Werther, quando resolveu cometer suicídio, pensou antes em cometer homicídio, matando Carlota e o marido. O desfecho da história que marcou o romantismo em nada mudaria. Associado ao fascínio do feminino pelo masculino (e vice-versa) está sempre um jogo psíquico poderoso e, por vezes, irresistível, que leva a desfechos trágicos.
Chamo a isso Complexo de Helena. A bela de Troia tem sempre a capacidade de seduzir, provocando nos homens rixas que levam a combates e morte e, nas mulheres outras, ódio e sofrimentos. Essa feminilidade sedutora é o centro da narrativa do grande poema épico, depois reanalisado em grandes tragédias de Ésquilo e Eurípedes. Helena tem “voz de sereia” e o visual da própria Afrodite. O homem tomado pelo feitiço da deusa vira um joguete das forças mais destrutivas da guerra e do simples homicídio.
Goethe percebeu isso com toda clareza e Carlota, no Werther, é essa Helena que pode habitar no corpo e na voz de qualquer mulher. No Fausto, temos Margarida e a própria Helena de Troia, que, num magnífico lance de licença poética, sai da Antiguidade para desposar o nobre teutônico medieval. É a própria sedução personificada. Margarida tem desfecho trágico; Helena tem passagem mágica, com toda a narrativa sugerindo um amor por si mesmo, com traços hermafroditas masturbatórios e homossexuais. O importante é que a beleza feminina com o toque de Afrodite pode ser mortal. Grandes crimes periodicamente acontecem envolvendo casais sem que o criminoso sequer perceba o ato que cometeu durante a sua realização.
[Ao lado da Helena é muito comum aparecerem também as variações trágicas de Ifigência, aquela que foi sacrificada pelo pai para propiciar a vitória, e da própria Perséfone, aquela virgem pura raptada por Plutão. Como se vê, a repetição do motivo arquetípico é intemporal e está em toda parte.]
“Não sou criminoso”, afirmou o atirador que matou seis em chacina em Jabotical (ver aqui) Claro que é, crime é agir contra a lei e ele o fez. Talvez tenha querido dizer: “Não sou dono dos meus atos”. Seria mais verdadeiro. A história absurda de um jovem homem casado, rejeitado momentaneamente por uma prostituta, reagiu violentamente à rejeição. Ele poderia tê-la meia hora depois, mas a fome pelo amor da própria Vênus não podia esperar. Werther aqui tornou-se homicida.
Mulheres também matam homens dentro da própria história mitológica. Em geral usam outros homens para seus fins homicidas, um Agamenon que acaba sempre por incendiar Troia, matando Heitor, e um Aquiles que mata Páris e é por ele morto. É o irmão de Margarida que é morto por artes de Mefistófeles. Mas elas também matam com as próprias mãos, como morreu Agamenon. Recentemente tivemos o julgamento da outrora prostituta que matou o marido por se sentir traída, esquartejando seu corpo distribuído em malas pela cidade. Nenhuma Helena suporta que outra suplante sua beleza e seu poder de sedução. Temos ainda a história do Euclides da Cunha, morto no triângulo amoroso mais clássico.
No cinema há grandes histórias envolvendo casais. De Olhos Bem Fechados, de Kubrick, será talvez o mais antológico. Tampar os olhos com as roupas é o recurso civilizado (que está se perdendo) para se resistir ao poder de sedução da deusa do amor. A entrega desenfreada a Eros está no filme japonês O Império dos Sentidos, quando a coisa acaba mal para ambos os lados. Thomas Mann fez algo assim, no âmbito homossexual, com o romance A Morte em Veneza.
Na literatura, igualmente temos a repetição do tema. Lolita, Madame Bovary e a nossa história de Bentinho Casmurro são grandes exemplos dessa presença.
Resistir ao arquétipo é bem difícil. A força que surgiu contra a “voz de sereia” está no Cristianismo, cujas histórias femininas exaltam a virgindade e o ascetismo, o oposto da exaltação erótica pagã. O cristianismo, todavia, está em baixa e não tem servido mais de escudo contra a erupção das forças infernais. Cenas trágicas como essa de Jaboticabal estão cada vez mais frequentes.
www.nivaldocordeiro.net – 24/12/2016