Acho que eu já falei disso mas não custa dar mais uma pincelada no assunto: sabe quando você está ouvindo música e o CD está riscado? É, ele fica “pulando” e repetindo aquele mesmo trecho. Às vezes ele até continua depois de umas três ou quatro repetições, mas via de regra fica naquele ciclo indefinidamente.
É assim irritante que soa nos ouvidos quando algum sujeito fala a mesma coisa mais de uma vez na mesma oração ou frase. O remédio para isso é usar sinônimos ou elementos com significados mais próximos possíveis ao que você tenta substituir.
Esta veio de uma ação condenatória em que o sujeito havia comprado uma série de pisos cerâmicos para reformar a própria casa, mas teve problemas com a qualidade deles. Intimou-se para prestar depoimento um dos empregados da empresa de pavimento:
“Que o depoente prestava serviços para outra empresa e agora presta serviços para X acerca de dois anos”.
Antes de mais nada, só uma classe tem permissão para utilizar quantos “que” tenham vontade: policiais. Você já leu um boletim de ocorrência? É horroroso! Esse disco não é riscado, é furado! “Que o depoente entrou em casa; Que o depoente fechou a porta; Que o depoente subiu as escadas; Que o depoente tentou se enforcar de tanto ouvir ‘que o depoente’”. Dá nos nervos! Ainda bem que agora é necessário terceiro grau para prestar concurso para academia de polícia, talvez ajude.
De qualquer jeito, use o “que o depoente” na primeira oração e, em todas as próximas, escreva como se ele já estivesse ali. “Que o depoente entrou em casa; fechou a porta; subiu as escadas; e foi dormir feliz da vida”. Você está suprimindo algo que já apareceu: é uma figura de linguagem chamada Zeugma.
Da mesma forma deveria ser utilizado para o “prestar serviços”. Aqui fica complicado de utilizar um sinônimo, então terá de ser algo que preencha a lacuna de forma similar. “… prestava serviços para outra empresa, agora o faz para X acerca de dois anos” ou “… prestava serviços para outra empresa, mas hoje trabalha para X acerca de dois anos”. Qualquer um dos dois vale e soa muito melhor.
Por fim a grade gafe. Sério, fiquei algum tempo parado lendo incrédulo o que a criatura havia escrito. “Acerca de dois anos”? Fujam para as colinas! Essa nem dá pra botar a culpa na tia.
O que ele quis dizer – e acho que todos já entenderam – é que o sujeito trabalhava há mais ou menos dois anos para a nova empresa. Sim, HÁ dois anos, no sentido de haver, existir ou, se preferir, “decorrer” tempo. Com isso, o certo a se colocar é “cerca”. “Mas a cerca não é aquela coisa que se usa para cercar?”. Sim, mas isso é outra coisa. O cerca que queremos significa “aproximadamente”.
Acerca de significa “a respeito”. “Acerca do depoimento, entendo ser necessário à instrução da causa”; “acerca da produção de provas, entendo ser desnecessária, visto que já há nos autos indíos suficientes para ensejar julgamento antecipado da lide”.
Limpando a caca do sujeito e recolocando nossa versão 2010 0km com acessórios e opcionais, chegamos finalmente a:
“Que o depoente prestava serviços para outra empresa, mas hoje trabalha para X há cerca de dois anos”. Deixei o “que o depoente” por assumir que essa é a primeira vez que esse elemento está aparecendo na frase, senão, tirem!
Muito melhor, mas limpo, mais fluido. Quando leio algo assim imediatamente me lembro de um coleguinha do colégio que, quando queria falar com alguém, ficava repetindo o nome do sujeito até irritar o suficiente: “João! João!João!João!João!…”. Claro que de vez em quando ele acabava levando uns cascudos por incomodar. Uma pena que não tenha alguém para nos dar cascudos quando escrevemos assim.