Apelação Cível. Mandado de Segurança. Pagamento de pensões aos ex-prefeitos. Direito adquirido. Inconstitucionalidade superveniente. Poder Constituinte Originário e Derivado. Cláusulas pétreas.
Fernando Machado da Silva Lima*
EGRÉGIA XXXXXXX CÂMARA CÍVEL ISOLADA
PROCESSO : N° XXXXXXXX
APELAÇÃO CÍVEL
APELANTE: XXXXXXXXXXXXXX
APELADO: PREFEITURA MUNICIPAL DE TUCURUÍ
RELATORA : EXMA. DESA. XXXXXXXXXXX
PROCURADORA DE JUSTIÇA : XXXXXXXXXXXXXXX
Ilustre Desembargadora Relatora :
Tratam os presentes Autos do Mandado de Segurança impetrado por XXXXXXXXXX, contra a Prefeitura Municipal de Tucuruí/Pa, em razão do Decreto n.º 026/93 – GP, que excluiu o pagamento das pensões dos ex-prefeitos.
Em síntese, os Autos informam que :
1 – O Impetrante, na Exordial, sustenta que o Decreto n.º 026/93 – GP não possui força legal/constitucional para revogar a pensão dos ex-prefeitos do Município de Tucuruí/Pa, concedida através da Lei Municipal n.º 2.788/86, em razão do princípio da irretroatividade da lei, consagrado pelo art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, que estabelece o efeito ex tunc (sic) àquela, bem como da garantia do direito adquirido, prevista no inc. XXXVI, do art. 5º da Lex Legum. Argumenta ainda que a Constituição Federal de 1988, ao proibir a instituição do benefício em tela no âmbito municipal, resguardou entretanto os direitos dos ex-prefeitos que recebiam pensão vitalícia antes da sua vigência. Pede a concessão de liminar, com o escopo de restabelecer o benefício. Cita Jurisprudência. Junta Documentos.
2 – A MM. Juíza de Direito da Xa. Vara da Comarca de Tucuruí, Dra. XXXXXXXXXXXX, concedeu a Liminar pedida, entendendo que a medida cautelar é necessária para resguardar a eficácia da decisão final.
3- A Impetrada, às fls. 24, prestou informações afirmando que a Lei Municipal n.º 2.788/86 é inconstitucional, motivo pelo qual não há que se falar em direito adquirido. Para demonstrar tal assertiva, cita inúmeros acórdãos.
4 – O Dr. XXXXXXXXXXXXXXX, Xº Promotor de Justiça da Comarca de Tucuruí/Pa, manifestou-se desfavorável à concessão do Mandamus, haja vista que, segundo ele, não se pode falar em direito adquirido por lei manifestamente inconstitucional, já que a Lei Maior destinou à União a competência exclusiva para legislar sobre matéria previdenciária. Cita a jurisprudência.
5 – A Impetrada interpôs o recurso de Agravo de Instrumento, com pedido de efeito suspensivo, contra a decisão da MM. Julgadora que concedeu a liminar, entendendo aquela que há elementos suficientes que demonstram a existência do fumus boni juris a seu favor. Alega, outrossim, que a mantença da liminar pode gerar sérios prejuízos ao Município, razão pela qual tenta demonstrar o periculum in mora. Cita doutrina e jurisprudência.
6 – Em seguida, a MM. Juíza de Direito da Xª Vara da Comarca de Tucuruí/Pa, Dra. XXXXXXXXXXXX, proferiu sentença julgando improcedente o pedido do Impetrante, haja vista que o legislador municipal não dispõe de Poder Constituinte, e que por força disso não pode conceder pensão vitalícia a ex-prefeito. Cita a jurisprudência.
7 – O Apelante, às fls. 54, baseou-se nos mesmos argumentos contidos na Exordial do Mandamus. Cita a jurisprudência.
8 – Às Contra-Razões, a Apelada também utiliza as mesmas assertivas manifestadas nas informações prestadas ao Juízo a quo. Cita Jurisprudência.
9 – Em seguida, vieram os autos a esta Procuradoria de Justiça, para que a mesma expressasse sua opinião em relação à lide.
É o relatório. Esta Procuradoria passa a opinar:
O ponto central do litígio, versa sobre o reconhecimento de direito adquirido em face do advento de uma nova Constituição Federal.
Para se chegar a uma conclusão nos moldes traçados pela Ciência do Direito, é necessária uma análise, embora superficial, acerca do Poder Constituinte originário, com algumas considerações sobre o Poder Constituinte derivado, tendo em vista sempre que o nosso sistema constitucional adota o modelo de Carta Política rígida. Pois bem, o primeiro é aquele que estabelece uma nova ordem jurídica (através de uma constituição, seu alicerce), seja em razão de uma revolução, seja em função da criação de um novo Estado. Já o Poder Constituinte derivado é aquele responsável pela atualização da Constituição (através de emenda e revisão), face ao fator da mobilidade social. Neste último caso, sua eficácia está limitada pela própria Ordem Jurídica, que resguarda as chamadas cláusulas pétreas, dentre elas o direito adquirido. (§ 4º do art. 60 da CF/88).
