Pitacos de um Advogado Rabugento

Não queremos um Ministério da Verdade!

Bruno de Oliveira Carreirão*

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O Brasil parece estar imerso em um combate quase quixotesco contra as fake news, que aparentemente se tornaram o inimigo nº 1 da nação, mesmo ainda diante do coronavírus, bem como dos já corriqueiros e tradicionais problemas do país.

Este texto não é sobre liberdade de expressão. Uma notícia falsa é uma mentira. A mentira não é uma expressão do pensamento; é uma fraude. Por mais que a mentira possa ser praticada por meio de um ato de comunicação (fala, escrita, etc.), essa não é uma forma de comunicação protegida constitucionalmente.

Existem diversas condutas ilícitas que são praticadas por meio de atos de comunicação e, por isso, podem passar a impressão de que se tratam de casos que envolvem a liberdade de expressão. Tomemos por exemplo o crime de calúnia: muitas vezes – por má influência do neoconstitucionalismo e da teoria da ponderação de princípios de Robert Alexy[1] – considera-se que há na calúnia um conflito aparente entre liberdade de expressão e direito à honra. Não há conflito. A calúnia é sempre uma mentira e, como tal, não é uma forma protegida de expressão do pensamento. Não cabe ao julgador ponderar princípios, mas sim verificar se foi atribuída falsamente conduta criminosa à vítima.

Essa mesma dúvida não surge quando, por exemplo, é analisado o crime de estelionato. Trata-se de um crime em que também é praticada uma fraude por meio de um ato de comunicação. Todavia, ninguém tem dúvida de que a conduta do estelionatário não está protegida pela liberdade de expressão. É por isso que o Prof. João dos Passos Martins Neto afirma que “a linguística tem muito mais a dar em favor do estudo da liberdade de expressão do que as metodologias do neoconstitucionalismo”[2].

Mas, mesmo não sendo este um texto sobre liberdade de expressão, este é um texto sobre censura.

Tramita atualmente no Congresso o famigerado Projeto de Lei nº 2.630/2020[3], que visa combater as fake news com medidas de censura, como, por exemplo, determinar que as redes sociais verifiquem a veracidade das postagens de seus usuários e restrinjam a circulação de posts assinalados como desinformação – sem nenhum tipo de contraditório.

Paralelamente a isso, ainda corre no STF o infame Inquérito nº 4.781 – que tem sido chamado pelos bolsonaristas de Inquérito do Fim do Mundo, mas eu, particularmente, prefiro a alcunha Inquérito Onipotente – que supostamente investiga fake news a respeito do próprio Supremo. Digo que é onipotente porque se trata de um inquérito sigiloso iniciado de ofício pelo próprio STF, sem participação do Ministério Público, com relator livremente nomeado pelo Presidente do Supremo, sem que estejam delimitados os acusados e os fatos apurados, dando ampla liberdade ao relator do inquérito para autorizar, também de ofício, todo tipo de medida investigativa e coercitiva em desfavor de, aparentemente, qualquer cidadão do país, ao melhor estilo Judge Dredd[4]. Tudo isso sob os olhares dos juristas ditos garantistas, que nada dizem a respeito…

Até aqui, meu texto pode estar parecendo contraditório. Se afirmo que as notícias falsas não são protegidas pela liberdade de expressão, por que me preocupam medidas que, em tese, visam restabelecer a verdade?

É que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de formas para punir aqueles que divulgam informações falsas e fraudulentas sobre quem quer que seja. Há os crimes de calunia e difamação, há a responsabilidade civil e há até mesmo a Lei 13.188/2015[5], que prevê o direito de resposta. O que o nosso ordenamento jurídico não permite – até por ser inconstitucional – é a censura, principalmente quando se trata de censura prévia, sem qualquer tipo de contraditório ou direito de defesa por parte do acusado.

Bem, não é necessário ter lido o romance 1984, de George Orwell, para entender o quão nocivo é o Estado tentar controlar o que é verdade e o que é mentira e restringir a circulação de informações. Há um exemplo bem recente do mundo real.

Li Wenliang foi o médico chinês que alertou os demais colegas de que ele havia identificado um vírus com características semelhantes aos coronavírus anteriores (MERS e SARS). O governo chinês – que é ditatorial, embora a nossa imprensa convenientemente ignore esse “detalhe” geralmente – o forçou a assinar um termo em que ele se comprometia a parar de disseminar “desinformação”. Alguns cidadãos chineses tentaram expressar a sua indignação pela internet sobre o assunto, mas como lá o governo tem controle sobre as mídias sociais, essas vozes foram sufocadas. Li Wenliang acabou falecendo por ter contraído o coronavírus e o fim dessa história todos nós já conhecemos.

Aceitar que o Estado – seja o Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário – possa controlar o que é verdade e o que não é, estabelecer medidas para restringir a circulação do que considera desinformação e coagir pessoas por divulgação de notícias é um flerte perigosíssimo com o autoritarismo, pois existem notícias e informações cuja divulgação não é conveniente para os detentores do poder.

É por isso que fake news devem ser combatidas com informação, não censura. A esse respeito, é sempre conveniente recordar o que John Stuart Mill já nos ensinava no Século XIX:

O mal particular em silenciar a expressão de uma opinião é que constitui um roubo à humanidade: à posteridade, bem como à geração atual; àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que a sustentam. Se a opinião for correta, ficarão privados da oportunidade de trocar o erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impressão mais clara e viva da verdade[6].

Embora Mill estivesse se referindo a opiniões, o mesmo raciocínio pode ser aplicado a notícias, pois é a sua circulação que nos permite verificar a sua veracidade ou inveracidade e, algumas vezes, perceber que os fatos sobre os quais tínhamos certeza não eram exatamente como pensávamos. Como de costume, a solução está na liberdade, não na mão de ferro do Estado.



* Bruno de Oliveira Carreirão é advogado, mestre em Direito e gosta muito de romances distópicos de ficção científica, mas nem tanto quando se tornam realidade.



[1] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

[2] MARTINS NETO, João dos Passos. Fundamentos da Liberdade de Expressão. Florianópolis: Insular, 2008, p. 13.

[3] Disponível aqui:  https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944

[4] Personagem dos quadrinhos que, em um futuro pós-apocalíptico, acumula as funções de autoridade policial, juiz e executor. Há duas adaptações do personagem para o cinema: o canastrão Judge Dredd, de 1996, com Sylvester Stallone, e o aclamado Dredd, de 2012. Dê preferência a assistir o segundo.

[5] Disponível aqui:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13188.htm

[6] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 43.

Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Não queremos um Ministério da Verdade!. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/nao-queremos-um-ministerio-da-verdade/ Acesso em: 22 nov. 2024
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