Na última quarta-feira (9), foi aprovado no Senado o Projeto de Lei nº 23 de 2016, que prevê expressamente o direito de candidatos portadores de surdez unilateral às vagas reservadas a pessoas com deficiência em concurso público. Agora, o PL retorna à Câmara dos Deputados para apreciação de duas emendas propostas pelo Senado e, na sequência, segue para sanção presidencial.
Desde a alteração realizada no Decreto nº 3.298/1999, em 2004, havia se estabelecido uma discriminação em faces dos portadores de surdez unilateral. Sujeitos com absoluta incapacidade de audição em umas das orelhas, a anacusia unilateral, eram impedidos de se utilizar das vagas reservadas a pessoas com deficiência, ainda que a literatura médica reconheça amplamente as dificuldades enfrentadas por pessoas nesta condição, em decorrência, principalmente, da falta do benefício do tempo interaural, responsável pela localização espacial do interlocutor na fala.
A falta do tempo interaural, dificultando a localização espacial da fonte sonora, causa nos indivíduos “menor compreensão da fala em ambientes com competição de ruídos, aumentando neles o sentimento de confusão e perda de concentração”.[1] Para Almeida, Ribas e Ataíde, “as dificuldades de comunicação relacionadas à perda auditiva unilateral são grandes e envolvem problemas com a localização da fonte sonora, com o processamento temporal da informação e com as dificuldades de compreensão em ambientes degradados, na presença de ruído competitivo, ou na interlocução com mais de duas pessoas”[2].
Apesar disso, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, em jurisprudência dissonante com a sua própria interpretação em relação aos portadores de visão monocular, consolidou o entendimento de que os unilateralmente surdos não tinham direito às vagas reservadas. Inclusive, em 2015, pouco tempo depois da publicação da Lei Brasileira de Inclusão, editou a Súmula 552, indicando expressamente a inexistência desse direito.
A discriminação projetada em relação aos unilateralmente surdos se agrava ainda mais quando se verifica que, frequentemente, caso optem por concorrerem às vagas de classificação geral, são considerados inaptos nos exames médicos. Isso justamente por causa da surdez unilateral. Ou seja: quando concorrem, em concurso público, às vagas reservadas a deficientes, são desclassificados. Quando concorrem às vagas de classificação geral, são igualmente desclassificados. Na prática, essas decisões obstam o ingresso de portadores de surdez unilateral na carreira pública, o que afronta o princípio constitucional do amplo acesso aos cargos públicos e da promoção de direitos aos portadores de deficiência.
Por conta disso, atento a estas questões e demonstrando bastante sensibilidade, o Tribunal Superior do Trabalho – TST adotou reiteradamente o entendimento de que o Decreto nº 3.398/1999 deveria ser interpretado de modo teleológico, ou seja, prestigiando os fins para o qual havia sido editado. Assim, prevaleceu o entendimento de que não era necessário que a deficiência estivesse especificada no art. 4º do Decreto 3.298/1999, bastando que ficasse demonstrado que a condição do candidato se configurava como deficiência a partir a definição do art. 3º, ou seja, que houvesse um impedimento de longo prazo, capaz de obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em equidade de condições com as demais pessoas.
A aprovação do Projeto de Lei 23/2016 pelo Senado só vem confirmar a retidão da jurisprudência inclusiva do TST, que melhor retrata o conceito de deficiência, garantindo sua abrangência àqueles cuja condição biológica, associada ao ambiente, tem maiores dificuldades de se integrar efetiva e plenamente na sociedade. Inclusive, após a sanção presidencial e a publicação da norma, partindo-se da correta interpretação de que a nova lei somente confirma a adequada interpretação que já era defendida na jurisprudência do TST, entende-se que o candidato indevidamente excluído poderá pleitear judicialmente, ou até administrativamente, o reconhecimento deste direito em relação a concursos encerrados ou em andamento, respeitado o prazo prescricional.
Publicado originalmente em: http://schiefler.adv.br/aprovado-projeto-de-lei-que-reconhece-a-surdez-unilateral-como-deficiencia/
[1] MONDELLI, Maria Fernanda Capoani Garcia et al . Perda auditiva unilateral: benefício da localização auditiva após adaptação de aparelho de amplificação sonora individual. Arquivos Int. Otorrinolaringol. (Impr.), São Paulo, v. 14, n. 3, p. 309-315, Sept. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-48722010000300007&lng=en&nrm=iso>. Acesso: 14 Jan. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S1809-48722010000300007.
[2] ALMEIDA, Gleide Viviani Maciel; RIBAS, Angela; ATAÍDE, André Luiz de. Reabilitação de perdas auditivas unilaterais por próteses auditivas implantáveis: revisão sistemática. Audiology – Communication Research, [s.l.], v. 22, p.1-7, 28 set. 2017. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/2317-6431-2017-1847.