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RECURSO ESPECIAL Nº 845.228 – RJ (2006/0121910-4)
R E L ATO R : MINISTRO LUIZ FUX
RECORRENTE : DANILO CARNEIRO
ADVOGADO : PAULO SÉRGIO DA COSTA MARTINS E
OUTRO(S)
RECORRIDO : UNIÃO
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO.
REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. REGIME
MILITAR. DISSIDENTE POLÍTICO PRESO NA ÉPOCA DO
REGIME MILITAR. TORTURA. DANO MORAL. FATO NOTÓRIO.
NEXO CAUSAL. NÃO INCIDÊNCIA DA PRESCRIÇÃO
QUINQUENAL – ART. 1º DECRETO 20.910/1932. IMPRESCRITIBILIDADE.
1. Ação ordinária proposta com objetivo de reconhecimento dos efeitos
previdenciários e trabalhistas, acrescidos de danos materiais e
morais, em face do Estado, pela prática de atos ilegítimos decorrentes
de perseguições políticas perpetradas por ocasião do golpe militar de
1964, que culminaram na prisão do autor, bem como na sua tortura,
cujas conseqüências alega irreparáveis.
2. Prova inequívoca da perseguição política à vítima e de imposição,
por via oblíqua, de sobrevivência clandestina, atentando contra a
dignidade da pessoa humana, acrescido do fato de ter sido atingida a
sua capacidade laboral quando na prisão fora torturado, impedindo
atualmente seu auto sustento.
3. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8º, §
3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Precedentes.
4. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à
dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos
da República Federativa do Brasil.
5. Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal:
“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III – a dignidade da pessoa humana;”
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;
(…)
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano
ou degradante;”
6. Destarte, o egrégio STF assentou que:
“…o delito de tortura – por comportar formas múltiplas de eução
– caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que esperam,
na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os
seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva
e inaceitável crueldade. – A norma inscrita no art. 233 da Lei nº
8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente,
ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional
da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA
COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA
PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da
descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança
e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de
noções com que o senso comum e o sentimento de decência das
pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção
de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da
pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos
humanos, pois reflete – enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva
– um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até
mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que
o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento
positivo.” (HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ
10/08/2001)
7. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável
assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana
perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.
8. Consectariamente, não há falar em prescrição da ação que visa
implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição
não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente
ao direito inalienável à dignidade.
9. Outrossim, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às
violações à dignidade humana, perpetradas em período de supressão
das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem
estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive
com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do
Código Civil no afã de superar a reparação de atentados aos direitos
fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada
no respeito à integridade física do ser humano.
10. Adjuntem-se à lei interna, as inúmeras convenções internacionais
firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU,
e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a Convenção
contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a
Conveção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena,
e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica).
11. A dignidade humana violentada, in casu, decorreu do fato de ter
sido o autor torturado- revelando flagrante atentado ao mais elementar
dos direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos,
universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.
12. Inequívoco que foi produzida importante prova indiciária representada pelos
comprovantes de tratamento e pelas declarações médicas que instruem os
autos, consoante se extrai da sentença de fls. 72/79.
13. A exigibillidade a qualquer tempo dos consectários às violações
dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento
da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da
paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento
superior estabelecendo no art. 1º que “todos os homens nascem livres
e iguais em dignidade e direitos”.
14. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana
é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a
existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais
e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da
jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e
o direito processual.
15. O egrégio STJ, em oportunidades ímpares de criação jurisprudencial,
vaticinou:
“RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E
MATERIAIS. PRISÃO, TORTURA E MORTE DO PAI E MARIDO
DAS RECORRIDAS. REGIME MILITAR. ALEGADA PRESCRIÇÃO.
INOCORRÊNCIA. LEI N. 9.140/95. RECONHECIMENTO OFICIAL
DO FALECIMENTO, PELA COMISSÃO ESPECIAL DE DESAPARECIDOS
POLÍTICOS, EM 1996. DIES A QUO PARA A CONTAGEM
DO PRAZO PRESCRICIONAL.
A Lei n. 9.140, de 04.12.95, reabriu o prazo para investigação, e
conseqüente reconhecimento de mortes decorrentes de perseguição
política no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de
1998, para possibilitar tanto os registros de óbito dessas pessoas
como as indenizações para reparar os danos causados pelo Estado às
pessoas perseguidas, ou ao seu cônjuge, companheiro ou companheira,
descendentes, ascendentes ou colaterais até o quarto grau.
omissis
…em se tratando de lesão à integridade física, deve-se entender que
esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos
patrimoniais reflexos e dependentes.
“O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado
direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito
à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade
deve ser a regra quando se busca indenização por danos
morais conseqüentes da sua prática” (REsp n. 379.414/PR, Rel. Min.
José Delgado, in DJ de 17.02.2003).
Recurso especial não conhecido.” (REsp 449.000/PE, 2ª T., Rel. Min.
Franciulli Netto, DJ 3/06/2003)
16. Recurso especial provido para afastar in casu a aplicação da norma inserta
no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, determinando o retorno dos autos à instância
de origem, para que dê prosseguimento ao feito.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da PRIMEIRA
TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade
dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, vencidos os
Srs. Ministros Teori Albino Zavascki (voto-vista) e Francisco Falcão,
dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator. Os Srs. Ministros Denise Arruda e José Delgado votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 23 de outubro de 2007(Data do Julgamento)