191).
Por sua vez, o autor apresenta os argumentos contrários a cada crítica da teoria do risco, afirmando que, ao contrário das alegações de que se trata de uma teoria materialista, possui raízes profundas nos mais elevados princípios de justiça e de equidade (fl. 195), que as relações humanas modernas demandam a responsabilidade fundada sobre a lei econômica da conexidade entre o proveito e o risco, que o próprio conceito de risco é impreciso, incerto e vago, pois pretende abranger a maior quantidade de casos possível, e isso não é algo incorreto (fls. 194-199) e que se encontra em várias legislações civis modernas (fl.202).
III. Do abuso do direito e a responsabilidade extracontratual
Nesse terceiro capítulo, o autor apresenta a existência do instituto do abuso do direito e a consequente responsabilidade extracontratual e conceitua, citando Chironi e Abello, que aquele, “que age obedecendo apenas aos limites objetivos da lei, mas que no exercício do direito que lhe confere o preceito legal, viola os princípios da finalidade econômica ou social da instituição, da sua destinação, produzindo o desequilíbrio entre os interesses individual e o da coletividade, abusa de seu direito” (fl. 205).
Ou seja, para que um ato possua total guarida no ordenamento jurídico imposto pela sociedade, ele deve respeitar tanto os preceitos objetivos, que são aqueles prefixados na legislação, como os preceitos sociais extralegais (fl. 205), que devem levar em consideração os princípios da equidade, da boa-fé e do bem da coletividade (fl. 217).
Rapidamente, o autor afirma que, tanto na responsabilidade extracontratual como na contratual, “o abuso de direito é de natureza delitual ou quase-delitual” (fl. 213), bem como que a ação ou omissão abusiva “é apenas a violação da finalidade do direito, de seu espírito, sem que o agente transgrida aqueles limites objetivos” (fl. 215), na ideia de que nenhum direito é absoluto (fl. 217).
Resumindo, os critérios para a fixação do abuso do direito passam por duas fases, o subjetivo e o objetivo, que, segundo o autor da obra, devem constar em toda análise de todo caso concreto. No primeiro, admite-se somente “a existência do exercício abusivo do direito com intenção de lesar o direito de outrem e sem utilidade apreciável para o agente”. Por sua vez, no critério objetivo, existe a corrente de exercício anormal do direito, que contraria a sua finalidade social e econômica, bem como o entendimento de que a ausência de interesse legítimo ou a ruptura do equilíbrio dos interesses das partes envolvidas (fls. 226-227).
Da mesma forma que a teoria do risco, a ideia do instituto do abuso de direito também sofreu uma série de críticas. Por exemplo, há quem diga que as normas jurídicas possuem limites objetivos, em que o direito acaba onde começa o abuso, ou aqueles que admitem a existência do instituto, mas como caso de responsabilidade civil, não se tratando de uma categoria de ato ilícito, ou, ainda, aqueles que negam a existência de direitos subjetivos (fl. 228).
Especificamente, as críticas se resumem a alegar que a expressão “abuso de direito” encerra uma logomaquia, que depende do arbítrio do juiz, tornando inseguro todo e qualquer direito, que os critérios adotados para a fixação do abuso do direito são amplamente vagos, que limita o exercício do direito e que não existem direitos subjetivos (fls. 231-232).
Contudo, tais críticas são improcedentes, diante da ideia de que os limites objetivos, já conceituados acima, estão lado a lado com outros limites necessários ao exercício normal do direito, a fim de que seja mantido o equilíbrio das relações sociais. Portanto, quando um preceito legal define e concede um direito, não se encerra os limites preestabelecidos, pelo contrário, os mesmos são impostos pelos princípios gerais do direito (fls. 233-234). Além do fato de que o arbítrio do juiz e a amplitude dos critérios adotados para a fixação são necessários para que se aplique a justiça em cada caso concreto, diante da impossibilidade de existir soluções universais (fl. 235-238).
O autor aproveita para passar uma noção de como o instituto do abuso de direito funciona nas legislações estrangeiras. Cita o direito anglo-americano, que é regido pela common law, onde o princípio genérico é o exercício amplo dos direitos. Nessa ideia, o dano que decorre do exercício de um direito, mesmo que haja interesse de lesar outrem, é, regra geral, escusável (fl. 249).
No Brasil, contudo, tem-se que o abuso do direito “pode surgir no exercício anormal do direito, desviando-se o titular do direito da finalidade ou destinação econômica e social do mesmo direito, sem que tenha agido com dolo ou culpa no sentido clássico, isto é, violação de uma obrigação legal preexistente” (fl. 252). Já afirmava, na época, que o anteprojeto da parte de obrigações do nosso atual Código Civil antevia a relativização dos direitos, como forma de institucionalizar o abuso do direito (fl. 255). Enfim, tem-se que “a responsabilidade surge justamente porque a proteção do exercício deste direito é menos útil socialmente do que a reparação do dano causado pelo titular deste mesmo direito” (fl. 257).
