Voz da experiência

O legal e o justo

Dia desses, caminhando pelo calçadão da Praia da Costa, como o faço habitualmente, encontrei-me com Lauro Francisco Nunes, Oficial de Justiça que
trabalhou comigo, nos tempos em que fui Juiz de Direito em Vila Velha.

Ao ensejo desse encontro fortuito, indaguei ao Lauro se ele se lembrava de um episódio no qual eu fui participante e ele, a personagem principal.
Surpreso, ele quis saber que episódio foi este.

Respondi: foi uma injustiça que você me impediu de praticar.

Ah, sim, ele atalhou, o senhor quer se referir àquele despejo de um casal de velhinhos. Eu me lembro muito bem. O senhor inclusive escreveu um artigo
que saiu em A Gazeta, com uma charge do Amarildo.

Exatamente, Lauro. Convém recapitular o ocorrido, principalmente para conhecimento dos jovens que estão ingressando no Curso de Direito.

O proprietário de um imóvel entrou com uma ação de despejo contra os inquilinos, que não pagavam aluguel. Sem saber quem era o ocupante do imóvel
decretei o despejo porque me pareceu ser um desacato à Justiça não pagar aluguéis e nem ao menos justificar o motivo da falta de pagamento.

Felizmente o mandado para executar o despejo cai nas mãos do Lauro. Vendo que os inquilinos eram dois velhinhos, o marido com doença em estado
terminal, falou a sensibilidade do Oficial de Justiça. Desconheceu a hierarquia e desobedeu a ordem do juiz.

Zeloso porém do seu ofício, Lauro comparece humildemente perante aquele que, na condição de Juiz de Direito, simbolizava a autoridade, e disse: Doutor
João, eu não tive coragem de cumprir o mandado, embora saiba que meu dever é obedecer o que o Juiz manda e não discutir seus atos.

Sem falar palavra, determinei que ele juntasse aos autos o mandado não cumprido, com a justificativa da desobediência.

Quando os autos vieram conclusos, eu escrevi que quisera, como Juiz de Direito, ter sempre a meu lado um Oficial de Justiça como aquele, que me
impedira de praticar uma brutalidade, a que fui levado por desconhecer a real situação no caso concreto. O advogado dos velhinhos nada alegou,
certamente porque não encontrou na lei qualquer artigo ou parágrafo que dispensasse um inquilino, por mais grave que fosse o motivo, do dever de pagar
aluguel.

Quando há um atrito entre a Lei e o Direito, tem-se uma questão ética, um choque de valores e não uma questão meramente jurídica e muito menos uma
questão apenas legal.  As decisões valorativas não estão no domínio da lei, estão no domínio da Ética.  Entre dois valores, – a Ética nos guia, –
devemos decidir pelo valor de maior hierarquia.  Entre o culto da lei e o culto do Direito, o valor de maior hierarquia é o culto do Direito.

João Baptista Herkenhoff é Supervisor Pedagógico e professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor.

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HERKENHOFF, João Baptista. O legal e o justo. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/voz-da-experiencia/o-legal-e-o-justo/ Acesso em: 22 nov. 2024
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