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STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 845.228 – RJ (2006/0121910-4), Relator Ministro Luiz Fux , Julgado em 02/18/2008

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RECURSO ESPECIAL Nº 845.228 – RJ (2006/0121910-4)

R E L ATO R : MINISTRO LUIZ FUX

RECORRENTE : DANILO CARNEIRO

ADVOGADO : PAULO SÉRGIO DA COSTA MARTINS E

OUTRO(S)

RECORRIDO : UNIÃO

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO.

REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. REGIME

MILITAR. DISSIDENTE POLÍTICO PRESO NA ÉPOCA DO

REGIME MILITAR. TORTURA. DANO MORAL. FATO NOTÓRIO.

NEXO CAUSAL. NÃO INCIDÊNCIA DA PRESCRIÇÃO

QUINQUENAL – ART. 1º DECRETO 20.910/1932. IMPRESCRITIBILIDADE.

1. Ação ordinária proposta com objetivo de reconhecimento dos efeitos

previdenciários e trabalhistas, acrescidos de danos materiais e

morais, em face do Estado, pela prática de atos ilegítimos decorrentes

de perseguições políticas perpetradas por ocasião do golpe militar de

1964, que culminaram na prisão do autor, bem como na sua tortura,

cujas conseqüências alega irreparáveis.

2. Prova inequívoca da perseguição política à vítima e de imposição,

por via oblíqua, de sobrevivência clandestina, atentando contra a

dignidade da pessoa humana, acrescido do fato de ter sido atingida a

sua capacidade laboral quando na prisão fora torturado, impedindo

atualmente seu auto sustento.

3. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8º, §

3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Precedentes.

4. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à

dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos

da República Federativa do Brasil.

5. Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal:

“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel

dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise

em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

III – a dignidade da pessoa humana;”

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes

no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,

à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;

(…)

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano

ou degradante;”

6. Destarte, o egrégio STF assentou que:

“…o delito de tortura – por comportar formas múltiplas de eução

– caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que esperam,

na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os

seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva

e inaceitável crueldade. – A norma inscrita no art. 233 da Lei nº

8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente,

ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional

da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA

COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA

PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da

descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança

e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de

noções com que o senso comum e o sentimento de decência das

pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção

de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da

pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos

humanos, pois reflete – enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva

– um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até

mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que

o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento

positivo.” (HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ

10/08/2001)

7. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável

assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana

perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.

8. Consectariamente, não há falar em prescrição da ação que visa

implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição

não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente

ao direito inalienável à dignidade.

9. Outrossim, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às

violações à dignidade humana, perpetradas em período de supressão

das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem

estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive

com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do

Código Civil no afã de superar a reparação de atentados aos direitos

fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada

no respeito à integridade física do ser humano.

10. Adjuntem-se à lei interna, as inúmeras convenções internacionais

firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU,

e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a Convenção

contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a

Conveção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena,

e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São

José da Costa Rica).

11. A dignidade humana violentada, in casu, decorreu do fato de ter

sido o autor torturado- revelando flagrante atentado ao mais elementar

dos direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos,

universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.

12. Inequívoco que foi produzida importante prova indiciária representada pelos

comprovantes de tratamento e pelas declarações médicas que instruem os

autos, consoante se extrai da sentença de fls. 72/79.

13. A exigibillidade a qualquer tempo dos consectários às violações

dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento

da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da

paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento

superior estabelecendo no art. 1º que “todos os homens nascem livres

e iguais em dignidade e direitos”.

14. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana

é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a

existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais

e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da

jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e

o direito processual.

15. O egrégio STJ, em oportunidades ímpares de criação jurisprudencial,

vaticinou:

“RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E

MATERIAIS. PRISÃO, TORTURA E MORTE DO PAI E MARIDO

DAS RECORRIDAS. REGIME MILITAR. ALEGADA PRESCRIÇÃO.

INOCORRÊNCIA. LEI N. 9.140/95. RECONHECIMENTO OFICIAL

DO FALECIMENTO, PELA COMISSÃO ESPECIAL DE DESAPARECIDOS

POLÍTICOS, EM 1996. DIES A QUO PARA A CONTAGEM

DO PRAZO PRESCRICIONAL.

A Lei n. 9.140, de 04.12.95, reabriu o prazo para investigação, e

conseqüente reconhecimento de mortes decorrentes de perseguição

política no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de

1998, para possibilitar tanto os registros de óbito dessas pessoas

como as indenizações para reparar os danos causados pelo Estado às

pessoas perseguidas, ou ao seu cônjuge, companheiro ou companheira,

descendentes, ascendentes ou colaterais até o quarto grau.

omissis

…em se tratando de lesão à integridade física, deve-se entender que

esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos

patrimoniais reflexos e dependentes.

“O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado

direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito

à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade

deve ser a regra quando se busca indenização por danos

morais conseqüentes da sua prática” (REsp n. 379.414/PR, Rel. Min.

José Delgado, in DJ de 17.02.2003).

Recurso especial não conhecido.” (REsp 449.000/PE, 2ª T., Rel. Min.

Franciulli Netto, DJ 3/06/2003)

16. Recurso especial provido para afastar in casu a aplicação da norma inserta

no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, determinando o retorno dos autos à instância

de origem, para que dê prosseguimento ao feito.

ACÓRDÃO

___________________

Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da PRIMEIRA
TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade
dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, vencidos os
Srs. Ministros Teori Albino Zavascki (voto-vista) e Francisco Falcão,
dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator. Os Srs. Ministros Denise Arruda e José Delgado votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 23 de outubro de 2007(Data do Julgamento)

Como citar e referenciar este artigo:
JURISPRUDÊNCIAS,. STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 845.228 – RJ (2006/0121910-4), Relator Ministro Luiz Fux , Julgado em 02/18/2008. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/jurisprudencias/stj/stj-recurso-especial-no-845-228-rj-2006-0121910-4-relator-ministro-luiz-fux-julgado-em-02-18-2008/ Acesso em: 28 jun. 2025
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