IV. Da responsabilidade sem culpa na legislação especial
O autor inicia a apresentação desse capítulo dizendo que, através de uma análise profunda e sem preconceito de vários ordenamentos jurídicos civis modernos, entende-se que o princípio da culpa cedeu terreno ao princípio da responsabilidade decorrente do risco criado e de várias outras hipóteses de responsabilidade sem culpa (fl. 259).
Nesse contexto, apresentam-se algumas leis especiais que tratam sobre o assunto, como na responsabilidade nos acidentes do trabalho, em que a vítima que recebe uma reparação, sem provar a culpa do patrão, na realidade não está recebendo uma reparação integral propriamente dita, mas trata-se de mecanismo de uma simples lei de assistência (fl. 262).
Diferente, contudo, ocorre na situação que enseja a responsabilidade em casos de acidentes de aeronaves, quanto aos danos sofridos pelos passageiros, ao transporte de mercadorias e às pessoas e bens na superfície (fl. 265). Nesse caso, existem três sistemas que podem ser adotados: a teoria da culpa, como no direito comum, a aplicação da culpa presumida do responsável e a responsabilidade objetiva (fl. 266).
O autor continua explicando e demonstrando outras situações em que a responsabilidade civil extracontratual, seja subjetiva ou objetiva, é aplicada normalmente através de legislação especial, como na responsabilidade em acidentes de automóveis (fl. 269), acidente nas minas (fl. 274), acidentes de estradas de ferro (fl. 275) e acidentes por eletricidade (fl. 276).
V. O problema da responsabilidade extracontratual no direito civil brasileiro
No quinto e penúltimo capítulo da brilhante obra de Alvino Lima, apresenta-se a realidade das questões referentes à responsabilidade extracontratual no ordenamento jurídico civil brasileiro. Afirma que o Código Civil de 1916, à época vigente, não se afastou da teoria da culpa, e que “[o] ato (ou a omissão) voluntário, violador do direito de outrem, causando-lhe dano, é o delito civil; a ação ou omissão decorrente da negligência ou imprudência, violando direito de outrem e causando-lhe prejuízo, é o quase-delito e caracteriza a culpa” (fls. 279-280).
De forma semelhante ao capítulo anterior, o autor expõe as diversas situações em que demandam a responsabilidade extracontratual na realidade brasileira, como a responsabilidade por fatos de outrem, onde o “legislador se conservou dentro dos estreitos limites da culpa” (fl. 288) e a responsabilidade decorrente do fato do animal, onde se criou uma presunção juris tantum da culpa, pois, segundo Pontes de Miranda, “não basta um cuidado normal, o de qualquer pessoa diligente, mas o que se devia ter no caso concreto” (fl. 295).
Além disso, não se esqueceu da responsabilidade decorrente da ruína de edifício, como também vimos no capítulo anterior. Nesse caso, contudo, a vítima deve provar que a causa do acidente foi a falta de reparos no edifício, e que essa necessidade de reparos era manifesta (fl. 297). A aplicação da teoria do risco, nas hipóteses em que o proprietário ignora a existência da necessidade de reparos, faz com que a responsabilidade passe a surgir do “fato causador do dano, que é a ruína do edifício, mas por não ter o proprietário feito os reparos necessários como devia, se fosse diligente, prudente, ou, em um palavra (sic), se agisse como o bonus pater familias” (fl. 299).
Já nos casos em que o autor do ato danoso pratica o ato em legítima defesa ou em estado de necessidade, consagra-se, no Brasil, a responsabilidade sem culpa. No caso de estado de necessidade, “a obrigação imposta, pois, ao agente […] é puramente objetiva, decorrendo exclusivamente do dano causado à vítima, que não concorreu para o ato lesivo” (fl. 304). O mesmo acontece nas hipóteses de legítima defesa, pois, quando a vítima, que sofre prejuízo na tentativa do autor de remover o perigo iminente, não for culpado do perigo, possui direito à reparação dos danos sofridos (fl. 303).
Por sua vez, não há, na responsabilidade decorrente das coisas lançadas ou caídas em lugar indevido, um entendimento pacificado acerca da responsabilidade objetiva ou subjetiva, diante da ideia de que o “próprio fato de lançar a coisa em lugar indevido atesta um erro de conduta, o que jamais praticaria o homem diligente”. Em outras palavras, tem-se que, como se trata de uma prática totalmente fora dos padrões do bonus pater familias, todo e qualquer dano causado é passível de reparação, pois a imprudência é manifesta e prefixada pela lei (fl. 306-307).
Nas hipóteses de responsabilidade decorrente do direito de vizinhança, o autor afirma que “certamente dentro do conceito da culpa que o problema será resolvido”, levando em consideração as concepções de função social da propriedade e do abuso do direito (fl. 310), enquanto que nos acidentes do trabalho “várias são as nossas leis nas quais encontramos a aplicação da responsabilidade sem culpa” (fl. 312).
