Voz da experiência

Supremacia do ser sobre o ter

Os meios de comunicação social vêm-se encarregando,  com agressividade cada vez maior, de propor o consumo como meta de vida.  O sistema econômico
vigente tem, nos mecanismos de mercado competitivo, o fundamento de sua organização.  O parâmetro de êxito pessoal, imposto pela cultura dominante, é
possuir e consumir.

Nasci  numa casa modesta, em Cachoeiro de Itapemirim. Pais pobres, pobreza   escolhida e assumida. Respirei a simplicidade no viver como atmosfera da
infância. Ter apenas o essencial, naquela casa em que nasci, era tão espontâneo, que  nunca me senti privado do supérfluo.

Foi preciso crescer, ler, refletir, encontrar Gabriel Marcel para compreender a dimensão ética daquele não ter.

Segundo Marcel, o ter é uma fonte de alheamento. Aquilo que possuímos ameaça de nos tragar. Os homens que vivem na zona do ter são almas cativas que
sofrem uma deficiência ontológica com a perda do ser. Tais homens são indiferentes ao outro. Não estão à disposição.  Fogem no momento de perigo. Para
o homem que vive na dimensão do ter, todas as  coisas são problemas; para o que entra em seu próprio ser, convertem-se em mistério.

O ser, já por si, é um  mistério:  não se pode comprovar, computar e dominar, mas apenas reconhecer.

Através de Gabriel Marcel vi explicitada a filosofia da casa em que nasci.

Dentro dessa perspectiva é que entrei para a Academia Espírito-Santense de Letras.  Não se tratava de ter: a cadeira, a honra.  Mas de ser. Não lutar e
morrer pelo mundo das coisas. Não perseguir valores do pragmatismo.

Depois do ingresso na Academia, tive a alegria de constatar que eu me integrava à convivência de pessoas que também vivem na dimensão do ser.

É um grupo fraterno, não de competidores, mas de companheiros.

Como é belo que as vitórias de cada um sejam celebradas por todos: cada livro publicado, cada prêmio conquistado, cada viagem pelos caminhos do mundo,
tudo isto é vivido na partilha.

No poema Fraternidade, ao desenhar este sentimento, que é o mais nobre do espírito humano, Newton Braga escreveu:

“Esta sensibilidade, que é uma antena delicadíssima,

captando pedaços de todas as dores do mundo,

e que me fará morrer de dores que não são minhas.”

Só há disputa, dentro da Academia, no momento da escolha de um novo membro: sempre vários candidatos concorrem à vaga que se apresenta.

Mas depois, quando o candidato derrotado numa eleição é vitorioso na eleição seguinte, o primeiro a saudar o novo confrade é justamente aquele
acadêmico que foi competidor do que é agora sufragado pela maioria.

* João Baptista Herkenhoff, 75 anos, é professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e membro da Academia Espírito-Santense de Letras.

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HERKENHOFF, João Baptista. Supremacia do ser sobre o ter. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/voz-da-experiencia/supremacia-do-ser-sobre-o-ter/ Acesso em: 22 nov. 2024
Sair da versão mobile