Pitacos de um Advogado Rabugento

Devo e não pago. Nego enquanto puder.

Bruno de Oliveira Carreirão*

Madr

Um dos últimos grandes temas jurídicos debatidos nacionalmente no ano passado foi a possibilidade de criminalização de quem deixa de recolher o ICMS declarado. Embora eu não seja simpático à tese, consigo entender a motivação por trás dos agentes públicos que a desenvolveram: o Brasil é um país que cria todas as condições para a existência dos chamados “devedores profissionais” – aqueles devedores que vivem se ocultando de oficiais de justiça, mantém seus bens em nome de “laranjas” e, de modo geral, utilizam de diversos subterfúgios para ocultar seu patrimônio.

Isso não se aplica apenas para os devedores tributários, mas para todos os tipos de dívidas. Em uma pesquisa recente[1], o Brasil figurou entre os piores países em termos de recuperação judicial de crédito. Segundo dados do Banco Mundial, apenas US$ 0,13 são recuperados de cada US$ 1 emprestado – um dado que traz consequências muito negativas para a economia do país, como os altos juros bancários e a baixa confiabilidade para investidores. É muito difícil e, principalmente, custoso executar dívidas no Brasil.

O Poder Judiciário é diretamente responsável por esse quadro, seja pela morosidade dos processos de execução, seja pela proteção excessiva aos inadimplentes e a má-interpretação do princípio da menor onerosidade do devedor – que não deveria se transformar em maior onerosidade do credor.

No meu cotidiano na advocacia, já senti essa situação na pele muitas vezes. Houve um caso em que comprovamos que a empresa devedora fazia saques diários em sua conta bancária para manter apenas valores irrisórios, não tinha bens imóveis ou veículos registrados em seu nome e uma consulta ao Info Jud revelou que a empresa não declarava seus bens à Receita Federal. Com base nessas informações, pedimos a penhora de percentual do faturamento da empresa. O juiz negou o pedido porque considerou a medida muito extrema e que ainda não haviam sido esgotados (!) os meios de expropriação menos gravosos. Precisamos agravar da decisão para conseguir a penhora e, mesmo assim, depois ainda enfrentamos resistência do juízo de primeiro grau para cumprir o que determinou o Tribunal.

Em outro caso, em uma execução contra um daqueles típicos devedores profissionais, após já termos tentado sem êxito a penhora de valores em contas bancárias pelo Bacen Jud, demonstramos que nas outras várias execuções contra o mesmo executado todos os meios de execução haviam sido infrutíferos e que havia fortes suspeitas de ocultação de patrimônio. Por isso, pedimos a aplicação de medidas coercitivas atípicas para suspensão da CNH e restrição no passaporte do devedor. O juiz, ignorando solenemente a jurisprudência do STJ, negou o pedido porque considerou que violava a “dignidade da pessoa humana”…

Além da postura excessivamente protetiva dos juízes para com os devedores, as execuções parecem que ficam “esquecidas” dentro das varas e pedidos muitos simples demoram muitos meses para serem analisados. No último relatório Justiça em Números[2], divulgado anualmente pelo CNJ, foi dedicada uma seção especial para os gargalos da execução, por ser considerada a “etapa de maior morosidade”. As taxas de congestionamentos e os índices de produtividade em praticamente todos os tribunais são nitidamente piores na fase de execução em comparação com a fase de conhecimento:

Taxa de congestionamento nas fases de execução e conhecimento, na 1ª instância, por tribunal.

 

Índice de produtividade do magistrado nas fases de execução e conhecimento, no primeiro grau, por tribunal.

Na passagem de um ano para o outro, é um ritual bastante comum as pessoas fazerem votos do que desejam para o ano seguinte. Eu, como sou rabugento, nunca faço isso, mas como vem a calhar para o tema da coluna, eu desejo que, em 2020, o Brasil torne-se um país com melhor índice de recuperação de crédito. Neste intuito, já que é muito difícil mudar a cultura arraigada no Poder Judiciário, deixo aqui algumas proposições para o Congresso Nacional tornar a nossa legislação menos favorável para os devedores profissionais:

  •  Fim da menor onerosidade do devedor: A mentalidade que induz os juízes a terem propensão a proteger os devedores tem suas origens, mesmo que de forma mais remota, na teoria marxista da luta de classes, que propõe uma compreensão da sociedade por meio das relações entre opressores e oprimidos. Sem entrar no mérito do acerto ou erro da teoria, o grande problema aqui está em justamente considerar que é o devedor a parte mais fraca da relação, quando na verdade é o credor quem está sendo lesado e quem está suportando os custos da mora até que o devedor finalmente pague a dívida. Ora, se o devedor tem a oportunidade de pagar ou, ao menos, indicar bens à penhora, deveria a execução buscar os menos meios gravosos para o credor quando o devedor ficar inerte.
  • Revisão da lei do bem de família: Em um país em que milhões de pessoas se esforçam para conseguir pagar seu alugueis em dia, não é aceitável que um devedor contumaz more em uma mansão registrada em seu nome, enquanto seus credores se frustram na tentativa de encontrar bens penhoráveis. Em um julgamento relativamente recente[3], o STJ decidiu que imóvel de luxo também é impenhorável quando se trata da residência da entidade familiar do devedor. A verdade é que a legislação está ultrapassada e admite pouca flexibilização do conceito de bem de família, excetuando apenas obras de arte e adornos suntuosos – o que é de difícil aplicação na prática.
  • Fim da ordem preferencial para penhora: Mesmo que a ordem seja apenas preferencial, muitos juízes rejeitam meios que consideram “extremos” quando não foram ainda esgotados os meios mais convencionais (vide o exemplo que dei acima). Se o devedor já teve a oportunidade de indicar bens à penhora e deixou de fazê-lo, a partir de então a escolha do meio de penhora deveria ter como único critério a melhor conveniência para o credor.

Acho pouco provável que algum parlamentar leia a minha coluna, mas deixo as proposições para que pelo menos sirvam de debate.



* Advogado, mestre em direito e bom pagador.



Como citar e referenciar este artigo:
CARREIRÃO, Bruno de Oliveira. Devo e não pago. Nego enquanto puder.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/colunas/pitacos-de-um-advogado-rabugento/devo-e-nao-pago-nego-enquanto-puder/ Acesso em: 18 nov. 2024
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