Sobre as características do Poder Constituinte originário, ensina o professor Celso Ribeiro Bastos:
Três são os caracteres essenciais do poder constituinte, segundo Georges Burdeau: é inicial, porque nenhum outro poder existe acima dele, nem de fato nem de direito, exprimindo a idéia de direito predominante na coletividade; é autônomo, porque somente ao soberano (titular) cabe decidir qual a idéia de direito prevalente no momento histórico e que moldará a estrutura jurídica do Estado; é incondicionado, porque não se subordina a qualquer regra de forma ou de fundo. Não está regido pelo direito positivo do Estado (estatuto jurídico anterior), mas é o mais brilhante testemunho de um direito anterior ao Estado. (Celso Ribeiro Bastos – Curso de Direito Constitucional) ( o grifo é nosso)
Sobre o tema, fala outrossim Sahid Maluf:
O Poder Constituinte é uma função da soberania nacional. É o poder de constituir e reconstituir ou reformular a ordem jurídica estatal.
As Constituintes, ao revés, não têm limitação: a elas se devolve a totalidade do poder de soberania, com apenas o dever de respeito aos imperativos das leis de direito natural. ( Sahid Maluf – Teoria Geral do Estado)
Pelo que foi exposto, nota-se a ilimitabilidade do poder constituinte inicial, decorrência de sua soberania, contra ele não sendo possível admitir a força do direito adquirido, porque ele, por sua própria essência, se destina a criar uma nova ordem jurídica, insuscetível de qualquer limitação decorrente da ordem jurídica anterior.
Aplicando o resumo realizado acima ao caso concreto, percebe-se que a Lei Municipal 2.788/86, que instituiu o direito de pensão mensal e vitalícia aos ex-Prefeitos do Município de Tucuruí, não foi recepcionada pela Carta Magna de 1988, em razão desta delegar, mediante competência concorrente, à União, aos Estados-Membros e ao Distrito-Federal, a atribuição de legislar sobre direito previdenciário. Transcreve-se o dispositivo constitucional:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde; ( o grifo é nosso)
Percebe-se que o Constituinte não delegou aos Municípios a aludida função legislativa, fazendo com que toda a legislação municipal sobre previdência, existente à época da vigência da Lex Legum, bem como aquela criada posteriormente, se revista do vício da inconstitucionalidade. Na primeira hipótese diz-se, mais especificadamente, que o dispositivo legal não foi recepcionado, ou seja, foi revogado pela Constituição superveniente. Isso se dá devido à chamada fundamentação de validade, que determina que todas as normas infra-constitucionais devem tirar sua fundamentação da Constituição Federal, sob pena de serem declaradas verticalmente incompatíveis com a mesma, pondo em prática o chamado controle de constitucionalidade, instrumento responsável pela expurgação das normas inconstitucionais. Levando-se em conta a pirâmide normativa de Kelsen, na fundamentação de validade, o sentido é vertical, de cima para baixo. Já na compatibilidade vertical, o sentido é inverso, ou seja, de baixo para cima.
Destarte, a Lei Municipal 2.788/86 não foi recepcionada pela Carta Magna de 1.988, em razão da matéria disciplinada por ela. Decerto que a salientada Lei, porque confronta com a nova ordem jurídica, perde a eficácia de gerar qualquer direito, mesmo o adquirido anteriormente. Essa foi a vontade do Constituinte Soberano que, em tese, representa a vontade popular.
Por último, cabe o comentário sobre a idoneidade do instrumento normativo que eliminou a situação de inconstitucionalidade (Decreto Municipal n.º 026/93 – GP, de 10.05.93). Fala o ilustre José Cretella Junior:
J) Princípio da autotutela, assim enunciado: “ A Administração é obrigada a policiar os bens públicos e os atos administrativos”
É fundamentado neste princípio que o administrador pode proceder ao desfazimento (anulação ou revogação) dos atos administrativos, quando ilegais, inoportunos ou inconvenientes.
Todos esses princípios estão fundamentados num princípio maior – o princípio da legalidade. (José Cretella Junior – Curso de Direito Administrativo)
Certo que o pagamento de pensões a ex-prefeitos é ato vinculado, haja vista que não cabe à Administração Pública decidir ou não pela conveniência e oportunidade da realização da prestação pecuniária; se a lei estabelece e o sujeito cumpre os seus requisitos, o ato é obrigatório. A Administração Pública age de acordo com os ditames legais, observando assim o princípio da legalidade. Agora, se a lei a ser cumprida passa a ser inconstitucional, é dever do Administrador, sob pena de violar o princípio já comentado, restabelecer o estado de legalidade, não produzindo assim nenhum outro ato com fundamento naquele dispositivo viciado, sendo que o instrumento jurídico típico do Executivo para tal é o Decreto, seja ele individual ou normativo. Dessa forma, o Decreto Municipal n.º 026/93 – GP possui eficácia jurídica para suspender a pensão concedida a ex-prefeitos pela Lei Municipal 2.788/86, em razão de corrigir uma situação de inconstitucionalidade. Neste caso, não pode ser alegado o princípio da hierarquia das normas, que somente é cabível quando estas estão no pleno gozo de sua higidez legal/constitucional.
Ex positis, esta Procuradoria de Justiça manifesta-se pela denegação do Mandamus, em razão da inexistência atual de direito líquido e certo do Impetrante..
É o parecer.
Belém, novembro de 1999
Procuradora de Justiça
* Professor de Direito Constitucional da Unama
Home page: www.profpito.com
Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.