Em caso de acidente de aeronaves, conforme já explicado, aplicam-se diferentes teorias. No caso de dano aos passageiros, a responsabilidade está fundada na culpa, onde a vítima deve provar o defeito da aeronave ou a culpa da tripulação, onde o transportador pode impugná-las sob o fundamento de que todas as medidas de precaução foram tomadas (fl. 315). Contudo, quando se tratar de danos causados a terceiros que se encontram na superfície, a responsabilidade decorre “pura e exclusivamente do fato danoso produzido pelas (sic) aeronave, atenuando-se ou excluindo-se esta responsabilidade tão-somente no caso de culpa da vítima que concorrer para a realização do prejuízo sofrido” (fl. 317).
Por fim, como nota do atualizador, explica-se a situação da responsabilidade civil extracontratual nas hipóteses de dano ecológico, dano atômico e no Código do Consumidor, em que é indiscutivelmente objetiva (fls. 320-323).
VI. Situação atual, no direito civil moderno, das teorias da culpa e do risco
No sexto e último capítulo, o autor reafirma a ideia, que apresentou durante todo o trabalho, de que “[a]s presunções juris et de jure não passam de casos de responsabilidade decorrentes do próprio fato, pois, senão em teoria, mas na realidade, tais presunções são meros artifícios, “mentiras jurídicas” criadas com o intuito apenas de não dar às coisas os seus verdadeiros nomes” (fl. 327).
Tem-se que, diferente do que pensam alguns juristas, “não se materializou o princípio da responsabilidade por se julgar que os princípios morais devam ser expurgados do direito; materializou-se a função da responsabilidade em face do dano, rebuscando somente o nexo de causalidade e o risco criado, para não se deixar a vítima inocente sem a reparação do mal sofrido pelo criador de uma atividade disseminadora de perigos” (fl. 329-330).
Termina, de forma brilhante, afirmando que “os velhos conceitos dogmáticos se transformam, se adaptam, se objetivam e novas concepções surgem para a solução dos problemas que a vida nos impõe” (fls. 334-335), no sentido de prover equilíbrio às partes envolvidas, autor do ato danoso e vítima, pois a “insegurança material da vida moderna criou a teoria do risco-proveito, sem se afastar dos princípio de uma moral elevada, sem postergar a dignidade humana e sem deter a marcha das conquistas dos homens” (fl. 336).
Considerações finais
O autor da brilhante obra “Culpa e Risco”, Alvino Lima, tentou, com sucesso, expor e justificar a presença cada vez mais forte da responsabilidade civil extracontratual sem culpa nos ordenamentos jurídicos civis da sociedade moderna. Passando pelo Direito Romano, pelas teorias clássicas e por diversas legislações estrangeiras, chegou-se ao atual conceito e realidade do instituto.
O autor iniciou a obra tecendo algumas considerações acerca da responsabilidade extracontratual sob o fundamento da culpa, com o intuito de ilustrar o contexto em que a responsabilidade extracontratual sem culpa está inserida. Na sequência, optou-se por trazer a lume o instituto do abuso do direito, conceituando, em síntese, como a violação de um preceito social extralegal, que, diferentemente do preceito objetivo preestabelecido em lei, caracteriza a diferença muitas vezes tênue entre direito e abuso.
Justificou-se o crescente acolhimento da responsabilidade civil extracontratual sem culpa e do instituto do abuso do direito diante da modernização e complexidade das relações humanas modernas, em que o dever de reparação dos danos causados exige critérios mais atuais do que somente a culpa.
Com o desenvolvimento das relações interpessoais, reconheceu-se a necessidade de proteger a vítima do desequilíbrio existente com o agente causador do dano, como nas relações de empregado-empregador e nas relações de consumo. Portanto, afirma-se que o instituto da responsabilidade civil extracontratual sem culpa surgiu para proteger o hipossuficiente, dentro de um contexto político, econômico e social desequilibrado.
Trata-se, portanto, de uma obra clássica, mas atemporal, que está em consonância com as relações humanas constantes na sociedade moderna do século XXI, com o advento das tecnologias e com o poderio econômico. Ainda que não se concorde com as ideias apresentadas por Alvino Lima, não há como negar que os conceitos e institutos demonstrados pelo autor estão, mais do que nunca, presentes no cotidiano da sociedade brasileira.
Eduardo André Carvalho Schiefler – Acadêmico da 7ª fase do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
[1] Apenas a título de informação e para eternizar essa lembrança, informa-se que o autor desse trabalho teve a oportunidade de ouvir os brilhantes ensinamentos do professor João dos Passos Martins Neto, atual Procurador-Geral do Estado de Santa Catarina, na disciplina de Direito Constitucional I do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, ocasião em que o professor apresentou à turma essa mesma lógica apresentada pelo nobre Alvino Lima.